&quot;Rendimentos&quot;<br />Vitor Dias no &quot;Semanário&quot;

Momentaneamente sem paciência ou disposição para comentar a inacreditável palestra de Bagão Félix que foi enfiada dentro dos telejornais (se a moda pega e o critério permanece isto vai ser bonito!), ficamo-nos hoje por duas notas soltas que só têm em comum o respeitarem a rendimentos de pessoas.

A primeira nota é para agradecer a informação prestada pelo Ministro Nobre Guedes (cf. “Público” de 14/9) de que, no ano de 2003, auferiu rendimentos no valor de 457.688 euros (ou seja, cerca de 91.400 contos), devendo desde já desiludirem-se os que estejam a pensar que a este agradecimento se seguirá uma violenta catilinária comunista contra os ricos em geral e contra Nobre Guedes em particular.

Bem pelo contrário, por muito que o possam estranhar todos os leitores porventura mais desmunidos ou financeiramente remediados, a verdade é que a conclusão de que Nobre Guedes recebeu por mês cerca de 6.520 contos (91.400:14) conduz-nos a considerar que o distinto advogado e actual ministro merece enfileirar nas vítimas da mais desenfreada exploração capitalista e deve ser credor da solidariedade profunda e comovida que aqui, sem hesitação, lhe prestamos.

Sim, calem-se todos os invejosos deste mundo e do outro, porque é essencial reparar que, ao mesmo tempo que divulgava esta verba, Nobre Guedes informava igualmente que, no ano em causa, integrava os corpos sociais de 28 empresas (sendo administrador de três, secretário de duas, gerente de três e presidente da assembleia geral de vinte) e que, ponto importante como já veremos, 99,5% dos tais 91.400 contos anuais provinham da sua actividade de advogado.

E, atendendo a estes dados, ainda que seja certo que o dia só tem 24 horas para toda a gente e que a ninguém foi até hoje concedido o dom da ubiquidade, pondere-se então se não é um caso de injustiça e de exploração que uma pessoa com tantas responsabilidades e inerentes ralações tenha ganho por mês 6.520 contos (ou seja muito menos do que um executivo de um grande grupo que não tenha outras 28 acumulações) e, supremo escândalo, que as suas responsabilidades e cargos de administrador ou gerente em seis empresas lhe rendam apenas 5% do seu rendimento anual, ou seja 22.800 euros anuais, isto é 324 contos mensais (qualquer coisa como 54 contos mensais por cada uma das seis empresas).

Decididamente, ou a história está mal contada o que seria uma grande bronca ou então, sem menosprezar as gritantes dificuldades que atingem a maioria dos portugueses, haverá que passar a dar mais atenção a este novo tipo de exploração que agora súbita e revoltadamente descobrimos.

A segunda nota prende-se com a prosa biliosa (como é costume) que o jornalista António Ribeiro Ferreira esparramou numa coluna do “DN” de 14/9 e onde, a propósito de reivindicações e aumentos salariais entre 3,8 e 5%, logo sentenciou que os sindicatos são “organizações que neste mundo em mudança se destacam pelo seu reaccionarismo e irresponsabilidade”. E logo carreou mais umas achas para cima dos modernos “bombos da festa”, ou seja os trabalhadores da função pública, segundo o discurso em voga, essa cáfila de malandros, burocratas e gulosos, salvo se algum for nosso pai ou filho e se alguma for nossa irmã, cunhada ou prima.

Repetindo o que já por três ou quatro vezes escrevemos (como o motivo dos nossos comentários permanece tristemente inalterável, porque raio havemos nós de inovar?), a verdade é que nós não partilhamos de uma visão de tal maneira rígida ou esquemática que nos leve a dizer que, de forma mecânica e sem excepção, o nível de rendimentos de uma pessoa basta para explicar as opiniões que emite. Mais: nós até sabemos perfeitamente que há cidadãos com altos rendimentos e elevado estatuto social que sustentam opiniões e apoiam projectos políticos das quais não retiram nenhuma vantagem material e que até podem vir a conflituar com os seus directos interesses económicos.

Mas, apesar disto tudo, a verdade é que continuamos a ouvir em algumas vozes tanta insolência, agressividade, desprezo e insensibilidade face à situação e problemas reais da generalidade dos trabalhadores portugueses e que, por isso, consideramos legítimo continuar a dizer que seria bom – e quase tudo ficaria logo esclarecido – que, em nota de rodapé a essas opiniões, os seus autores contassem quanto ganham.

Entre outras coisas, talvez a opinião pública ficasse a perceber que não admira que quem ganhar 600, 800 ou 1.000 contos mensais, por muito que compreendamos que o dinheiro atrai proporcionais despesas, considere igual ao litro que os aumentos salariais sejam nulos ou de 1, 2, ou 3%. e acuse de “reaccionarismo” e “irresponsabilidade” os sindicatos que, pelos vistos, cometem o imperdoável crime de defender centenas de milhar de trabalhadores que, com toda a probabilidade, não têm o salário de António Ribeiro Ferreira.