Projecto de Lei

Projecto de Lei nº 308/X - Interrupção Voluntária da Gravidez

Interrupção Voluntária da Gravidez

 

Preâmbulo

Num relatório apresentado em 2004, a Organização Mundial de Saúde afirma que as estimativas relativas ao ano 2000 indicam que todos os anos se fazem no mundo inteiro 19 milhões de abortos clandestinos, o que quer dizer que uma em cada dez gravidezes terminam em aborto clandestino, de que resulta a ratio de 1 aborto inseguro para cerca de 7 nascimentos com vida.

E, ainda segundo a OMS, as mulheres que recorrem aos serviços de curiosas (e são estas as mulheres de poucos recursos) põem a sua saúde e vida em risco. Por todo o mundo calcula-se que morrem 68.000 mulheres como consequência do aborto clandestino.

Na Europa, a percentagem de mulheres que morrem em consequência do aborto clandestino é de 20% relativamente ao total de mortes maternas. As Nações Unidas, num documento divulgado no ano de 2005, afirmam criticamente: ”E mesmo na União Europeia alguns países restringem ou proíbem mesmo o aborto, especialmente o aborto medicalizado, ou exigem complicados formalismos que desencorajam as mulheres de recorrer ao aborto legal forçando-as ao aborto ilegal e inseguro”.

Ambroise Cardier, médico-legista francês,no seu livro “Étude médico-legale sur lávorteement”, publicado em 1916, apresentava uma estatística pequena e, mesmo assim, aterradora: “de 116 casos de aborto criminoso, 60 tiveram por resultado uma morte mais ou menos imediata”. Um outro médico, Balthazard, indicava que 6% das mulheres que se submetem ao aborto clandestino morrem. A morte era, e continua hoje, em 2006, a ser o preço por que muitas mulheres pagam a sua impossibilidade de terem filhos que, noutras condições, desejariam ter.
Em Portugal julgam-se mulheres. Condenam-se algumas. Condenam-se mesmo quando não se fazem julgamentos e se força as mesmas a aceitarem o pagamento de indemnização, para expiação da sua culpa, a instituições determinadas pelo Tribunal. É esta a solução da suspensão provisória do processo que rejeitamos.

Outras são absolvidas. Mas passam pela traumática prova de exposição da sua intimidade em praça pública.

Deverá o direito penal considerar como crime a conduta da mulher que recorre ao aborto? Seja em que circunstâncias for?

A resposta já foi dada na França há muito tempo. Em 1975, o Parlamento Francês aprovou a lei Veil (de Simone Veil) nos termos da qual a mulher, ainda que recorrendo ao aborto fora das condições legalmente permitidas, nunca comete um crime. A lei só criminalizou as condutas dos que praticassem o aborto na mulher.

Solução que temos no nosso Projecto de Lei. Porque a mulher que recorre ao aborto age em situação de angústia e na comunidade não se encontra interiorizada a reprovação que merece que uma conduta seja considerada um crime.

Situação idêntica se encontra, por exemplo, nas legislações dinamarquesa, holandesa, polaca. O que há que criminalizar é o comportamento daqueles que, ainda que a solicitação da mulher, fazem um aborto clandestino, pondo em risco a saúde e a vida das mulheres.

Desde 1982 que o PCP tem vindo a lutar, na Assembleia da República e fora dela, pela despenalização da interrupção voluntária da gravidez e pelo consequente fim do grave problema de saúde pública que constitui o aborto clandestino.

A Assembleia da República chegou a aprovar na generalidade, em 1998, um projecto de lei de despenalização, cujo processo legislativo viria a ser interrompido pela convocação de um referendo sobre a matéria, acordado da noite para o dia entre os líderes de então do PS e do PSD.

Por isso rejeitamos a ideia de que por “escrúpulo democrático” seria necessária a realização de um novo referendo antes de qualquer alteração da lei penal nesta matéria. Escrúpulo democrático foi na verdade o que faltou quando, após a referida aprovação na generalidade de uma iniciativa de despenalização, dois partidos – PS e PSD – acordaram a realização de um referendo enxertado num processo legislativo em curso, em total desrespeito pelo papel da Assembleia da República no exercício do poder legislativo.

