Exposição de motivos
Dispõe o n.º 1 do artigo 266.º da Constituição que a Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Para tutela desses direitos e interesses legalmente protegidos dispõe o artigo 268.º n.º 4 que é garantido aos administrados tutela jurisdicional efetiva desses direitos e interesses. É através dos tribunais, que administram a Justiça em nome do povo, que é assegurada a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, que é reprimida a violação da legalidade democrática e que são dirimidos os conflitos de interesses públicos e privados (artigo 202.º da Constituição).
No âmbito da definição de competências entre os tribunais, a Constituição atribui aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (artigo 212.º. n.º 3).
É certo que a Constituição admite a existência de formas de composição não jurisdicional de conflitos, o que sucede designadamente através da possibilidade legal de recurso à arbitragem. Porém, se se afigura admissível, no plano dos princípios, que em situações em que estejam em causa interesses privados entre partes iguais, estas entendam, por via contratual, submeter à arbitragem os respetivos litígios, já é inadmissível, para o PCP, que tal possa suceder em situações em que exista uma manifesta desigualdade entre as partes ou em situações em que exista um interesse público a defender por parte do Estado.
Nesses casos, só as garantias de imparcialidade dadas pelos tribunais estaduais estão em condições de garantir a aplicação da Justiça material, ditada pelo Direito e respeitadora do interesse público e dos princípios da legalidade e da igualdade.
Nos últimos anos, vários diplomas legais tornaram admissível o recurso à arbitragem por parte do Estado como forma de dirimir conflitos decorrentes da aplicação de contratos administrativos, bem como em matéria tributária.
Em matéria tributária, esta possibilidade viola manifestamente o princípio da legalidade da atividade administrativa e o princípio segundo o qual todos os cidadãos são iguais perante a lei. Não é admissível que um cidadão que, por qualquer descuido ou distração, se atrase na apresentação de uma declaração fiscal ou no pagamento de uma prestação do IMI ou do IUC, seja duramente punido pela Administração Fiscal sem apelo nem agravo, e que no caso de um devedor de milhões ao fisco o Estado aceite recorrer à arbitragem, acabando por abdicar de uma grande parte do que lhe é devido, beneficiando claramente o infrator. A Justiça fiscal não pode tratar os devedores ricos como cidadãos de primeira que negoceiam o que pagam e os devedores pobres como cidadãos de segunda que pagam o que lhe for exigido.
Por outro lado, em matéria de contratação pública, o Estado, ao abdicar de submeter os litígios emergentes de contratos públicos aos tribunais, submete-se a uma forma de justiça privada que lhe é invariavelmente desfavorável, com graves prejuízos para o interesse público e com enormes proventos para os interesses económicos privados envolvidos.
Em outubro de 2022 os pedidos de reequilíbrio financeiro das PPP ultrapassavam os mil milhões de euros, todos apontando a uma resolução através de tribunais arbitrais.
A situação é de tal forma grave que o Estado cada vez mais recorre para os tribunais administrativos das decisões dos tribunais arbitrais, em processos quase sempre perdidos pelo facto de o Estado ter aceitado previamente o recurso ao tribunal arbitral, e que não têm outro efeito que não seja o adiamento do pagamento aos privados. Esta situação, do Estado recorrer para os tribunais de decisões dos árbitros a que decidiu recorrer até já foi objeto de censura num Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul.
E são cada vez mais as situações onde esta forma de gestão privada da justiça aparece a prejudicar o erário público e a servir de veículo para a apropriação privada de centenas de milhões de euros.
A situação é especialmente grave no caso da chamada arbitragem had-hoc. O Estado aceita submeter os seus litígios contratuais com empresas privadas, envolvendo milhões de euros, a tribunais arbitrais rodeados do mais rigoroso secretismo. Não se conhecem os árbitros, nem os critérios da sua nomeação, nem a fundamentação das decisões, nem os honorários e os interesses a que estão ligados os árbitros envolvidos. Trata-se de uma situação de todo inaceitável num Estado de Direito Democrático e um ultraje no que se refere ao mais elementar dever de salvaguarda do interesse e dos recursos públicos.
Considera o Grupo Parlamentar do PCP que proibir o Estado de recorrer à arbitragem como forma de resolução de litígios que o envolvam em matéria administrativa e fiscal, e nomeadamente em matéria de contratação pública, é uma decisão legislativa que se impõe em nome da mais elementar estratégia de prevenção da corrupção e da decência na defesa do interesse público.
Nestes termos, ao abrigo da alínea b) do artigo 156.º da Constituição e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento, os Deputados da Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projeto de Lei:
Artigo 1.º
(Princípio geral)
- Os litígios emergentes de relações jurídicas reguladas pelo direito administrativo e fiscal são da competência exclusiva dos tribunais.
- É vedado ao Estado e às demais pessoas coletivas de direito público recorrer a tribunais arbitrais para dirimir litígios decorrentes de atos ou contratos regulados pelo direito administrativo e fiscal.
Artigo 2.º
Norma revogatória
São revogados:
- Os artigos 180.º a 187.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro, alterada pela Leis n.º 4-A/2003, de 19 de fevereiro, pela Retificação n.º 17/2002, de 06 de abril, pelas Leis n.º 59/2008, de 11 de setembro e n.º 63/2011, de 14 de dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02 de outubro, pelas Leis n.º 118/2019, de 17 de setembro, n.º 30/2021, de 21 de maio e n.º 56/2021, de 16 de agosto);
- A alínea d) do n.º 1 do artigo 27.º, o n.º 3 do artigo 332.º, o artigo 476.º e o anexo XII a que se refere o artigo 476.º, do Código dos Contratos Públicos (Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, alterado pela Retificação n.º 18-A/2008, de 28 de março, pela Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, pelos Decretos-Leis nº 223/2009, de 11 de setembro e n.º 278/2009, de 02 de outubro, pela Lei n.º 3/2010, de 27 de abril, pelo Decreto-Lei n.º 131/2010, de 14 de dezembro, pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, pelos Decretos-Leis n.º 149/2012, de 12 de julho, n.º 214-G/2015, de 02 de outubro e n.º 111-B/2017, de 31 de agosto, pelas retificações n.º 36-A/2017, de 30 de outubro e n.º 42/2017, de 30 de novembro e pelos Decretos-Leis n.º 33/2018, de 15 de maio, n.º 170/2019, de 4 de dezembro, pela Resolução da Assembleia da República n.º 16/2020, de 19 de março, pela Lei n.º 30/2021, de 21 de maio, pelos Decretos-Leis n.º 78/2022, de 7 de novembro e n.º 54/2023, de 14 de julho);
- O Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, alterado pelas Leis n.º 10/2011, de 20 de janeiro, n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, n.º 20/2012, de 14 de maio, n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, n.º 24/2019, de 13 de março, n.º 118/2019, de 17 de setembro, n.º 119/2019, de 18 de setembro e n.º 7/2021, de 26 de fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária).
- O n.º 5 do artigo 1.º, os n.ºs 2 e 6 do artigo 59.º, da Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro (Lei da Arbitragem Voluntária).
2 - São revogados todos os regulamentos de execução das normas revogadas pelo número anterior.
Artigo 3.º
(Entrada em vigor)
A presente lei entra em vigor no dia imediato à sua publicação, sem prejuízo da conclusão dos processos arbitrais em curso.