de Dezembro de 2002 Vamos fazer de conta que esta coluna pertence a uma revista em, papel couché, impressa a quatro cores, com anúncios de espampanante grafismo e fotos variadas de jet sets de IRS variado e que, inevitavelmente, incluiria uma coluna (ou uma página, ou duas) de sugestões de prendas do Natal. E assim, e porque é Natal e se podem dar presentes até aos Reis, vou escrever sobre um disco, coisa que, tanto quanto me parece, a custo de bastante esforço, nunca fiz nos anos que este rés-do-chão cronicante vai levando...O disco é a reedição em CD dum marco importante da música portuguesa, o LP de Amália Rodrigues que ficou conhecido por «busto», do propriamente dito da autoria de Joaquim Valente que constituía o tema central da capa. O «busto» assinalou o início da frutuosa colaboração de Amália com Alan Oulman, que, por sua vez, concederia uma projecção inteiramente nova, não apenas à cantora, enquanto intérprete, mas também ao seu trabalho com a poesia portuguesa.Quando do desaparecimento de Amália escrevi, a convite de José Carlos de Vasconcelos, um texto para o JL, onde alinhavava a opinião de que, mais do que incensar Amália e adjectivar a sua voz ou a sua capacidade interpretativa, se tornava indispensável estudar Amália. Compreender onde residiam e como se manifestavam as várias expressões dos seus múltiplos e influentes talentos, das novas fórmulas interpretativas à genialmente intuitiva capacidade para escolha do reportório.Não se tratava, em rigor, de uma preocupação nova. As expressões de cultura popular (e muito particularmente as musicais) vivem a fragilidade da sua essencial transmissão oral. A ligação profunda ao quotidiano e à vida popular que faz a sua força constitui igualmente um constante risco: essencialmente fruto de condições de vida, de universos de convivialidade, de estádios culturais definidos no tempo, as expressões musicais que os reflectem tendem à extinção quando eles desaparecem.Sem fixação escrita, frequentemente sem sequer padrões definidos de forma clara, quando a vida muda _ mesmo que por positivo progresso _ as suas expressões passam a memórias, como aconteceu a tantas manifestações de música tradicional dos meios rurais.A nova edição do «busto» vale, naturalmente, pela qualidade digital, igualmente pelo facto de se lhe acrescentar uma gravação de Amália que, embora gravada em Portugal, nunca fora editada para o mercado português, mas sobretudo pelo pequeno single que, além de uma preciosa entrevista com a cantora, Oulman e Mourão Ferreira feita por Henrique Mendes nos anos 60, inclui três gravações de ensaios com Oulman ao piano.Chama-se o single, com irónica e feliz ideia, «as óperas», qualificação mordaz que os guitarristas de fado _ e particularmente José Nunes, cuja guitarra participou no «busto» e sobre a qual este disco constitui também uma interessante edição _ atribuíam às complexas harmonizações de Oulman, bem diferentes do mais elementar acompanhamento habitual de fado.Como escreve Rui Vieira Nery no folheto de apresentação, trata-se de «um documento tão precioso como comovente, como o são todos os que nos abrem desta forma uma espécie de janela privilegiada sobre o processo de trabalho de um grande artista».E é fascinante verificar, uma vez mais, que atrás de uma obra se perfila sempre, sempre, o trabalho.P.S.: A partir da remodelação do DN em 1 de Janeiro, as crónicas de Ruben de Carvalho passarão a ser publicadas, em novo formato, nas edições de sábado e domingo. [email protected]