&quot;E Feliz Ano Novo!&quot;<br />António Abreu na &quot;Capital&quot;

Com tal afirmação, mais ou menos rotineira, mais ou menos sentida ou desejada, nos dirigimos uns aos outros , nesta época do ano, em que , por força do nosso calendário, saltamos um dígito e lhe associamos um recomeço de vida, ficando, em geral, mais sensíveis aos problemas dos outros e ao reforço dos laços com os que nos são mais próximos.

Importa, porém, que não iludamos que a persistência de problemas e angústias não resultam de causas naturais, de factores incontroláveis que nos remetam, em exclusividade, ao apelo à protecção divina, nem se resolvem com discursos e jantares com os sem-abrigo e outros injustiçados do sistema. Quando o Cardeal de Westminster dizia há dias que “a guerra não é inevitável” e o Patriarca latino de Jerusalém criticava o impedimento de permitir a Yasser Arafat deslocar-se à capela da Natividade, não o se viravam para os Céus mas para os Homens.

Os grandes problemas, mas também as grandes realizações, são obra do ser humano e afectam o ser humano. Não desconsiderando outras abordagens e o fundo verdadeiro da intencionalidade de alguns actos, importa reconhecer que está nas nossas mãos, na nossa vontade, na diversidade das nossas formações, inserções sociais, credos, ideologias, na nossa vontade de agir, na identidade dos nossos projectos, a possibilidade de atingir outros patamares de felicidade e realização para todos.

Mas também está na nossa disponibilidade para convergir com outros. Com a humildade de somar às nossas certezas, convicções e conhecimentos , as incertezas, o facto de não sabermos tudo, nem podermos garantir a linearidade, e mesmo, a consequência dos projectos que desencadeamos. A ninguém deve, porém, ser permitido silenciar as identidades e os direitos de uma classe ou de um povo, mentir e distorcer intenções, falsificar argumentos, manipular consciências, provocar enormes sofrimentos.

Entramos no novo ano, acompanhados de grandes receios, mas também de disposições de lutar, com a força que temos, e a certeza de que não estamos sós.

O Sr. Bush quer fazer guerra ao Iraque, contra tudo e contra todos, contra um povo e um país, contra as nossas sensibilidades e inteligência. Pelo seu poder imperial. Pelo petróleo. Baseado no grande cinismo de quem é a outra face do terrorismo, que diz combater mas que sabemos ter saído do seu ventre . Associado a um puritanismo e reaccionarismo, incompatíveis com as tradições e cultura norte-americanas .E poderá largar também os mísseis na Coreia do Norte. Um homem e um grupo arvoram-se o direito de dar ordens para matar.

Na Venezuela, prepara-se um novo golpe. Um presidente eleito pela maioria do povo, que foi deserdada, é confrontado com a classe média-alta que disso beneficiou, com o jet-set que vem para a rua bater panelas. Num arrepiante paralelo com o Chile de Salvador Allende, onde a administração norte-americana conspira em países vizinhos com os chefes golpistas, organizando o boicote económico. Mais uma vez o petróleo. Mas também a resistência àquele tipo de integração económica do continente protogonizada pela ALCA .

Hoje não existe só Cuba e Fidel. Chavez, Lula e Gutierrez foram eleitos na Venezuela, Brasil e Equador. As lutas camponesas alargam-se na Bolívia e no Paraguai, a Frente Ampla progride no Uruguai, no Peru a Esquerda Unida reorganiza-se, no Mexico o PRD mantem a direcção do importante distrito federal da capital. A guerrilha disputa o poder da direita fascista e dos seus paramilitares na Colômbia. É certo que os respectivos percursos políticos são diferenciados mas a determinação em deter a colonização ganhou novas forças. Mas os golpistas têm muita força na Venezuela, onde o poder judicial os deixou em liberdade depois do último golpe e os sindicatos corruptos e parte dos chefes militares estão com eles.

Por parte dos poderosos, a legitimidade do voto popular é novamente questionado, os direitos humanos reintroduzidos na gaveta e o diktat político usado abertamente. O nosso pensamento está com a Venezuela de Bolivar, com o seu povo e as centenas de milhares de portugueses que ali vivem e trabalham há dezenas de anos e sentimos vergonha com a voz-off da RTP que, com pretensa ironia designou a ceia de Chavez como irreal.

Por aqui , o governo prossegue, de forma concentrada, as “grandes reformas”, na segurança social, na saúde, na legislação do trabalho, na redução cega do deficite, pondo também em causa importantes investimentos nas autarquias. Com um sentido de classe indisfarçável. Personagens, representando por vezes, directamente os interesses de grandes grupos económicos, a partir de S. Bento, começaram por lançar uma vaga alarmista que criasse um ambiente psicológico de crise que levou à retracção do consumo e investimento privados, que induziu depois receios nos investidores e travou a economia e as receitas, o que os levou a justificar mais privatizações (além dos anéis tiraram-nos os dedos) e os leva a tentar, com o apoio mediático de alguns “ gurus “ sérias regressões na Educação.

As reformas tiveram “actualizações” negativas, as pensões mínimas viram os aumentos adiados. As consequências do pagamento de portagens na CREL e da alienação da rede fixa de telecomunicações não foram ainda avaliadas. Vêm aí novos e graves aumentos de preços apesar dos telejornais terem há dias aberto com a importante notícia de que a gasolina ia descer...1 cêntimo por litro!

Pelo caminho deixaram ficar as promessas eleitorais não cumpridas.

Na CML prometeram 500 realojamentos até ao Natal e foi o que se viu....

É isto que nos espera em 2OO3.

Há dias, Bagão Felix mentiu aos portugueses sobre a greve geral que um milhão e setecentos mil trabalhadores fizeram em cerca de duas mil e seiscentas empresas, contrapondo-lhe dados incomparáveis de uma sondagem. A greve geral que todos viram e sentiram e que nunca teve como objectivo paralizar todo o País. Mas que foi um sério aviso ao Governo. A que os olhos do Ministro reagiram com ódio.

Desta vez, todos esperamos que da corrupção do futebol não se grite apenas“ fora o árbitro”, que da pedofilia não sejam apenas acusados os bibis, que os cambalachos e “ballets roses” contemporâneos revelem a cara dos seus maiores clientes e protogonistas. Para que não sejam apenas detidos os dealers e os ladrões de bicicletas.

É certo que virão por aí uns faits-divers, como a recorrente e nebulosa “reforma do sistema político”, espécie de mézinha milagrosa inventada por quem está no poder para disfarçar a impopularidade da sua política e acentuar a bipolarização. Nesta altura do campeonato, vamos a vêr quem alinha. Há coisas que se não esquecem.

Apesar de tudo, e porque todos estamos cá, Feliz Ano Novo de 2003!