Define o regime sócio-profissional aplicável aos trabalhadores das artes do espectáculo e do audiovisual
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Exposição de motivos
O sector das Artes do Espectáculo e do audiovisual em Portugal tem vindo, desde os anos 90, a sofrer uma crescente expansão e visibilidade, com o consequente acréscimo de pessoas que se dedicam profissionalmente a este sector de actividade e o surgimento de novas profissões. Contudo, apesar do crescente reconhecimento do valor cultural, social e económico das actividades culturais e artísticas, acentuou-se o carácter precário e descontínuo do exercício profissional, resultado da desregulamentação do sector, da inexistência de uma política de protecção específica, da desarticulação entre formação e profissionalização e do sub-financiamento por parte do Estado.
Actualmente assistimos a uma total desregulamentação do sector das artes do espectáculo que se traduz nomeadamente no esbatimento ou desaparecimento do papel do empregador e consequente perda da consciência e responsabilidades sociais; na utilização abusiva e até ilegal do contrato de prestação de serviços, com perda de regalias sociais e elevada carga fiscal para o trabalhador; na precariedade dos vínculos laborais e consequente instabilidade no emprego, em parte devido à natureza intermitente e migratória da profissão, mas que não pode servir como justificação para a precariedade; na inexistência de tabelas que regulem as remunerações das várias profissões do sector, originando situações de injustiça ou abuso dos dinheiros públicos; na inexistência de uma certificação profissional que confira dignidade ao exercício profissional e contribua para a clarificação deste universo.
Importa ainda salientar que os contratos de trabalho ou os contratos individuais são sobretudo utilizados na contratação de pessoal com funções de mediação ou administração. A maior parte dos profissionais com funções artísticas e técnico-artísticas têm um vinculo de prestação de serviços, sofrendo com a consequente desprotecção laboral e social que este tipo de contratação acarreta.
Relativamente à Segurança Social, uma parte significativa destes trabalhadores independentes ou desconta o escalão mínimo, não tendo direito a regalias sociais, ou não realiza qualquer tipo de descontos, caindo em situações de ilegalidade geradas pela própria injustiça do sistema. A mudança no tipo de vínculo laboral, instituindo o contrato de trabalho como regra de contratação nas artes do espectáculo e combatendo o recurso ao falso trabalho independente seria uma forma de travar este tipo de situações e de incluir todos os profissionais que se encontram fora do sistema. Seria ainda uma forma do Estado ter um maior encaixe financeiro no orçamento da Segurança Social.
As profissões das artes do espectáculo caracterizam-se pela intermitência das suas actividades. Diferentemente do que ocorre com a maioria das demais profissões, os trabalhadores das artes do espectáculo, independentemente da sua situação contratual, não têm quaisquer garantias quanto à continuidade do seu trabalho ao longo dos doze meses de cada ano. Seja por razões de instabilidade e precariedade ligadas à realidade do sector, seja por razões inerentes à natureza das próprias actividades que exigem períodos mais ou menos alargados de descontinuidade, o carácter intermitente das actividades das artes do espectáculo é um dado de facto que não pode deixar de ser devidamente contemplado na regulação do sector com vista a assegurar a protecção social e profissional dos trabalhadores envolvidos.
O Partido Comunista Português assumiu publicamente o compromisso de apresentar na presente legislatura um projecto de lei de estatuto sócio-profissional dos trabalhadores das artes do espectáculo. A presente iniciativa legislativa visa honrar esse compromisso e assume o objectivo fundamental de definir o regime jurídico aplicável aos trabalhadores das artes do espectáculo no que respeita a acesso, certificação e qualificação profissional, relações laborais e protecção social.
A questão essencial é a consagração do contrato de trabalho como regime regra de contratação no sector das artes do espectáculo, sempre que existam relações de trabalho subordinado ou relações de exercício profissional que, pela sua integração numa estrutura organizacional, se caracterizem pela dependência económica do prestador do trabalho em face da entidade empregadora.
Estabelece-se igualmente que qualquer produção de natureza profissional deva incluir uma percentagem mínima de profissionais contratados não inferior a 70%, salvaguardadas as situações em que a natureza própria da produção não permita a aplicação dessa regra às profissões artísticas.
O controlo do cumprimento das regras de contratação exige a criação de um registo de profissionais das artes do espectáculo junto do Ministério do Trabalho, para onde as entidades promotoras de espectáculos e de conteúdos individuais devem enviar cópia dos contratos de trabalho dos trabalhadores que integrem. Essa obrigatoriedade implicará a necessidade de redução a escrito dos contratos de trabalho celebrados, sem prejuízo da presunção da existência de contrato de trabalho, independentemente da forma, para defesa do trabalhador, sempre que este esteja inserido na estrutura organizativa e se encontre numa situação de dependência económica face à entidade patronal.
