&quot;A maçada da Constituição&quot;<br />Bernardino Soares na &quot;Capital&quot;

No início desta semana o Presidente da República anunciou o envio para fiscalização preventiva pelo Tribunal Constitucional, de mais dois diplomas: a nova lei dos partidos e o Código do Trabalho. Mesmo não tendo havido igual atitude em relação à lei do financiamento dos partidos, e descontando naturais divergências em relação aos pontos em causa, estas fiscalizações respondem positivamente a diversos alertas, do PCP, de outros partidos e de muitos sectores da sociedade portuguesa, para evidentes desconformidades das leis com o texto constitucional.

A Constituição é para cumprir e as leis devem respeitá-la. Acontece que este governo e esta maioria se comportam como se a Constituição se tivesse que subordinar às suas vontades. Uma maioria absoluta não é o poder absoluto, por muito que os seus representantes o desejem. Sistematicamente vão tentando ignorar as normas constitucionais, como se a Constituição fosse agora a nova “força de bloqueio”.

Este Governo, apesar de em funções há pouco mais de um ano, tem já um longo historial nesta matéria. Senão vejamos.

Começou com a lei da televisão e a tentativa de desfigurar o serviço público que a constituição protege. Acabou por ter de recuar.

Houve depois o processo da alteração ao Rendimento Mínimo Garantido, em que se violava de forma grosseira o princípio da universalidade do tratamento dos cidadãos. Teimosamente, e apesar de insistentes avisos na Assembleia da República, a maioria lá impôs a vontade do Governo. Claro que o resultado foi o regresso do processo ao parlamento uns meses depois.

Depois foi o folhetim das alterações ao estatuto dos trabalhadores da administração pública, integrada no Orçamento de Estado para 2003. Mais uma vez o governo não quis respeitar as regras constitucionais, designadamente as que impõem a participação das organizações dos trabalhadores em matéria de legislação laboral. Mais uma vez o Governo saiu derrotado.

Pelo meio houve ainda tempo para o chumbo de regras sobre o domínio hídrico na Madeira, ou do primeiro decreto-lei sobre a questão do casino de Lisboa.

Desta vez trata-se, para além da lei dos partidos (também aprovada pelo PS), de escrutinar várias normas do Código do Trabalho, que logo na Assembleia da República foram apontadas como inconstitucionais. Veremos qual será o veredicto do Tribunal Constitucional.

Entretanto ficam registadas as declarações do porta-voz do CDS que, confrontado com a possibilidade de várias normas do Código de Trabalho serem inconstitucionais, afirmou com desplante que a Constituição não pode ser um obstáculo ao desenvolvimento.

A espantosa afirmação parte obviamente de dois pressupostos errados: o de que o Código de Trabalho trará desenvolvimento e o de que a Constituição não abre caminho a ele. Na realidade é ao contrário. A Constituição, apesar de sucessivas revisões à direita, mantém um importante património de protecção dos direitos dos trabalhadores, com a dignidade de estarem incluídos no capítulo nobre dos Direitos, Liberdades e Garantias. E o Código de Trabalho pretende perpetuar e acentuar um modelo de baixos salários e direitos dos trabalhadores que tem grandes responsabilidades na situação em que o país está.

Mas é também extraordinária, e demonstra aliás o sentido de democracia de quem o defende, esta ideia de que para quem manda não há regras e de que a Lei Fundamental do país é apenas um estorvo, um empecilho, um atraso. Numa palavra: para o Governo a Constituição é uma maçada.