22 de Janeiro de 2003
A propósito do negócio da venda da Quinta da Falagueira na Amadora, muito se tem dito acerca da sua possível relação com a amizade entre o Primeiro-ministro e o irmão do dono da empresa envolvida, e sobre a sua coincidência com a famosa viagem de fim de ano a Angra dos Reis. Disseram uns que o Primeiro-ministro tem direito às suas amizades. Disseram outros que, tal como à mulher de César, ao Primeiro-ministro não basta ser sério; é preciso parecê-lo. Mas não é disso que trata este escrito.
É que talvez tenham passado despercebidos a muitos os inacreditáveis contornos deste negócio.
A Quinta da Falagueira era o imóvel mais valioso incluído na listas de património do Estado, para venda ao desbarato em hasta pública nos últimos meses de 2002, de forma a angariar mais alguns milhões de receita extraordinária e fazer baixar o sacrossanto défice. Trata-se de um imóvel de elevado interesse público, por se situar perto da futura estação do Metro da Falagueira e por estar ali prevista a instalação de diversos equipamentos públicos, como os novos paços do concelho ou o novo tribunal da Amadora.
Não tendo surgido compradores, o Estado (leia-se Ministério das Finanças), resolveu vender o imóvel a uma empresa pública, a CONSEST, fazendo reflectir o produto da “venda” nas contas de 2002. Mas se já é insólita esta venda do Estado a si próprio de um imóvel até então destinado a fins de uso público, é no mínimo extraordinário o acordo que a CONSEST celebrou com uma empresa imobiliária privada (a tal de Vasco Pereira Coutinho).
Senão vejamos. O acordo visa a exploração imobiliária da Quinta da Falagueira; isto é, o Estado subtrai o terreno aos fins a que estava destinado e faz dele um instrumento de especulação imobiliária, actividade que, convenhamos, não parece estar no âmbito das funções públicas. A leitura do contrato demonstra, para além do mais, que a percentagem do lucro do empreendimento que caberá à empresa pública será tanto maior quanto mais elevado for o índice de construção.
O acordo não comporta qualquer risco para o parceiro privado, já que o contrato prevê a repartição dos lucros que venham a existir, mas deixa à empresa pública todos os encargos com a prossecução do negócio, dizendo ainda expressamente que “O eventual resultado negativo do consórcio será suportado exclusivamente pela CONSEST”.
Finalmente o acordo assenta no pressuposto de que a rendibilidade do negócio depende de uma alteração do PDM local, de modo a permitir o aumento da área de construção, o que curiosamente parece ter merecido já o assentimento solícito do Presidente da Câmara da Amadora, entretanto rendido aos encantos da especulação imobiliária e certamente já esquecido da indignação com que reagiu à decisão do Governo de colocar o terreno à venda.
O Governo jura a pés juntos que tudo isto é legal. Mas mesmo que o seja é absolutamente imoral que o Estado proceda como um vulgar especulador imobiliário, ao mesmo tempo que serve de angariador de bons negócios sem risco para empresas privadas, sejam elas de amigos do Primeiro-ministro ou não.
Quem perde, claro, é a população da Amadora, a quem a convergência de interesses do PS na Câmara, do PSD no Governo e dos interesses imobiliários privados, quer impor a especulação imobiliária, sacrificando o interesse público que deveria presidir à gestão e ordenamento do território.