Tendo em conta a intermitência que caracteriza a prestação de trabalho nas artes do espectáculo e do audiovisual, estabelece-se um regime especial de protecção no desemprego ou de protecção relativamente a situações em que a intermitência decorra da natureza da actividade em causa.
O Grupo Parlamentar do PCP tomou a iniciativa de submeter os princípios gerais do presente projecto de lei a debate público e contou com a colaboração de muitos profissionais do sector, que emitiram opiniões de enorme utilidade para a sua elaboração. É por isso devida uma palavra de reconhecimento a todos os que, directa ou indirectamente, nos ajudaram na procura das soluções constantes desta iniciativa legislativa.
Temos perfeita consciência de que muitas matérias importantes para os trabalhadores das artes do espectáculo e do audiovisual não constam do presente projecto de lei. Vários aspectos, designadamente em matéria fiscal, ou específica de alguns subsectores, serão objecto de consideração ulterior, designadamente em sede de debate orçamental.
O objectivo central deste projecto de lei é equacionar os aspectos do estatuto sócio-profissional dos trabalhadores das artes do espectáculo e do audiovisual que de forma mais marcante os distinguem em face dos demais trabalhadores e que os penalizam, na ausência de legislação específica que tenha em conta a intermitência e a precariedade das suas actividades. Trata-se de um primeiro contributo, naturalmente imperfeito, e por isso passível de ser enriquecido por via do debate que visa proporcionar.
Nestes termos, ao abrigo das disposições legais e regimentais aplicáveis, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projecto de Lei:
Artigo 1.º
Objecto
A presente lei define o regime jurídico aplicável aos trabalhadores das artes do espectáculo e audiovisual no que respeita a:
a) acesso, certificação e qualificação profissional;
b) relações laborais;
c) protecção social.
Artigo 2.º
Definição
Para os efeitos da presente lei entende-se por:
a) Espectáculo - toda a apresentação pública de manifestações artísticas destinadas à fruição pelo público de actividades ligadas à criação, execução e interpretação, que envolva uma ou várias áreas artísticas e a actuação de intérpretes "ao vivo" em espaços físicos tecnicamente preparados para a especificidade de cada produção;
b) Audiovisual - todo o produto de comunicação expresso com a utilização conjunta de componentes visuais e sonoros que envolva uma ou várias áreas artísticas ligadas à criação, execução e interpretação e que seja destinado à fruição pelo público através do Cinema, Vídeo, Televisão, Rádio ou Multimédia.
c) Profissões de natureza estritamente artística - profissões ligadas à criação, execução e interpretação de obras;
d) Profissões de natureza técnico-artística - profissões ligadas aos materiais, equipamentos e processos produtivos;
e) Profissões de mediação - profissões relacionadas com a organização, a gestão e a venda de bens e serviços, com a valorização, divulgação e classificação das obras e dos artistas, bem como com a pedagogia das artes e a animação cultural e urbana.
Artigo 3.º
Âmbito material
1 - O regime definido na presente lei é aplicável às profissões artísticas, técnico-artísticas e de mediação das artes do espectáculo e do audiovisual que constituam modalidades de trabalho subordinado organizadas, no tempo e no espaço, de acordo com a programação artística, a produção e a apresentação pública dos espectáculos.
2 - O disposto no número anterior não exclui do âmbito de aplicação da presente lei as profissões que, embora se caracterizem por regimes de trabalho independente, se encontrem inseridas, no caso concreto, em relações de exercício profissional que, pela sua integração numa estrutura organizacional, se caracterizem pela dependência económica do prestador do trabalho em face da entidade empregadora.
Artigo 4.º
Âmbito pessoal
1 - A presente lei é aplicável aos profissionais e estagiários das artes do espectáculo e do audiovisual.
2 - Para os efeitos da presente lei, consideram-se profissionais os indivíduos que dediquem o seu tempo, exclusiva ou predominantemente, ao exercício de uma actividade ligada às artes do espectáculo e do audiovisual, ou da qual dependa a sua subsistência.
3 - A presente lei é aplicável aos trabalhadores das artes do espectáculo e do audiovisual que se encontrem em regime de contrato individual de trabalho, sem prejuízo de regime mais favorável decorrente de lei especial ou de instrumento de regulação colectiva que lhes seja aplicável.
