Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

"O que se está a passar com o sistema informático dos tribunais assume foros de escândalo"

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Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
«A primeira semana de implementação da reforma do mapa judiciário veio confirmar os piores receios quanto à viabilidade da execução deste modelo de reorganização judiciária no prazo estabelecido na lei que o aprovou.
A indisponibilidade da plataforma informática Citius, a incompletude da migração física dos processos, o desajustamento das instalações judiciárias, a falta de funcionários de justiça e a visibilidade judiciária, mediática e política dos tribunais originou um enorme desgaste no sistema passível de causar danos irreparáveis na confiança que os cidadãos deveriam ter na justiça.»
Não é o PCP quem o afirma. O que acabei de citar é o mais recente comunicado da Associação Sindical dos Juízes Portugueses acerca do descalabro em que se está a traduzir este início de vigência do novo mapa judiciário. Este descalabro era mais que previsível.
Quando o PCP suscitou aqui, nesta Assembleia, a apreciação parlamentar do Decreto-Lei n.º 49/2014, relativo ao mapa judiciário, advertiu para a impossibilidade da entrada em vigor de qualquer reforma em setembro de 2014 e propôs que a vigência de um novo mapa judiciário, fosse ele qual fosse, só se iniciasse em setembro de 2015 para que fossem asseguradas as adaptações necessárias ao bom funcionamento dos tribunais.
A Sr.ª Ministra da Justiça não quis ouvir e a maioria PSD/CDS também não. Não quiseram ouvir os avisos feitos pelo PCP, pela Ordem dos Advogados, pelos municípios portugueses e pelas populações; não quiseram saber das preocupações dos magistrados e dos funcionários judiciais. Afirmou aqui a Sr.ª Ministra da Justiça que os juízes nem queriam ouvir falar em adiar a entrada em vigor da reforma. Afinal, estava a mentir. Sabemos agora que a Associação Sindical dos Juízes propôs uma entrada em vigor faseada a que a Sr.ª Ministra não deu ouvidos.
O que se está a passar nos tribunais neste mês de setembro de 2014 é uma vergonha nacional. O Governo encerra 20 tribunais e transforma outros 24 em meras extensões, mas, ao mesmo tempo, põe tribunais a funcionar em contentores sem um mínimo de condições de dignidade para o exercício da função judicial. Para o Governo, a reforma era inadiável, mas não houve o cuidado de garantir as instalações necessárias para que os tribunais pudessem funcionar.
O triste espetáculo a que o País tem assistido incrédulo desde o início deste mês de setembro é o de ver milhares de processos judiciais a serem transportados de um lado para o outro em camionetas de caixa aberta, carregados às costas por militares, por funcionários autárquicos ou por trabalhadores de empresas privadas.
O Governo reconhece que faltam nos tribunais mais de 900 funcionários para que o sistema possa funcionar em termos minimamente adequados e afirma o compromisso de resolver o problema, mas não resolve. A Ministra da Justiça culpa a Ministra das Finanças, a Ministra das Finanças não faz caso e os tribunais continuam sem funcionários.
O que se está a passar com o sistema informático dos tribunais assume foros de escândalo. Quando se verificou, logo no primeiro dia, que o sistema Citius não estava a funcionar, a Sr.ª Ministra veio minimizar o problema, dizendo que a situação era normalíssima, que as grandes mudanças trazem sempre pequenos problemas e que em algumas horas tudo estaria resolvido e em boa ordem.
Porém, alguns dias passados, foi o próprio Ministério que veio declarar o Citius em estado de sítio e pedir aos operadores judiciários que, pela sua rica saúde, não usassem o sistema. Só o DIAP de Lisboa parece ter escapado ao descalabro pela simples razão de que nunca confiou no Citius e se manteve fiel aos velhos métodos do século XX.
Ontem mesmo, ficámos a saber pela comunicação social que a Ministra da Justiça sabia há mais de dois anos, desde junho de 2012, que o sistema Citius entraria em colapso com a reorganização do mapa judiciário. E ficámos também a saber que a Sr.ª Ministra ignorou todos os avisos e nem sequer deu resposta à carta que recebeu da equipa que criou o sistema, que alertava para os problemas que poderiam surgir e que continha sugestões para a sua resolução.
O que diz agora a isto a Sr.ª Ministra de Justiça? Rigorosamente nada! O sistema colapsou e a Ministra parece ter colapsado com ele. Os tribunais estão parados, os funcionários e os magistrados não podem trabalhar, os processos atrasam-se, surgem problemas gravíssimos relacionados com o decurso de prazos judiciais e não sabemos se a Ministra da Justiça meteu férias ou se está barricada no Terreiro do Paço.