O referendo de 1998, nunca sequer teve valor vinculativo, visto que votaram apenas 31,9% dos eleitores. Mesmo que tivesse tido mais de 50% de votantes o seu efeito vinculativo já teria há muito terminado, tendo em conta que passaram mais de nove anos desde a sua realização e que estamos na terceira legislatura posterior àquela em que a consulta popular se efectuou. Não obstante o referendo de 1998 tem sido sucessivamente invocado para tentar negar a plena legitimidade jurídica e também política da Assembleia da República para legislar sobre a matéria.

Em Março de 2004 a Assembleia da República, em debate agendado pelo PCP, discutiu mais uma vez esta questão. Nesse debate, em que se votaram em primeiro lugar iniciativas de despenalização e depois iniciativas de convocação de referendo, ficou aliás expressa uma ampla convergência dos partidos então na oposição sobre esta matéria. O debate e a votação foi essencial para desmascarar a hipocrisia dos partidos da direita, com o PSD preso de um acordo pós-eleitoral com o CDS-PP em que se garantia a não aprovação de qualquer iniciativa, mas também para confirmar a total legitimidade da Assembleia da República para proceder à alteração legislativa em causa.

A 20 de Abril de 2005, a discussão voltou à Assembleia. À imagem do sucedido em 2004, discutiram-se e votaram-se, em primeiro lugar, iniciativas de despenalização e depois iniciativas de convocação de referendo. E, mais uma vez, a direita saiu vencedora. Partido Socialista e Bloco de Esquerda, ignorando as condições políticas existentes para a resolução do problema, desperdiçaram-nas, comprometendo o futuro de milhares de mulheres. Aprovada que foi a convocação do referendo, esta foi impossibilitada por motivos constitucionais.  Afinal, tudo mudou para que tudo ficasse na mesma. Mudaram as condições políticas e permaneceu a criminalização, o aborto clandestino, os julgamentos, a coarctação do direito de optar por uma maternidade e paternidade conscientes.

Despenalizar a Interrupção Voluntária da Gravidez na Assembleia da República sem referendo prévio, não significa, pois, fugir à consulta popular, especialmente num momento em que a ampla maioria parlamentar de forças que afirmam defender a alteração da lei penal, lhe atribui particular legitimidade nesta matéria.

Despenalizar a Interrupção Voluntária da Gravidez é a única forma de pôr fim às sucessivas investigações, devassas, humilhações, julgamentos e condenações de mulheres que nos últimos anos se repetiram em vários processos judiciais em Portugal.

Despenalizar a Interrupção Voluntária da Gravidez é a única forma de combater o flagelo do aborto clandestino, atingindo mulheres portuguesas, sendo um grave problema de saúde pública.

Despenalizar a Interrupção Voluntária da Gravidez significa alterar uma legislação penal que não tem eficácia no combate ao aborto. Apenas o torna clandestino, desprotegido e perigoso para a saúde física e psíquica e por vezes para a própria vida das mulheres.

A razão estrutural da criminalização do aborto é a impossibilidade que a sociedade tem de banir as suas causas, a miséria, o desemprego, os baixos salários, a desresponzabilização do Estado face às suas funções sociais, entre outras, que são o corolários da sua própria existência. Incapaz de banir as suas causas, a sociedade utiliza a repressão.

Os factos demonstram, à saciedade, que a criminalização do aborto é completamente ineficaz. Uma lei que, afinal, não é aplicada em centenas de milhar de “crimes” praticados e não punidos mostra ser uma lei inadequada às realidades. Aliás, tal lei, com o secretismo e a fuga à repressão a que obriga, conduz a uma cada vez maior deterioração das condições em que é praticado o aborto clandestino.

Quando em 1982, o PCP tomou a iniciativa do primeiro debate sobre o aborto estimavam-se em 100 mil aborto clandestinos por ano. Actualmente esse número situa-se, entre os 20 a 40 mil abortos. Estes números evidenciam que as mulheres, nos últimos 30 anos, têm vindo a utilizar formas seguras para prevenir gravidezes indesejadas. Estas novas possibilidades foram abertas com o 25 de Abril e com a institucionalização das consultas de planeamento familiar a partir dos centros de saúde, informação e acesso à contracepção, utilizando crescentemente formas seguras de planeamento familiar e de garantir uma vivência sexual saudável.

