21 de Maio de 2004
De experiência feita, bem sabemos que, no frenesim informativo e na volatilidade mediática dos nossos dias, muitos assuntos que tenham sido falados há oito dias é como se já tivessem ocorrido há três meses, ou seja, uma eternidade política.
Mas como não andamos por aqui propriamente para surfar na última novidade e antes, na maioria dos casos, até andaremos só a desabafar para a acta, fiquem então duas observações certamente irrelevantes.
A primeira destina-se a sublinhar que, se os motivos de distracção e de desconcentração não fossem tantos e a capacidade de sobressalto cívico não estivesse em certos casos tão anestesiada, então haveria todas as razões para que o Ministro Bagão Félix tivesse saído de cena absolutamente de rastos depois de afirmações que fez a propósito das suas recentes propostas de alteração do regime de atribuição do subsídio de desemprego.
E que isso tivesse acontecido, mesmo que o "Público" tivesse publicado uma dúzia seguida de editoriais do seu director a dar graxa e «boa imprensa» às contumazes concepções reaccionárias deste Ministro.
É que fica quase tudo dito se aqui recordarmos que Bagão Félix, como é costume fardado de campeão da moralidade, se passeou por várias televisões a proclamar que era um abuso de bradar aos céus que alguém que tenha recebido uma indemnização de 100 mil contos por rescisão de contrato possa, de seguida, passar a receber subsídio de desemprego.
O problema está em que parece que em nenhuma das televisões por onde o Ministro passeou a sua imensa demagogia e insuperável desonestidade ninguém perguntou a sua Excelência se porventura estava a gozar com o pagode ou a tratar os portugueses como parvos e ainda por cima estúpidos.
Assim como ninguém lhe perguntou se, tirando alguns amigos dele das administrações de fundos de pensões ou de grandes empresas, conhecia mais algum português "corrente" que, por mais décadas que tivesse trabalhado, tivesse conseguido uma indemnização tão confortável.
Mas é todo o devastador retrato de uma personalidade, de uma política e de um governo que fica feito, se a isto acrescentarmos que o fraudulento exemplo da indemnização de 100 mil contos só serviu ao Ministro Bagão Félix para esconder que até um trabalhador que receba uma pequena indemnização de 2.200 contos (que pode corresponder a 20 anos de trabalho ou mais) veria o seu subsidio de desemprego reduzido, caso as propostas governamentais fossem por diante.
E só falta encerrar este tema acrescentando que a distância do mundo real do trabalho deste Ministro e dos comentadores que o endeusam é tanta e tão acintosa que todos eles nem parecem perceber duas coisas elementares: a primeira é que as indemnizações por rescisão de contrato são uma quase sempre limitada compensação pela perda de um emprego estável e de uma antiguidade laboral; e a segunda é que quem receber uma indemnização calculada na base de 20 ou 30 anos de trabalho é praticamente certo que jamais em toda a sua vida futura voltará a receber uma semelhante indemnização.
A segunda observação diz respeito à indigna, revoltante e serventuária reescrita da história, rasura dos factos e branqueamento de responsabilidades que, salvo raríssimas e honrosas excepções, percorreu os "media" a propósito da morte de António Champalimaud.
Sobre isto não precisamos de dizer muito, até porque, com uma assinalável coragem e verticalidade, o essencial sobre esta vergonhosa operação já foi dito, com elegância mas também com a acutilância de um bisturi, por Mário Mesquita, em artigo no «Público» inesquecivelmente intitulado «Santo António Champalimaud».
Pela nossa parte, só gostaríamos de observar que este episódio (que é muito mais do que isso) confirma de forma cristalina que a retirada do «r» da Revolução de Abril não foi um acidente ou erro de "marketing" mas a atrevida erupção de um sistema de concepções apostado em reabilitar grande parte dos interesses e cumplicidades contra os quais a revolução democrática foi feita e, simetricamente, em amesquinhar o melhor e mais fundo património de Abril, dos seus valores e esperanças.
E, por fim, gostaríamos apenas de confessar que, por nós e ao contrário de Pacheco Pereira, não estranhamos nada que o PSD e o CDS-PP tenham redigido e feito aprovar um voto em que se declara que a Assembleia da República «curva-se» perante a memória de António Champalimaud.
É que a ideia e a frase se compreendem perfeitamente vindo das mentes bafientas de quem tenha vivido (ou tivesse gostado de ter vivido) curvado aos interesses de António Champalimaud (e de outros) e às concepções de fundo da ditadura fascista que aquele invariavelmente apoiou e sustentou.
Decididamente, parece que o passado ainda passou. Cuidemo-nos !