A situação caótica em que os tribunais se encontram por responsabilidade do Governo não prejudica os magistrados e os funcionários judiciais, prejudica os cidadãos, prejudica o acesso à justiça, prejudica o normal funcionamento do Estado e da sociedade.
O mapa judiciário suscita questões de fundo, independentemente das tristes circunstâncias da sua entrada em vigor. As razões de discordância do PCP, dos advogados, dos autarcas e das populações com o mapa judiciário estão para além dessas circunstâncias. Este mapa judiciário prejudica gravemente o direito de acesso à justiça por parte das populações. A justiça fica mais longe e mais cara.
Por isso, o PCP não desiste das suas propostas de alteração a este mapa e, com esse propósito, apresentou já um projeto de lei cuja apreciação ocorrerá aqui no próximo dia 25.
Sucede, porém, que o estado em que os tribunais se encontram, por via da insensata imposição da entrada em vigor do mapa judiciário em 1 de setembro de 2014, exige um sério apuramento de responsabilidades a que a Sr.ª Ministra da Justiça não se pode eximir. Neste sentido, o Grupo Parlamentar do PCP acabou de requerer a realização urgente de uma reunião da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, com a presença da Ministra da Justiça, para apuramento das responsabilidades pelo descalabro em que se encontram os tribunais e para análise das medidas necessárias e urgentes para ultrapassar esta situação.
(…)
Sr. Presidente,
Srs. Deputados Luís Pita Ameixa e Cecília Honório,
Agradeço as questões que colocaram.
Começo pelas questões concretas colocadas pelo Sr. Deputado Luís Pita Ameixa, mas com uma primeira consideração. O Sr. Deputado vem contrapor este mapa judiciário àquele que o Partido Socialista queria implementar quando era Governo. Ó Sr. Deputado, não o aconselhava a ir por aí, porque os senhores não ficam bem na fotografia. É que vamos fazer a comparação entre os tribunais que o PSD fechou, com esta reforma, e os que o Partido Socialista pretendia fechar e chegamos à conclusão de que, entre os dois, «venha o Diabo e escolha!».
Portanto, Sr. Deputado, deixe lá o Governo do Partido Socialista, agora, vamos ajustar contas com este Governo.
Relativamente às perguntas que o Sr. Deputado fez, o PCP não participou na discussão de uma proposta apresentada pelo Partido Socialista para criar uma comissão de acompanhamento desta reforma e pensava que o Sr. Deputado se tinha apercebido porquê. Eu estava nessa reunião em representação do PCP e no momento em que se discutiu essa proposta tive de ir à sala ao lado, à reunião da Comissão de Inquérito de que também faço parte, mas, seguramente, se estivesse presente, teria apoiado essa proposta, sem qualquer problema. O Sr. Deputado já nos conhece há muitos anos e sabe que, no PCP, a ausência momentânea não representa discordância. Nós, se discordamos, dizemos que discordamos e dizemos porquê, não nos ausentamos para fugir a responsabilidades. O Sr. Deputado já nos conhece há muito tempo e sabe disso! Portanto, essa proposta teria, obviamente, a nossa anuência.
O que me surpreendeu foi o Sr. Deputado colocar aqui o dilema: ou a demissão ou a Comissão! Ora bem, então, quer dizer que o Partido Socialista, quando defende a demissão de um membro do Governo, não participa em reuniões com ele? É isso? Nós andamos a lutar pela demissão do Governo há muito tempo e, se seguíssemos essa doutrina, não participávamos em reuniões com os membros do Governo, ou seja, diríamos «nós queremos que os senhores se demitam e não há mais conversa».
Sr. Deputado, o Partido Socialista passa a vida, e bem, a pedir a presença de membros do Governo nas comissões e nunca nos passou pela cabeça pensar que o faziam para branquear a atividade do Governo, mas, com essa doutrina, ficamos um pouco preocupados.
Mas nós insistimos: a Sr.ª Ministra tem responsabilidades a assumir e deve assumi-las perante esta Assembleia. É também para isso que esta Assembleia existe: para pedir responsabilidades aos membros do Governo!
Entendemos que a Sr.ª Ministra não se pode eximir a explicar aqui as medidas que pretende tomar para resolver este gravíssimo problema e assumir a responsabilidade pelo que andou a dizer até aqui.
Sr.ª Deputada Cecília Honório, de facto, não foi por falta de aviso que isto aconteceu, porque todos avisámos, aqui, na Assembleia da República, e fora da Assembleia da República. Não faltou quem avisasse que isto poderia acontecer!
