Intervenção de Jerónimo de Sousa na Assembleia de República

"Quando o povo acorda é sempre cedo"

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Senhor Presidente da República,
Senhora Presidente da Assembleia da República
Senhor Primeiro-Ministro
Senhores Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional
Senhores Deputados
Senhoras e senhores convidados

40 anos, sendo um tempo curto na história de um povo é um tempo largo nas nossas vidas que permite extrair lições e ensinamentos sobre o ato e o processo mais moderno e avançado da nossa história contemporânea, a Revolução de Abril de 1974.

Acto de libertação e processo de transformação, realização, conquista e participação, não esquecendo nunca que país tínhamos resultante do regime fascista de quase meio século de opressão, que usava a violência contra o povo não por sadismo mas antes como instrumento repressivo de proteção e sustentação da ditadura terrorista dos monopólios e latifúndios.

Guerra, isolamento internacional, atraso económico, social, cultural e civilizacional, analfabetismo, emigração em massa, liberdades individuais e coletivas juguladas, desigualdade entre homens e mulheres, com um povo sofrido mas de onde emergiam os lutadores, comunistas, democratas, patriotas, que com muitos anos de prisão, perseguição e repressão, apesar das feridas e cicatrizes, sabiam que resistir era já vencer, mesmo sem saber em que data seria essa vitória.

Aconteceu naquela madrugada de Abril de 1974.

Corajosamente um sector das Forças Armadas determinado pelos capitães para quem o povo e as instituições democráticas têm uma dívida de gratidão, inicia um levantamento militar de desfecho imprevisível imediatamente apoiado e secundado por um levantamento popular.

Esta fusão operacional e original do povo e das forças armadas foi decisiva porque sem iniciativa popular o movimento militar não venceria tal como o movimento popular sozinho não teria êxito, movimento popular que quis afirmar de forma inequívoca o seu apoio à revolução logo nas primeiras horas, mas particularmente naquele primeiro 1º de Maio em liberdade convocado pela Intersindical Nacional e que encheu as ruas e praças das vilas e cidades.

A consigna Povo-MFA não foi uma consigna imaginada em gabinetes por estrategas militares, ou por políticos imaginativos, mas o reconhecimento, aprovação e definição de um desenvolvimento real e concreto do processo de conquista da liberdade e da democracia e sua instauração e institucionalização com a Revolução de Abril.

Em todo o processo que se seguiu nenhuma das suas realizações foi oferecida ao povo português. Nem por salvadores, nem pelo poder político, nem pelos militares.

Foram por ele conquistadas! Reconhecidas pelo MFA e consignadas pelos deputados constituintes.

As liberdades de imprensa, de associação, de reunião, de manifestação.

Uma nova estrutura económica liberta do poder dos monopólios travando a sabotagem económica e conduzindo as nacionalizações de sectores básicos e estratégicos, valorizando o papel das pequenas e médias empresas.

Conquistando a Reforma Agrária, combatendo a ação dos latifundiários, desbravando terras incultas e desenvolvendo a produção agrícola e pecuária nas terras do sul, criando emprego, conquistando mais a norte o direito ao uso e a gestão dos baldios pelos povos.

Conquistando direitos laborais, sociais e culturais, liberdade sindical, direito à greve, a não ser despedido sem justa causa, proteção na infância e na velhice, direito ao ensino, à saúde, à proteção social, direito à igualdade das mulheres no trabalho, na família, na sociedade, direitos da juventude.

Conquistando o direito de decidir sobre os problemas das suas terras e o seu desenvolvimento, concretizado no reconhecimento do poder local democrático,

Conquistas que acabaram por ser consagradas na Constituição aprovada por uma Assembleia Constituinte ela em si mesmo expressão da conquista do direito de votar, eleger e ser eleito.

Não, não foi uma revolução perfeita ou produto de uma experiência laboratorial. Mas muito menos foi um ato e um processo em que fosse preciso mudar alguma coisa para ficar tudo na mesma. Não se esperava que os poderosos, a classe dominante desapossada do poder, assistisse passivamente ao processo de transformação que punha em causa os seus interesses e privilégios.

