&quot;É a política, inteligentes!&quot;<br />Vítor Dias no &quot;Semanário&quot;

Passando em revista umas boas dezenas de comentários, opiniões e debates em torno da última crise política e do seu anunciado desfecho, há dois traços gerais que vivamente nos impressionaram e em relação aos quais é importante manifestarmos uma viva discordância. O primeiro – e é o menos importante ou, pelo menos, o que tem menores consequências para o futuro – reporta-se ao facto de quase toda a gente que emitiu opiniões de apoio à decisão do Presidente da República, designadamente a que se situa à esquerda mas não só, o ter feito deixando quase no ar a ideia de que sempre tinha considerado insustentável a manutenção Governo até 2006 e que considerava indispensável a convocação de eleições legislativas antecipadas.

Acontece porém que, pura e simplesmente, isso não corresponde à verdade dos factos. Com efeito, a partir do momento em que, em Julho passado, o PR optou por empossar um outro governo dirigido por Santana Lopes, desde forças políticas como o PS e o Bloco de Esquerda até diversos comentadores, todos passaram a falar como se nos tivéssemos de resignar a gramar o Governo PSD-CDS até ao final da legislatura e só o PCP manteve como objectivo político – e publicamente enunciado – alcançar a dissolução da AR antes de o PR perder o respectivo poder. E isto para já não falar de quantos, nomeadamente na área do PS, ainda uma semana antes dos últimos e mais grotescos episódios se empenhavam em insinuar que uma dissolução da AR seria favorável a Santana Lopes e o que o melhor era mesmo deixar o PSD, o CDS-PP e o seu governo fritarem em lume brando até Outubro de 2006, posição esta que merece ficar para a história como uma imperdoável insensibilidade perante os sofrimentos e agressões causados à maioria dos portugueses pela desastrosa governação da direita.

O segundo traço que nos impressionou desfavoravelmente em muitas opiniões emitidas nas últimas duas semanas foi a obsessão em eleger as sucessivas “trapalhadas” governamentais ocorridas nos últimos quatro meses como o quase único fundamento para a dissolução e como a grande explicação para a crise e fracasso das soluções governativas originárias da maioria PSD-CDS.

É por isso obrigatório dizer que se trata de um quadro analítico e interpretativo filho de uma impressionante ligeireza e superficialidade, e isto se não for filho de coisa pior, como adiante veremos.

Na verdade, não nos passa pela cabeça ignorar o papel desempenhado pelas “trapalhadas” – até pelo seu valor simbólico e pelo devastador efeito que os “media” potenciam – no desfecho que a decisão do PR consubstancia. Mas isso é uma coisa e outra muito diferente é não compreender ( ou não querer compreender) que as “trapalhadas” do Governo Santana Lopes- Paulo Portas se sucederam a dois anos de um anterior Governo PSD-CDS que geraram um profundo descontentamento popular em razão directa e incontornável da sua gravosa política, que motivaram fortes iniciativas e movimentos de luta e que, já em Julho último, tornavam a interrupção da vida desse governo uma aspiração maioritária na sociedade portuguesa. Ou alguém acredita que, se o Governo Santana-Portas tivesse porventura saído fresquinho de eleições legislativas realizadas em Julho deste ano, teriam bastado as chocantes “trapalhadas” destes últimos quatro meses para ditar novas eleições em Fevereiro do próximo ano, como está agora ensejado?

Assim sendo, é agora tempo de tornar claro que esta concentração de atenções e interpretações quase exclusivamente nas “trapalhadas” corresponde a rasurar, silenciar e ignorar uma política que, ao longo de três anos e entre muitos outros aspectos, conduziu ao aumento do desemprego e ao continuado afastamento da Europa em termos de crescimento, trouxe agravamentos do IRS, optou por importantes quebras no investimento público, impôs um código do trabalho de profundo e intolerável retrocesso, congelou salários da função pública e apertou violentamente o cinto à generalidade dos trabalhadores, levou para patamares de indecência e fúria linhas privatizadoras na saúde e na segurança social, prosseguiu e agravou o saque do património do Estado e engordou as vorazes clientelas do costume.

O problema é que tememos seriamente que esta sobrevalorização das “trapalhadas” e esta rasura da política realizada do quadro das causas do fracasso do governo da direita não seja nada inocente e antes corresponda a uma clara tentativa de condicionar e aprisionar os horizontes e necessidades do novo ciclo político que, com toda a probabilidade, se vai abrir após as eleições antecipadas.

De facto, por via deste tipo de análises exclusivamente centradas nas “trapalhadas”, o que se está a insinuar (e infelizmente é também isso que parece resultar do tipo de discurso que os dirigentes do PS estão a fazer e do ângulo por que criticaram, por exemplo, o Orçamento de Estado para 2004) é que o bom paradigma e a suficiente fasquia para um eventual futuro governo do PS seria o não repetir as “trapalhadas” do Governo Santana-Portas, já podendo entretanto assumir quase todas as políticas do Governo de Durão Barroso e Manuela Ferreira Leite. Só nos faltando dizer, por hoje, que por maior que seja a aspiração a livrarmo-nos da direita no governo ela é perfeitamente compatível com a exigência de uma nova e diferente política em aspectos fundamentais e que há um voto que, mais do que qualquer outro, ajuda a realizar esses dois grandes e inseparáveis objectivos que, recorde-se, têm estado tão presentes no movimento da sociedade portuguesa desde Março de 2002.