23 de Abril de 2004
A leitura de muitas opiniões e testemunhos que, em correcto combate às operações de rasura da história, têm sido publicados na imprensa em torno da polémica “25 de Abril – revolução ou evolução?”, conduz-nos a uma anotação que parece fazer falta nesta conjuntura evocativa ou comemorativa.
Essa anotação tem em vista sublinhar como é curioso, e ao mesmo tempo reconfortante para um comunista, ver que um conjunto assinalável de personalidades democráticas – de Vital Moreira a Fernando Rosas passando por Mário Soares – tem participado nesta polémica ou controvérsia, sem dúvida em graus diferentes e com “nuances” entre si, com argumentos e análises em grande medida coincidentes com as teses que indiscutivelmente fazem parte do património histórico de reflexão e orientação do PC. E que nem sempre, no passado, beneficiaram da concordância de outros sectores democráticos.
Entendamo-nos: escrevemos isto mas não o fazemos para apoucar ou diminuir seja quem for, nem para egoisticamente reivindicar direitos de autor, nem para insinuar copianços ou decalques.
Antes o escrevemos apenas para reavivar alguma memória e restabelecer alguma justiça que se pode perder porque alguns parecem querer fazer crer que formaram o seu pensamento, reflexão e opinião em circuito fechado, dentro de uma redoma e em mera concentração intelectual de carácter individual. E parece terem pudor de reconhecer que, nesta matéria, muitas opiniões que emitem, muitas análises que fazem e muitas teses que formulam, em alguma medida são indiscutivelmente tributárias das - ou convergentes com as - que o PCP formulou de forma percursora na época e que hoje continua a sustentar.
Com efeito, se houvesse espaço e, além disso, não fosse maçador, acreditem os leitores que, no mínimo, poderíamos encher uma página inteira deste jornal com citações de variados documentos do PCP, ou mesmo apenas com passagens do livro “A Revolução portuguesa – o passado e o futuro” de Álvaro Cunhal, publicada em 1976. E assim ficaria inteiramente provado que afirmações e teses recentemente subscritas por não comunistas, podendo aparecer como inovadoras, em rigor entraram há muito, e por responsabilidade e mérito do PCP, no panorama do pensamento político português.
Na falta desse espaço, digamos então de forma abreviada que estão precisamente nesta situação ideias como as relativas ao 25 de Abril enquanto ruptura revolucionária, à ligação ou indissociabilidade entre transformações políticas e transformações económicas e sociais na revolução portuguesa, ao facto de as liberdades democráticas e outras vastas conquistas terem sido obtidas na vida e pela luta antes de qualquer consagração legal, à tese de que a democracia que conquistámos “é filha da revolução”, para já não falar dos elementos originais e distintivos da revolução do 25 de Abril.
É certo que, pelo meio de assinaláveis convergências de opinião e de análise, nem tudo são rosas e, aqui ou ali, lá afloram alguns espinhos de teimosia, dogmatismo e preconceito.
Para falar francamente, é o caso de Fernando Rosas que, em entrevista ao “DN” (20/4) insistindo em teses que erroneamente já formulava há onze anos, e abordando a (mal) chamada “abertura marcelista” a partir de 1968, não se limita a observar (o que, em traço grosso, não contestamos) que na época a maioria das oposições “encarava positivamente a possibilidade de o regime mudar e estava disposta a colaborar” mas volta a afirmar que “o próprio PCP, apesar da retórica da continuidade, na realidade e na prática, favorecia uma mudança desse tipo”.
Acontece porém que esta afirmação de Fernando Rosas sonega uma questão que é onde bate o ponto fundamental de tudo isto.
É que ele, que felizmente já não pensa, como o MRPP afirmava nos dias e semanas a seguir ao 25 de Abril, que este tinha sido um golpe da “oficialagem colonial-fascista”, continua a achar, tal como alguns sectores democráticos de facto pensaram na época, que em 1968 se desenhou um real projecto de liberalização e democratização ou um “ensaio de uma transição controlada para as democracias parlamentares” (cf. F. Rosas, “Público” de 28.9.93).
Enquanto o PCP, de imediato e muito diferentemente, caracterizava a ascensão de Marcelo Caetano e a operação que desencadeou como uma “manobra de demagogia liberalizante” que visava alargar as bases internas e externas do regime fascista, refrear o descontentamento, semear entorpecentes expectativas, anestesiar a luta popular e dividir a oposição.
E F. Rosas até pode achar que orientações publicamente assumidas são «retórica» mas quem revisitar a acção concreta e a luta que, em conformidade com elas, o PCP desenvolveu nos anos finais da ditadura, logo descobrirá como é ridícula e fraudulenta esta tese de que também o PCP se propunha «colaborar» com as manobras ou alegados planos de Marcelo Caetano.