&quot;Tempo sofrido&quot;<br />Ilda Figueiredo no &quot;Comércio do Porto&quot;

Estamos a viver um tempo difícil, que a própria morte está a tornar ainda mais sofrido. A decisão do Presidente da República veio agravar a frustração de milhões de portugueses que estão a ser duramente atingidos pela política de direita, pelo trabalho mal remunerado, precário, pelo aumento de preços de bens essenciais, pelo desemprego e pensões e reformas de miséria.

Ao dar novo alento a uma coligação que tinha sofrido uma estrondosa derrota eleitoral, indiferente ao profundo descontentamento que percorre o país, com uma política injusta e errada, que provocou a fuga do Primeiro-Ministro, que tinha jurado cumprir a legislatura, Jorge Sampaio aumentou a insatisfação, o descontentamento e a revolta contra tal decisão cega e surda ao protesto popular.

Poucos dias antes de morrer, (o que aconteceu escassas horas após ser conhecida a decisão do Presidente da República sobre o prolongamento da vida da coligação governamental PSD/CDS e do apoio declarado à sua política), a engenheira Maria de Lourdes Pintasilgo escreveu um belo texto sobre Sofia de Melo Breiner Andresen, morta na semana anterior, utilizando a própria poesia de Sofia:

“ Não soubéssemos nós que a busca se interrompeu, e diríamos que Sofia continua a sonhar o que sempre desejou: Um país liberto/Uma vida limpa/ Um tempo justo.”

Ora, este não é um tempo justo. Estas duas Mulheres – Sofia e Maria de Lourdes Pintasilgo – lutaram pelos direitos das mulheres que Durão Barroso e o seu governo puseram em causa. Foram coerentes até ao fim na sua luta. Jorge Sampaio não. O que acaba de fazer é uma cedência às mais graves políticas de direita que Portugal teve após a revolução de Abril de 1974. Não chega dizer-se que “há mais mundo para além do défice”, ou criticar o Pacto de Estabilidade quando já todos o criticavam, ou verter lágrimas pelos “coitadinhos”, quando depois, no concreto, na hora da verdade, dá uma legitimidade acrescida e com novo fôlego àqueles que estavam condenados pelo povo, e que foram os responsáveis pela mais grave recessão da economia portuguesa e pelo sofrimento, sem conta, de milhares e milhares de famílias.

Não tem grande significado mostrar-se preocupado com os centros de decisão nacionais e, depois, dar luz verde a todas as privatizações que, paulatinamente, vão caindo nas mãos de estrangeiros, apoiar uma constituição europeia que transforma o nosso país, cada vez mais, numa região da Europa, onde Portugal conta cada vez menos.

Em vez de dar a palavra ao povo, de interromper a acção de um Governo desacreditado e desgastado, para decidir do rumo e soluções necessárias ao desenvolvimento do País, o Presidente da República optou pelo pior. Deixar que a situação se degrade cada vez mais, indigitando um Primeiro-Ministro a quem a maioria da população não reconhece capacidade nem legitimidade para governar.

A direita já percebeu que a ameaça de vigilância pouco significa. Já sabe pela experiência o que têm significado as ameaças de vigilância às negociatas com as privatizações, ao subsídio de doença, ao código laboral, à dita consolidação orçamental. O Presidente da República promulgou praticamente tudo o que Durão Barroso quis. Por isso, não espanta que floresçam as odes ao Dr. Jorge Sampaio e à sua capacidade decisória a favor dos grandes interesses, dos grupos económicos e financeiros. São eles quem tem a voz mais forte. Não são os trabalhadores, o povo, os pequenos agricultores, as micro, pequenas e médias empresas. Para estes o futuro que será cada vez mais sofrido.

Quando se impunha uma mobilização popular para vencer a crise, relançar a economia em bases sólidas, alterar legislação inaceitável e abrir uma janela de esperança, Jorge Sampaio fechou a porta e apagou a luz que se via no fundo do túnel.

Perdeu-se uma oportunidade de se alcançar uma nova maioria parlamentar e com ela dar resposta ao drama e ao flagelo do aborto clandestino, à perseguição e criminalização das mulheres.

Perdeu-se uma oportunidade de se dar combate efectivo ao desemprego, ao trabalho precário, aos baixos salários e à política de concentração de riqueza.

Mas a luta continua. Como os próprios governantes o sabem. O sofrimento do povo tem limites que nem a demagogia e o populismo conseguem escamotear. É certo que 2006 ainda vem longe, que o PS está sem secretário-geral, por que mais um fugiu das dificuldades. Mas a mudança que o povo laborioso quer, há-de impor-se mais cedo do que muitos julgam. Para que tenhamos um tempo justo.