Mais: o mais grave é a Sr.ª Ministra ter recebido relatórios de quem elaborou o sistema a dizer «o sistema não aguenta a reorganização do mapa judiciário» e ter ignorado isso completamente! E, já confrontada com o fiasco do sistema, no dia 1 de setembro, veio dizer «são pequenos problemas, daqui a umas horas estão resolvidos». Isto é de uma total irresponsabilidade! Já não se pode dizer que a Sr.ª Ministra tinha a obrigação de saber, porque a Sr.ª Ministra sabia que isto ia acontecer e, no entanto, fez questão absoluta em que a dita reforma entrasse em vigor no dia 1 de setembro!
É também por isso que a Sr.ª Ministra tem de prestar esclarecimentos e dar explicações cabais a esta Assembleia.
(…)
Sr. Presidente,
Srs. Deputados José Luís Ferreira e Hugo Velosa,
Muito obrigado pelas questões.
Sr. Deputado José Luís Ferreira, chamo a atenção para problemas suscitados pelo colapso do sistema Citius. Importa salientar que esta situação é extremamente desagradável para os profissionais da justiça, para os funcionários, para os magistrados, quer juízes, quer magistrados do Ministério Público, porque as coisas não funcionam, porque verificam que há uma situação de caos absoluto, uma vez que os processos andam por aí, por vezes sem se saber do seu paradeiro. Esta é, obviamente, uma situação muito desagradável para os profissionais, mas os principais prejudicados são os portugueses, é a sociedade portuguesa no seu conjunto. Os portugueses deixam de poder exercer os seus direitos por via judicial, como é de direito, e será um grave problema para o Estado português quando os cidadãos que não puderem exercer os seus direitos por responsabilidade do Estado, pela situação que se criou, pretendam responsabilizar judicialmente o próprio Estado.
Vamos ver o problema que se está aqui a criar e por quanto tempo é que este problema se arrastará.
O Sr. Deputado perguntou-me, e bem, o que é que será feito de um grupo de trabalho que foi criado por portaria da Ministra da Justiça em 2011, que, em princípio, deveria elaborar uma nova plataforma da justiça que se pensa que substituiria o programa Citius e os seus problemas.
Sr. Deputado, a única resposta que lhe posso dar é que essa comissão provavelmente estará escondida onde também estará a Ministra, porque nós não temos notícia dessa comissão há muito tempo e também não temos notícia da Ministra da Justiça já há algum tempo. Mas seria interessante saber o que é que essa comissão produziu e a que conclusões chegou.
Sr. Deputado Hugo Velosa, não vale a pena estar a criticar o Partido Socialista olhando para a bancada do PCP. Nós também criticámos em devido tempo o Governo do Partido Socialista, mas o que é extraordinário é que os senhores acham que as vossas medidas são boas porque em vosso entender as do Partido Socialista ainda eram piores e o Partido Socialista acha que as medidas que tinha eram boas porque as do atual Governo ainda são piores. Portanto, os portugueses que tirem as ilações e que escolham quem é pior, porque é disso que se trata. Obviamente que os portugueses estariam muito mal se não tivessem outras alternativas que não fossem as do PS, do PSD e do CDS, mas felizmente que têm.
O Sr. Deputado Hugo Velosa veio acusar-nos de sermos conservadores e de não querermos contribuir para resolver os problemas. Ora, importa dizer que, em primeiro lugar, os problemas foram criados por este Governo, que insistiu insensatamente neste mapa judiciário. O PCP não deixou de apresentar propostas concretas para que estes problemas fossem evitados, portanto estes problemas poderiam ter sido evitados. Aliás, ainda temos propostas para serem discutidas no próximo dia 25 e que são alternativas a este mapa judiciário. Era bom era que os senhores as discutissem, porque aquando da apreciação parlamentar aqui suscitada pelo PCP os senhores não quiseram discutir, os senhores não aceitaram que fossem feitas audições de entidades que se queriam pronunciar sobre esta matéria e que conhecem muito bem os problemas, como os autarcas, que viram os tribunais fechar nas suas terras, e como os advogados, que sentem no terreno as consequências desta reforma judiciária. Os senhores não quiseram ouvir ninguém.
Mais: nem a Sr.ª Ministra nem a maioria quiseram dar ouvidos a quem dizia: «Isto não pode entrar em vigor dia 1 de setembro de 2014, porque vai criar imensos problemas». Diziam os senhores: «Não, não vai criar problema nenhum. Lá estão os senhores a querer inviabilizar a maior reforma dos últimos 200 anos».
O que estamos a ver é que os tribunais portugueses, por estes dias, têm estado confrontados com uma das situações mais caóticas dos últimos 200 anos, mas era bom que o Sr. Deputado Hugo Velosa nos tivesse tranquilizado desde já quanto à posição que o PSD vai assumir relativamente à nossa proposta de ouvir com urgência a Sr.ª Ministra.
Era bom que o PSD não inviabilizasse essa proposta e aceitasse que a Sr.ª Ministra, como é seu dever, prestasse urgentemente esclarecimentos a esta Assembleia.

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