&quot;&#8220;Ensaio sobre a lucidez&#8221; ou como a Cultura vem em ajuda da Política&quot;<br />António Abreu na&quot;Capital&quot;

Não vou votar em branco porque sei em quem vou votar. Porque o meu partido é o melhor. Não teve responsabilidades de governação nem desempenho no Parlamento Europeu que possam constituir motivo para o voto branco. Bem pelo contrário, é do seu aumento de influência política e eleitoral que pode ter outra viabilidade uma mudança de políticas que, há um quarto de século, têm desiludido tanto os portugueses e quebrar com o cinzentismo deste prolongado “centrão”.

Isso é uma coisa. Outra, bem diferente, é sublinhar que foi uma noite memorável a da apresentação do novo livro de José Saramago na passada 2ª feira.

Pela intencionalidade do escritor e respectivo impacto nacional. Pela troca de argumentos entre ele, Mário Soares, Marcelo Rebelo de Sousa e José Barata Moura. Pelo interesse que suscitou nos mil e quinhentos presentes e na audiência do directo em rádio. Pelo contributo cultural à reflexão política, sempre possível mas neste caso garantida pela projecção e experiência de Saramago como escritor e como político.

Foi um acontecimento que terá consequências e que se prolongará em dezenas de pontos do país onde estas sessões de apresentação prosseguirão nas próximas semanas.

Não duvido de que será um importante factor de politização, de reflexão com impacto no exercício da cidadania, de abertura dum espaço para a vertente cultural da democracia.

Saramago, num rasgo de imaginação bem assente nos dias de hoje, questionou a democracia, que tem sido considerada como intocável.

Dizendo que está bloqueada. Questionando-a: Porquê? Para quê Para quem?. Assinalando que os governos são correias de transmissão de um poder económico, não democrático, que no país e internacionalmente limitam o alcance e realização das promessas eleitorais de quem se submete a sufrágio. Que institucionalizam graves regressões em conquistas quando, por exemplo, institucionalizam o emprego precário. Ao provocar a reflexão sobre o voto branco como arma que 600 mil espanhóis já utilizaram nas suas últimas eleições e sobre a reacção que teriam os poderes públicos face a um número significativo desses votos.

Com isto pretendeu que a discussão sobre a democracia fosse mais terra-a-terra e menos naquele plano etéreo e intocável em que correntemente os fazedores de opinião a colocam. Colocando-se, simultaneamente, fora e dentro do sistema.

Mário Soares contestou o voto em branco e fez nova tentativa para reabilitar os socialistas das práticas de direita que têm tido, esquecendo que o estado- providência se desenvolveu muito à custa da competição com outras sociedades que não souberam consolidar um sistema político alternativo. E que depois delas soçobrarem, todo o sistema de direitos dos trabalhadores no capitalismo ficou debilitado. Mas numa intervenção lúcida, com que em muitas coisas estaremos de acordo.

Marcelo Rebelo de Sousa assinalou, justamente, que a democracia não é uma entidade pairante e que se sujeita a degenerescências ou desequilíbrios resultantes duma maior rapidez na consolidação do poder económico transnacional do que se constróem redes sociais transnacionais. E lamentou-se, dizendo que era sua “tragédia” pessoal que, sendo um homem de direita, saber que é à esquerda que se travam estes debates e não no seio da direita.

Barata Moura, que questionou a atitude do voto branco, do gritar, do “uivar”, sem construção de alternativas para transformar o real.

Foi com ele que Saramago mais discutiu. E como compreendemos que assim tenha sido!...Porque, sem desconsideração pelos outros, essa é uma discussão cara à esquerda onde militamos ou com quem estamos solidários. Essa é a discussão dos que sentem a necessidade de os seus gritos (uivos) serem ouvidos. Porque muitas promessas não têm correspondência com as práticas políticas e à custa disso os valores da liberdade e da democracia se vão esvaindo, abrindo as portas a novos demagogos e populistas. Porque esses valores que esperaríamos que fossem trabalhados por todos, o não são. Porque reconhecemos que só uma pequena parte da sociedade nos educa neles. Porque sabemos da importância de educar os nossos sentidos democráticos para se atingir esse outro patamar da democracia, mais avançado e não mais empobrecido como alguns, à espreita, desejam.

Mas só uma leitura e um medo primários dos guardiões do “sistema” podem ver neste livro um apelo ao voto em branco. Não tenho procuração do autor e sou livre de ter o meu entendimento sobre ele. Sendo uma provocação, um contributo importante para uma polémica em curso, é simultaneamente um apelo à cidadania e não ao afastamento dela.

Pobres dos espíritos os que o entenderem como tal. E dos que confundem ficção e realidade.

O escritor tem uma grande responsabilidade perante os leitores e apostou o seu prestígio nesta obra. Outros fizessem o que lhes competia com os votos que arrecadam e de que depois se esquecem...

A viagem por este livro faz-se numa noite, com entusiasmo.

Da eleição repetida em que aumenta o número de votos brancos da cidade insurgente à declaração do estado de sítio. Da saída da cidade do governo à saída e regresso de uma parte da sua população. Da demissão do presidente da Câmara, que não aceita as pressões do Ministro do Interior para que os seus trabalhadores continuem em greve, à demissão e morte do comissário encarregue de arranjar culpados. Das manobras no Conselho de Ministros ao Presidente da República à beira de um ataque de nervos. Da bomba que o governo mete para culpar a cidade insurrecta à contra-informação sobre a responsabilidade do movimento e assassinato da “culpada” que a polícia fabrica por ordem do ministro.

Ensaio, romance, fábula, provocação. De tudo isso este livro será um pouco. Para bem da lucidez e de novas atitudes políticas que encontrem nas pessoas o seu ponto de partida e de chegada.