Artigo 5.º
Acesso às profissões
Consideram-se profissionais das artes do espectáculo e do audiovisual para efeitos da aplicação do regime específico previsto na presente lei:
a) Os detentores de diploma de curso superior ou de curso profissional habilitantes para o exercício de profissão no âmbito das artes do espectáculo que sejam oficialmente reconhecidos ou certificados nos termos aplicáveis aos respectivos graus de ensino ou de formação.
b) Os cidadãos que tenham exercido profissão no âmbito das artes do espectáculo e do audiovisual de forma exclusiva ou predominante, ou da qual tenha dependido a sua subsistência, por mais de um ano;
c) Os cidadãos que tenham exercido profissão no âmbito das artes do espectáculo e do audiovisual por um período mínimo de 240 dias no último ano;
Artigo 6.º
Estagiários
Para os efeitos da presente lei, consideram-se estagiários os cidadãos que exerçam profissão no âmbito das artes do espectáculo sem que cumpram os requisitos previstos no artigo anterior.
Artigo 7.º
Regras de contratação
1 - O número de profissionais contratados para qualquer produção de natureza profissional não pode ser inferior a 70% do número total de trabalhadores de cada uma das profissões envolvidas.
2 - O regime estabelecido no número anterior pode não ser aplicado às profissões artísticas quando a natureza da produção assim o exigir.
3 - As entidades promotoras de espectáculos e conteúdos audiovisuais de natureza profissional devem enviar ao Ministério do Trabalho e Solidariedade uma relação dos trabalhadores envolvidos em cada produção, juntando cópia dos respectivos contratos de trabalho, e, se for caso disso, a fundamentação do uso da faculdade prevista no n.º 2.
Artigo 8.º
Registo
1 - A prova da qualidade de trabalhador das artes do espectáculo e do audiovisual efectua-se mediante a inscrição em registo próprio existente no Ministério do Trabalho e Solidariedade.
2 - A inscrição no registo é obrigatória para todos os profissionais das artes do espectáculo e do audiovisual e confere um título profissional emitido pelo Ministério do Trabalho e Solidariedade.
3 - O registo efectua-se mediante a apresentação de diploma, de contrato de trabalho ou outro meio de prova do exercício de profissão no âmbito das artes do espectáculo e do audiovisual.
Artigo 9.º
Contrato de trabalho
Presume-se que as partes celebraram um contrato de trabalho sempre que o trabalhador esteja inserido na estrutura organizativa e se encontre numa situação de dependência económica face à entidade promotora do espectáculo.
Artigo 10.º
Duração e organização do tempo de trabalho
Os contratos de trabalho celebrados no âmbito das artes do espectáculo e do audiovisual podem prever regimes específicos de duração e organização do tempo de trabalho, tendo em conta a natureza específica da produção em causa, desde que no período de duração do contrato seja respeitado o limite máximo de duração média do trabalho semanal de 40 horas.
Artigo 11.º
Retribuição
1 - Considera-se retribuição tudo aquilo a que o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho.
2 - Na contrapartida do trabalho inclui-se a retribuição base e todas as prestações feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie.
3 - Presume-se que constitui retribuição toda e qualquer prestação da entidade patronal ao trabalhador.
Artigo 12.º
Situação de desemprego
1 - Os prazos de garantia para atribuição do subsidio de desemprego aos profissionais das artes do espectáculo e do audiovisual são de:
a) 540 dias de trabalho por conta de outrém, com o correspondente registo de remunerações, num período de 24 meses imediatamente anterior à data de desemprego, ou;
b) 120 dias de trabalho por conta de outrém, com o correspondente registo de remunerações, num período de 12 meses imediatamente anterior à data de desemprego.
2 - O período de concessão do subsidio de desemprego é de:
a) 12 meses para os beneficiários com idade inferior a 30 anos;
b) 18 meses para os beneficiários com idade igual ou superior a 30 anos e inferior a 40 anos;
c) 24 meses para os beneficiários com idade igual ou superior a 40 anos e inferior a 45 anos;
d) 30 meses para os beneficiários com idade igual ou superior a 45 anos.
3 - Os períodos de concessão previstos no número anterior são reduzidos a metade sempre que o beneficiário se encontre na situação prevista na alínea b) do n.º 1.
4 - Os períodos de concessão das prestações de desemprego aos beneficiários que à data do requerimento tenham idade igual ou superior a 45 anos são acrescidos de 2 meses por cada grupo de 5 anos com registo de remunerações, nos últimos 20 anos civis que precedem o do desemprego.
5 - O período de concessão do subsídio social de desemprego, quando atribuído subsequentemente ao subsídio de desemprego, tem uma duração correspondente a metade dos períodos fixados no n.º 2 do artigo anterior, tendo em conta a idade do beneficiário à data em que cessou a concessão do subsídio de desemprego.
Artigo 13.º
Direito subsidiário
Aos casos omissos no presente diploma aplicam-se supletivamente, de acordo com a natureza das matérias:
a) A legislação geral que regula as relações laborais;
b) Os diplomas que regulamentam a concessão do subsídio de desemprego e demais prestações do sistema de Segurança Social.
Artigo 14º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor com a Lei do Orçamento do Estado subsequente à sua aprovação.
Assembleia da República, em 19 de Outubro de 2006