A consolidação de um caminho que generalize a educação sexual nas escolas, que amplie as consultas de planeamento familiar e a acessibilidade à contracepção é uma aposta decisiva e indispensável, sendo necessário dar uma especial atenção às camadas mais jovens.

Mas os números continuam a demonstrar que não existem métodos de controle da fertilidade 100% seguros, podendo ocorrer falhas e gravidezes não desejadas. E em muitas destas situações as mulheres decidem recorrer ao aborto em Portugal ou no estrangeiro. E muitas continuam a chegar aos hospitais com sequelas de aborto clandestino.

Assumimos, sem hesitação nem ambiguidade, a defesa da despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez até às 12 semanas e não qualquer outra solução que assente na ideia da culpabilização das mulheres pelo recurso ao aborto, mesmo que com penalização mitigada.

Em trinta anos de democracia, várias oportunidades foram perdidas no encarar desta dura realidade. Portugal não pode continuar a situar-se entre os países que negam à mulher a liberdade de decidir em matéria de direitos sexuais e reprodutivos, componente fundamental do direito à igualdade

O PCP bate-se pela alteração de uma legislação que maltrata as mulheres que recorrem ao aborto, tratando-as como criminosas e pela aprovação de uma lei penal tolerante, que respeite a capacidade de decisão das mulheres e que se integre na defesa dos seus direitos sexuais e reprodutivos.

A protecção da dignidade da vida de espécie humana, faz-se com medidas sociais e económicas, provada que está até à saciedade, a perversidade da utilização da lei penal que não a protege nem a dignifica e antes sanciona graves ofensas à integridade física e à vida das mulheres.

A despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez não pode esperar e é agora possível. E sobretudo é agora possível.

Em 1984 dissemos:

“Há sempre razões profundas para decidir um acto que ninguém deseja, nem considera um bem. E não falamos das situações extremas em que a vida da mulher corre perigo, do aborto terapêutico, eugénico ou resultante de crime sexual, mas sim da grande maioria dos casos em que a mulher decide interromper a gravidez porque não vê condições económicas, sociais, pessoais até para dar vida a um ser humano a quem sabe não pode assegurar um futuro e uma vida feliz”

“Pela nossa parte lutaremos, como já aqui afirmámos, para que esta Assembleia venha a aprovar, sem mais delongas inúteis, um regime legal digno das mulheres portuguesas”

Desde aí não desistimos de alterar a lei.

E voltaremos. Porque há sempre a ameaça de retrocessos. Como a recente história a nível mundial, o comprova.

Voltaremos pelo Direito das mulheres à dignidade. Pelo Direito de optar. Pelo direito à intimidade da vida privada. Pelo Direito à saúde. Pelo Direito à educação. Pelo Direito à vida. Pelo Direito à Liberdade. Pelo Direito à segurança. Pelo Direito à liberdade de consciência. Pelo Direito à maternidade e à paternidade feliz e conscientes. Todos eles direitos humanos. É o seu reconhecimento que tem mobilizado e mobiliza mulheres e homens que constroem o progresso do mundo.

Assim, propomos:

 - A exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez quando realizada nas primeiras 12 semanas a pedido da mulher para garantir o direito à maternidade consciente e responsável.

 - Nos casos de mãe toxicodependente o alargamento do período atrás referido para as 16 semanas;

 - A especificação de que, havendo risco de o nascituro vir a ser afectado pelo síndroma de imunodeficiência adquirida, o aborto (eugénico) poderá ser feito até às 24 semanas (situação que já está compreendida na actual lei, mas que convirá explicitar dadas algumas resistências ainda existentes relativamente à aplicação da lei);

 - O alargamento de 12 para 16 semanas do prazo dentro do qual a Interrupção Voluntária da Gravidez pode ser praticada sem punição, nos casos em que a mesma se mostre indicada para evitar perigo de morte ou de grave lesão para o corpo ou saúde física ou psíquica da mulher grávida. Na verdade, a vida demonstrou, nomeadamente nas doentes submetidas a tratamentos antidepressivos, a necessidade de alargamento do prazo;

 - O alargamento para 24 semanas no caso de vítimas de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual quando menores de 16 anos ou incapazes por anomalia psíquica;

 - A obrigação de organização dos serviços hospitalares, nomeadamente dos distritais, por forma a que respondam às solicitações de prática da Interrupção Voluntária da Gravidez;

 - A impossibilidade de obstruir o recurso à Interrupção Voluntária da Gravidez através da previsão da obrigação de encaminhar a mulher grávida para outro médico não objector de consciência ou para outro estabelecimento hospitalar que disponha das condições necessárias à prática da Interrupção Voluntária da Gravidez;

 - A despenalização da conduta da mulher que consinta na Interrupção Voluntária da Gravidez fora dos prazos e das condições estabelecidas na lei;

 - Garantia de acesso a consultas de planeamento familiar.

