de Dezembro de 2002
Não sendo a mais relevante, a verdade é que a «solução» para o 2.º canal da RTP proposta pelo Governo é, nas «Novas Opções para o Audiovisual», o que suscita mais atenção. Expressa numa fórmula bizantina, consiste na opção «pela sua entrega à sociedade civil», acrescentando-se que «entre o Estado e os privados optámos pela sociedade civil».
A expressão «sociedade civil» carece de qualquer rigor conceptual e, nomeadamente, jurídico.
A procurar-se-lhe uma origem, é curiosamente na reflexão hegeliana e marxista que ela pode ser encontrada, reflectindo a tentativa de definição do conjunto da sociedade afastado do exercício de um poder político exercido pelo Estado oligárquico de então, inteiramente dominado pela triunfante burguesia financeira e imperialista.
Os regimes fascistas e autoritários do princípio do século deram ainda alguma operatividade ao conceito, mas é evidente que o processo de democratização dos aparelhos de Estado alterou todo o quadro. De aparelhos exclusivamente ao serviço dos interesses das classes dominantes, por pressão da luta dos trabalhadores e da esquerda em geral, os Estados adquiriram novos contornos. Não apenas certas prestações de serviços colectivos exigidos pelo desenvolvimento científico e técnico (educação, investigação, saúde) ou abandonados pelo capital (transportes, comunicações, menos lucrativos pelas imposições da sua importância social), mas sobretudo assumindo responsabilidades reguladoras de abusos da exploração, tornando-se garante de direitos conquistados e interventor no atenuar das desigualdades.
Ao procurar hoje qualquer definição para o conceito de «sociedade civil» a única minimamente plausível é a de que a constitui tudo o que, de forma organizada ou não, se encontra fora do âmbito do aparelho de Estado.
Ora, como é evidente, no quadro de um Estado democrático de direito, a tal «sociedade civil» é o espaço de todas as desigualdades, nomeadamente as económicas _ mas não só: teoricamente, um sem-abrigo é tão «sociedade civil» quanto um administrador de um banco, mas a sua proximidade do aparelho de Estado é substantivamente diferente.
O conceito «sociedade civil» acaba assim por se encontrar no eixo da intensa luta ideológica travada nas últimas décadas entre o neoliberalismo e o que se convencionou designar por Estado-Providência.
O incensar da ubíqua «sociedade civil» tem acompanhado o discurso do «menos Estado», correspondendo ao esforço de desmantelar todos os direitos (sociais, laborais, culturais, etc.) conquistados ao longo do século passado e, essencialmente, liquidar a sua garantia pelo Estado democrático.
Retirar, por exemplo, a saúde à gestão do Estado para a entregar à «sociedade civil» é puramente sinónimo de a retirar do plano dos direitos universais para o campo das desigualdades e dos privilégios. Neste sector, o PSP e o PP não têm escrúpulos em escrever privatizar, ou entregar ao capital privado. Na sensível e mais exposta televisão, recorre-se à eufemística «sociedade civil».
A privatização segue dentro de momentos.