6 de Dezembro de 2002 Se dúvidas houvesse sobre as profundas contradições na política comunitária, aí estão as recentes decisões da Comissão Europeia sobre o Pacto de Estabilidade a confirmá-lo. Após as declarações dos Comissários e do próprio Presidente Prodi, que classificavam o pacto como um instrumento "estúpido" e "medieval", a primeira coisa que se pode dizer das propostas é que a montanha pariu um rato. Quando o que se impunha, no mínimo, era a suspensão do Pacto de Estabilidade para possiblitar uma profunda revisão dos seus objectivos, critérios e fundamentos, partindo do princípio que os orçamentos dos Estados-membros devem reflectir as necessidades de cada povo e de cada país, e não os interesses dos grupos financeiros a que o Banco Central Europeu procura dar expressão, o que aparece é apenas a defesa de alguma flexibilidade, e mesmo essa mais para os países de maiores recursos do que para os de economia débil. De qualquer modo, é essencial sublinhar que não basta defender alguma flexibilização na aplicação do Pacto de Estabilidade. Numa União Europeia que se diz preocupada com os problemas sociais, empenhada na criação do emprego e no combate à exclusão social e à pobreza, não se pode continuar a considerar prioritária a manutenção da estabilidade monetária a todo o custo, quando se sabe que as consequências serão mais desemprego, restrições salariais e mais pobreza. Não se trata, pois, de defender apenas alguma flexibilização dos critérios do Pacto de Estabilidade e da aplicação dos programas de estabilidade e crescimento que cada país teve de apresentar. É essencial apostar numa profunda revisão. Mas, mesmo para quem defende apenas alguma flexibilidade, é duvidoso o alcance da "flexibilidade introduzida" pela recente decisão, quando se reforçam e criam novos factores de rigidez e se insiste na "estabilidade do Pacto". Vejamos alguns aspectos da dita flexibilização. É certo que se passa a considerar o défice estrutural, ou seja, o défice ajustado ao momento do ciclo económico. Mas os seus benefícios reais dependem muito do método e dos critérios do cálculo estatístico. Certamente que o governo português deve ter em conta esta possibilidade para, desde já, procurar introduzir os ajustamentos necessários no Orçamento de Estado, e não continuar a insistir no argumento da rigidez dos critérios de convergência nominal do Pacto de Estabilidade. Registe-se que a utilização deste argumento pelo governo apenas serve de pretexto para impor uma política classista, através da redução do poder de compra das populações, dos fortes constrangimentos aos investimentos em obras públicas, do fim da bonificação das taxas de juro para o crédito à habitação de jovens carenciados, das restrições financeiras à gestão municipal, do agravamento da carga fiscal para trabalhadores e micro, pequenas e médias empresas, enquanto fez exactamente o contrário na admissão de novas vantagens fiscais para os offshores, sociedades financeiras e ganhos em bolsa. Fica claro que as decisões da Comissão Europeia sobre o Pacto de Estabilidade permitem uma política algo diferente. Mas também servem de capa para a actual. De qualquer modo, é inaceitável que seja exigido aos países não cumpridores do requisito de uma situação "próxima do equilíbrio ou excedentária", uma redução do défice estrutural de 0,5% do PIB anual até atingirem o objectivo. É um esforço enorme, sobretudo quando se trata de economias débeis, como Portugal. Igualmente inaceitável é a interpretação da possibilidade de flexibilização através da qualidade de certa despesa. Quando a Comissão afirma que se pode admitir um desvio temporário do défice, caso a dívida pública esteja abaixo dos 60%, um governo com uma orientação diferente podia utilizar este argumento para uma política algo expansionista, e não para continuar uma política restritiva e contra os trabalhadores e a maioria da população, como está a acontecer em Portugal. O que a Itália, que já vai com uma dívida superior a 110% do PIB, não poderia fazer. No entanto, a verdade é que a Comissão Europeia, ao admitir que o orçamento deve dar incentivos para a aplicação da chamada "estratégia de Lisboa", está, mais uma vez, a apostar numa contradição de efeitos negativos. É certo que as reformas estruturais, aí contidas, não são apenas liberalizações e desregulamentações. Também se fala da necessidade de criar pleno emprego e de combater a pobreza e a exclusão social. Mas, como é conhecido, esta é uma área completamente esquecida das práticas comunitárias e nacionais. Por outro lado, a insistência nas liberalizações em sectores e serviços públicos básicos fundamentais tem servido para aumentar o desemprego e piorar as condições de vida das populações, enquanto permite maiores lucros aos grupos económicos e financeiros que se apoderam desses sectores e serviços. Daí que esta decisão da Comissão acabe também por criar constrangimentos às contas dos Estados e à sua capacidade de endividamento, mesmo que esse endividamento seja para o investimento público. E, designadamente, quando reforça essa posição com a limitação a uma política expansionista num período favorável, esquecendo que há países, como Portugal, com debilidades tão fortes que precisam de estímulos para crescer mais rapidamente, de forma a atingir a média comunitária, e não continuar a divergir, como está a acontecer neste momento.