Com o presente projecto de lei pretende o PCP que se institua um regime legal mais adequado do que o vigente, nomeadamente tendo em atenção os conhecimentos da medicina, o qual tem de ser acompanhado por políticas que garantam a realização pessoal dos cidadãos e que protejam a maternidade e a paternidade.

 

Assim, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projecto de Lei:

Artigo 1.º
(Interrupção da gravidez não punível)

O artigo 142.º do Código Penal passa a ter a seguinte redacção:

Artigo 142.º

1 - Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, quando realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez a pedido da mulher para preservação do direito à maternidade consciente e responsável.

2 - De igual modo, não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, com o consentimento da mulher quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:

a) (actual alínea a) do n.º 1 do artigo 142.º);

b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física e psíquica da mulher e for realizada nas primeiras 16 semanas de gravidez;

c) (actual alínea c) do n.º 1 do artigo 142.º, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 90/97, de 30 de Julho);

d) Houver seguros motivos que indiciem risco de que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de HIV (síndroma de imunodeficiência adquirida) e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas nos termos referidos na alínea anterior;

e) (actual alínea d) do n.º 1 do artigo 142.º, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 90/97, de 30 de Julho);

f) Nos casos referidos na alínea anterior, sendo a vítima menor de 16 anos ou incapaz por anomalia psíquica se a interrupção da gravidez for realizada nas primeiras 24 semanas comprovadas nos termos referidos na alínea c).

3 - Sempre que se trate de grávida toxicodependente não é punível a interrupção da gravidez efectuada a seu pedido nas condições referidas no n.º 1 durante as primeiras 16 semanas de gravidez.

4 - A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez, referidas no nº 2, é certificada em atestado de médico, escrito e assinado antes da intervenção, por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada.

5 - Actual n.º 3.

6 - Actual n.º 4.

Artigo 2.º
(Despenalização da conduta da mulher grávida)

O artigo 140.º do Código Penal passa a ter a seguinte redacção:

Artigo 140.º
(Interrupção da gravidez)

1 - Actual n.º 1.
2 - Actual n.º 2.
3 - Eliminado.

Artigo 3.º
(Garantias de prática da Interrupção Voluntária da Gravidez
 nos termos da presente lei)

1 - Os estabelecimentos públicos de saúde, nomeadamente a nível distrital, serão organizados por forma a dispor dos serviços necessários à prática da interrupção voluntária da gravidez, de acordo com o previsto na presente lei, sem prejuízo do direito à objecção de consciência dos médicos e demais profissionais de saúde.

2 - A objecção de consciência deverá ser declarada na altura em que for solicitada a interrupção da gravidez, e terá de constar de documento então assinado pelo objector, sendo tal objecção imediatamente comunicada à mulher ou a quem, no seu lugar, pode prestar o consentimento.

3 - A comunicação referida no número anterior deve ser acompanhada de informação sobre o profissional que não seja objector de consciência.

4 - Sempre que um estabelecimento público de saúde não disponha de condições para a prática de interrupção voluntária da gravidez, as solicitações de intervenção ali apresentadas serão imediatamente encaminhadas por aquele serviço ao estabelecimento de saúde mais próximo onde seja praticada a interrupção voluntária da gravidez, por forma a que esta seja efectuada nas condições e prazos previstos na presente lei.

Artigo 4.º
(Planeamento familiar)

A instituição onde se tiver efectuado a interrupção voluntária da gravidez providenciará para que a mulher, no prazo máximo de sete dias, tenha acesso a consulta de planeamento familiar.

Artigo 5.º
(Entrada em vigor)

A presente lei entra em vigor no dia imediato ao da sua publicação.

 

Assembleia da República, em 15 de Setembro de 2006

 

  • Assembleia da República
  • Projectos de Lei