26 de Março de 2004
Embora o assunto nos tivesse ocorrido há algum tempo, a verdade é que só o recente e descaradíssimo apelo de Ferro Rodrigues a um pretenso “voto útil” no PS nas eleições para o Parlamento Europeu nos faz deixar anteriores pudores e contemplações e vir evocar publicamente um episódio ou história que tem algum significado político.
Acontece que, como os jornais relataram e as televisões exibiram, no dia 27 de Fevereiro ocorreu na AR uma troca de mimos entre Durão Barroso e João Cravinho a propósito das nacionalizações decididas em 11 de Março de 1975. No essencial, o Primeiro-Ministro acusou Cravinho de ter sido um dos Ministros que assinou os respectivos decretos do que chamou “uma das páginas mais negras de Portugal” e, em resposta, o deputado do PS, além de referências ao passado maoista do seu interlocutor, replicou, segundo o “Público”, “ que foi o facto de terem sido feitas que permite que agora o Governo privatize para equilibrar as contas”.
Acontece também que, quando vimos esta cena, sentimos logo que não só os argumentos nos pareciam familiares como tínhamos qualquer relação pessoal com eles.
E, de facto, acabámos por descobrir que, em crónica publicada no “Avante!” de 3.04.1997, escrevemos a dado passo que “vivemos no país maravilhoso em que é possível o Ministro das Finanças (Sousa Franco) que mais brutalmente tem recorrido às receitas das privatizações como única forma de cumprir um dos critérios de convergência nominal vir ingratamente dizer que as nacionalizações «tanto agravaram o nosso atraso económico e social», esquecido que só privatiza (delapida) hoje porque alguém nacionalizou anteontem”.
A moral da história é obviamente a de que, com um intervalo de sete anos, temos hoje um Primeiro-Ministro do PSD que fala das nacionalizações em tom parecido com o de Sousa Franco Ministro das Finanças de um governo do PS e que temos hoje um deputado do PS que responde ao Primeiro-Ministro como um comunista já respondera no passado ao actual cabeça de lista do PS para o Parlamento Europeu, Sousa Franco.
E, podendo à primeira vista parecer que não, a verdade é que isto tem tudo a ver com a distância que sempre separa o discurso do PS na oposição da sua acção no governo, o que também ajuda a desmontar todo o sofisma da sua desmedida ambição de ser merecedor de um alegado “voto útil” que levasse a uma extrema rarefacção de votos nas forças à esquerda do PS.
Com o forte apelo ao suposto “voto útil” no PS para “derrotar a direita” – que seria útil para o PS não duvidamos, que fosse útil para quem na esquerda mais consequente o desse, já é coisa em que não acreditamos – fica claro qual é a táctica eleitoral do PS.
De facto, a não ser a revisão do Pacto de Estabilidade em cujo parto o Ministro Sousa Franco participou empolgadamente, no plano da finalidade específica das eleições para o Parlamento Europeu, o PS e os seus candidatos não têm nenhumas matérias essenciais de passado, de presente ou de futuro da integração europeia para divergir da coligação PSD-CDS/PP.
Basta aliás, relembrar a catrefa de anos em que 11 dos 15 países da União Europeia foram governados por partidos socialistas ou social-democratas e as políticas agressivamente neoliberais que também então foram seguidas, exaltadas e aprofundadas para se perceber que nem com a mais vetusta candeia nem com a mais moderna lanterna se consegue, neste domínio, descobrir qualquer divergência de fundo entre PS e PSD.
Assim sendo, o PS decidiu optar pela tentativa de capitalização nas eleições para o Parlamento Europeu de um justo descontentamento popular e de um merecido descrédito do governo ( para os quais aliás contribuiu fracamente) e, conexamente, apostar na desavergonhada exploração e fomento desse monumental equivoco que consiste em pensar que só há derrota eleitoral da coligação de direita se o PS lhe ficar à frente.
A verdade, porém, é outra. É que, como felizmente não vivemos no sistema político de apenas dois partidos que o PS manifestamente apreciaria, a verdade é então que a derrota eleitoral da direita em 13 de Junho fica plenamente assegurada desde que fique reduzida a uma minoria de votos face a uma maioria de votos resultante da soma das votações do conjunto dos partidos da oposição, ou seja, a situação exactamente contrária à que permitiu a formação e vida do actual governo.
E é também isto que faz com que os votos na CDU sejam absoluta e inquestionavelmente seguros e úteis para derrotar eleitoralmente a direita e condenar a sua política e, mais ainda, sejam de uma decisiva e incomparável utilidade para a luta por uma mudança de políticas em Portugal e na Europa.