&quot;Acabar com a Educação?&quot;<br />António Abreu na &quot;Capital&quot;

As manifestações dos estudantes do ensino superior nos últimos dias exprimem a insatisfação mais vasta que atravessa as comunidades universitárias e educativas em geral. O governo da direita aumentou as propinas, fixou-lhes um valor mínimo e máximo mas remeteu para as diferentes instituições a responsabilidade de decidir aumentos concretos e variáveis. Pretende assim deslocar o odioso da decisão para os órgãos universitários, onde estão representados os diferentes corpos, fazê-los assumir responsabilidades de, por essa via, atenuarem o crescente subfinanciamento, a asfixia de recursos que debilitam a qualidade de ensino nas instituições. E com essa desfocagem de atenções pôr estudantes contra estudantes, estudantes contra professores, uns e outros contra órgãos democraticamente eleitos, abrir caminho a órgãos de composição menos democrática, menos ligados à vida real no ensino e investigação, para “justificar” uma gestão “profissionalizada”. Equiparar ensino público a privado, aproximando o valor das propinas, com o argumento, mais ou menos brandido, de o aproximar dos custos das licenciaturas, é uma expressão da deliberada confusão entre a “liberdade” de ensino e o direito constitucional à Educação, que nega ao Estado a possibilidade de realizar este preceito constitucional fundamental. A gratuitidade do ensino superior é um contributo para a sua democratização, quando são já muito diferenciadas as origens sociais dos estudantes, com consequências nas condições de acesso e sucesso, com consequências nas diferentes possibilidades de suportar os encargos da sua frequência, mesmo quando “gratuito” (livre de propinas). A gratuitidade impõe-se também porque a formação superior conduz a desempenhos com maior produtividade e traduz-se em carreiras contributivas que “pagam” muitas vezes os custos “reais” das formações. Argumentar com estes custos para “justificar” propinas é tão falso quanto o dizer que ninguém deixará de estudar por as não poder pagar. Quem o diz sabe que mente porque a Acção Social Escolar não está garantida, porque se prepara a substituição de bolsas por empréstimos, que cedo endividarão quem cada vez tem menos emprego garantido. A questão do aumento das propinas será apenas uma faceta mas tem que ser por todos compreendida como componente importante duma vasta acção da direita contra o futuro do País. Que já teve expressão em legislação avulsa e procurará consolidar-se com o ajuste de contas com a Lei de Bases do Sistema Educativo de 1986, assunto a que voltaremos em breve nestas colunas.Donde sopram estes ventos legislativos sobre a Educação? Qual o seu sentido? Que papel está destinado ao que foi um direito fundamental consolidado ao longo do século que passou? Estas são algumas das questões que preocupam todos quantos assistem à movimentação de organismos internacionais para que ela, a Educação, deixe de ser esse direito universal, de qualidade, e assegurada como bem público, para se tornar numa mercadoria que se adquire individualmente num mercado de competências, formatadas de acordo com os interesses do poder económico, mais ou menos fragmentadas, mas com as correspondentes certificações de competências... E para que, dados os enormes valores que têm vindo a representar nas últimas décadas os níveis de investimentos e peso no PIB, a Educação possa ser, como outros bens sociais fundamentais, privatizada, deslocando do serviço público para a esfera da “oportunidade de negócios” recursos que todos libertamos... A parte do sistema que permaneceria pública seria tolerada, mas progressivamente sub-investida, em benefício dos privados e com a correspondente degradação de qualidade. Ou então ficaria em trânsito para outros níveis da administração (local) que, mesmo compensados financeiramente com “envelopes” que se manteriam sempre aquém das necessidades e desprovidos de saber-fazer, seriam os coveiros dos níveis de qualidade do sistema. A qualidade seria reservada a ‘élites’ dirigentes, únicas a aceder no futuro a instituições privadas nacionais ou de outros países, centros de “excelência” inacessíveis para a grande maioria dos cidadãos. Os quais seriam remetidos para um sistema público, de menor qualidade, mesmo que cliente do ‘e-learning’, num largo espectro de mercado interessante para as multinacionais. O sistema de ensino contém um apreciável espírito crítico e combatividade nos seus diferentes corpos, que confrontam estas mudanças com resistências que podem constituir um custo político elevado para o governo, que o obrigue a parar ou ser parado. Nesta curva apertada todos assumirão responsabilidades. Vale mais suportar os custos de cerrar fileiras e dizer não, do que soçobrar perante cedências, às quais se seguirão novas cedências, até que a Educação seja vencida e com ela o País.

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