Foi uma revolução onde os trabalhadores e o povo decidiram assumir o seu papel de obreiros, construtores e donos do seu devir coletivo, materializando sonhos, aspirações e reivindicações, abrindo as portas de um país encarcerado ao mundo, libertando outros povos que também lutavam para se libertarem do jugo do colonialismo, pondo fim à guerra e propondo a paz e a cooperação entre os povos. E aos que querem reescrever a história lembramos que foi a Revolução de Abril e não outro processo que abriu as portas de Portugal à Europa e ao Mundo.

Comemorando continuamos e continuaremos a dar combate à reescrita da história, à negação da existência do fascismo, às falsas atribuições do papel de cada um na revolução e na contra -revolução que se seguiu.

Durante décadas, sucessivos Governos, exercendo o poder, executando a política direita que dura há 37 anos, recuperaram e restauraram de novo o poder do grande capital, submetendo o poder político ao poder económico, rasgando ou engavetando compromissos assumidos com o povo e com a Constituição, com Abril.

Sim, é verdade que muitas das principais conquistas de Abril foram destruídas, que se assiste à recuperação pelos novos e velhos senhores do capital, das parcelas de domínio perdido com Abril, voltando a amassar fortunas nuns poucos, agravando as injustiças, o aumento da exploração e do empobrecimento, a dependência do estrangeiro.

Sobre o povo que se atreveu a resgatar a sua dignidade e o poder e a soberania que nele deve residir volta a classe dominante e seus executantes a decretar a resignação e a submissão não suportando a luta nem os lutadores.

Aos que contemplam hoje a sua obra de destruição e fazem planos para muitas décadas de austeridade e sofrimento, nós dizemos: O projeto de Abril inscreve-se ainda na Lei Fundamental. Os seus valores continuam a ter validade e atualidade.

Do desenvolvimento económico tendo como objetivo a melhoria da qualidade de vida das populações e o pleno emprego, emanam os valores da justa e equilibrada distribuição da riqueza, da economia ao serviço das pessoas e da justiça social.

Da reforma agrária e dos baldios emana o valor da terra a quem a trabalha e o ancestral valor comunitário da terra.

Das nacionalizações emana o valor, a necessidade e possibilidade de pôr fim ao poder dos monopólios.

Dos direitos laborais emana o valor do trabalho e dos trabalhadores.

Do Estado para responder às necessidades do país em oposição ao Estado que temos como instrumento de uns poucos, emana o valor do Estado ao serviço do povo.

Da independência e soberania nacionais emana o valor do povo português decidir do seu futuro e da sua pátria.

Tais valores estão presentes na sociedade e na consciência, hoje abalada mas latente, que a revolução deu aos portugueses e nos direitos que resistem.

Consciência que a liberdade vale, consciência dos direitos do ser humano ancorados no coração de quem viveu e participou no acto e no processo da Revolução.

Dir-nos-ão que mais de metade da população não tinha nascido ou era criança quando se deu Abril.

Mas na consciência das novas gerações - quando hoje lutam pelo direito ao trabalho com direitos, contra as injustiças, a precariedade e o desemprego, quando lutam contra as propinas ou os cortes das bolsas, em defesa da escola pública, quando vêm à rua gritar a sua indignação contra a Troika e a submissão ao estrangeiro, quando entendem a liberdade como algo tão natural e insubstituível como o ar que respiram, então mesmo que eles não lhe dêem esse nome, na sua consciência fermentam e alicerçam-se os valores de Abril, que se hão-de-projetar no futuro de Portugal.

Uma política e um Governo que estão a dar cabo do presente da juventude é que estão condenados à derrota e a não ter futuro.

Para o PCP, partido da resistência e da luta antifascista, partido de Abril, se há coisas que aprendemos é que mesmo quando tudo parece ameaçado ou perdido, é pela luta, pela força do nosso ideal, com uma política de verdade pela confiança no povo português, com a convergência dos democratas e patriotas, que temos convicção inabalável que nada está perdido para todo o sempre. Que é possível uma vida melhor num Portugal de progresso, livre e democrático, com uma política patriótica e de esquerda, uma democracia avançada inseparável dos valores que emanam desse acontecimento extraordinário que foi a Revolução de Abril que hoje celebramos.

Lutaremos por isso, com aquela esperança que não fica à espera, com aquela confiança que Ary dos Santos, poeta de Abril, expressou no seu poema de que «quando o povo acorda é sempre cedo».

E se Abril e os seus valores continuam a ser e a ter mais projeto que memória, então valeu e vale a pena!

Disse.

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