Projecto de Resolução

Produção de leite nacional

 

Recomenda ao Governo que adopte medidas de apoio imediato à produção de leite nacional

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Em risco de liquidação as explorações leiteiras do País
1. Uma situação insustentável

A conjugação da baixa do preço do leite pago aos produtores com a subida dos custos de produção torna insustentável a sobrevivência de milhares de explorações pecuárias dedicadas à produção de leite. O que determinará uma nova reestruturação «forçada» do sector produtivo, depois da «expulsão» levada a cabo nas duas últimas décadas, que se traduziu pela passagem em 12 anos de mais de 80 mil explorações leiteiras para cerca de 11 mil, metade dos quais tem menos de 50 vacas. As medidas tomadas recente e tardiamente pelo Governo (e pela União Europeia) estão longe de responder à gravidade da situação, mais parecendo querer aproveitar a crise, para concretizar aquela nova reestruturação, com a eliminação da produção de leite de mais uns milhares de produtores e de algumas regiões do País, como Trás-os-Montes, Beira Interior e Alentejo. A chantagem feita sobre os produtores destas últimas regiões (Planalto Mirandês, Distrito da Guarda), por empresas nacionais e espanholas, com a ameaça e, em alguns casos, a concretização da não recolha do leite, traduz-se em preços de ruína para a produção (abaixo de 25 cêntimos) e a prática extinção, a breve prazo, da actividade!

2. A baixa do preço do leite está particularmente ligada à importação de leite de países da União Europeia a preços de saldo

Muitos são os argumentos lançados para justificar a baixa do preço do leite, em geral para absolver decisões e comportamentos de agentes económicos e políticos com papel determinante na fileira, e principais responsáveis pelos problemas referidos. Há até quem se atreva a dizer que é para defender os consumidores portugueses! O Governo, através do Ministro da Agricultura, começa sempre por negar o problema para justificar a sua inactividade e, fundamentalmente, para esconder as suas responsabilidades na aprovação de uma política comunitária suicidária para a produção de leite nacional. Mas quando as lojas de um grande grupo de distribuição (SONAE) começam a vender o pacote de leite (UHT/meio gordo), importado da Alemanha, a 39 cêntimos tudo fica claro. Porque das duas, uma. Ou o leite é vendido abaixo do seu custo final (custo de produção, embalagem e transporte), sem margem comercial e com prejuízo para o comerciante, o que é proibido e punido pelas regras da concorrência, ou é comprado nesse país abaixo dos custos locais de produção, a preço de saldo, provavelmente com apoios estatais, e estamos perante um processo de dumping, proibido na União Europeia. Como é possível que leite vindo da Alemanha possa ser vendido em Portugal, ao consumidor, a preços que são insuficientes para compensar a produção nacional, que reclama um mínimo de 40 cêntimos/litro?! É criminoso que um País com um défice externo acima dos 10% e um endividamento externo que ronda os 100% do PIB, continue a importar milhões (250 milhões???) de litros de leite da Europa (Alemanha, França, Polónia, Espanha) enquanto existem em stock milhões de litros (há meses existiam 60 milhões) de produção nacional!

3. A liquidação das quotas leiteiras e a liberalização do mercado dos lacticínios

Esta situação tem por base uma questão estrutural: a consolidação na União Europeia nos últimos anos, sob o impulso dos países do Norte, grandes produtores e exportadores de leite (Dinamarca, Holanda, Irlanda, Reino Unido e outros), do objectivo de revisão da Organização Comum do Mercado do Leite com a liquidação do sistema das quotas leiteiras. Objectivo a que nenhum Governo português se opôs radical e frontalmente, inclusive invocando os interesses vitais do País. Caminho feito, como sempre, de pequenos passos, «facilitando» as cedências e as justificações de governos como os portugueses. Caminho iniciado em 1999, no âmbito da reforma da PAC (Agenda 2000), que teve o acordo do então Governo PS/Guterres (era Ministro da Agricultura Capoulas Santos, e tinha como assessor em Bruxelas o actual Ministro Jaime Silva), onde se estabeleceu o fim das quotas para 2008. O que foi alterado em 2003, adiando a sentença de morte para 2015. Caminho que foi reiniciado em 2008 (Conselho de Ministros da Agricultura de 17 de Março), igualmente com o acordo do actual Governo e do Ministro da Agricultura (Alemanha e Áustria votaram contra e a França absteve-se), aceitando um aumento de 2% geral e igual para todos os Estados-membros - o que significou produzir mais 2,8 milhões de litros de leite na Europa na campanha 2008 (01Abril)/2009 (31Março). Que teve o conhecido epílogo no Conselho de Ministros da Agricultura de 20 de Novembro passado (resultado consolidado no Conselho de Ministros de 18/20 de Dezembro) com a aceitação da liquidação das quotas a prestações, através de um aumento anual de 1% para todos os países (para a Itália o aumento foi numa prestação única de 5%), «a fim de preparar o seu desaparecimento, previsto para 2015» (do Comunicado do Conselho de Ministros). Forma de acabar com as quotas assegurando uma dita «aterragem suave», porque se faria sem «dor» dos produtores, que se iriam «habituando», preparando a sua liquidação final por inutilidade em 2015! O que aconteceu foi que as últimas medidas de aumentos de quotas «legalizaram» os excedentes, que alguns desses países estavam a produzir para lá das quotas, e que agora aparecem no mercado europeu a preços de saldo. Alguém acredita que a Europa, como querem alguns, por causa da crise, reduziu os seus consumos de leite em natureza e lacticínios de forma a provocar os excedentes que agora aparecem no mercado? O resultado da liquidação das quotas leiteiras será o fim da produção leiteira, não apenas como vem acontecendo em zonas e explorações ditas marginais, não eficientes, mas em países como Portugal, mesmo nas bacias leiteiras do Entre Douro e Minho e Beira Litoral, que nunca conseguirão concorrer com as áreas leiteiras do Norte da Europa, ou pior, no mercado mundial, com as explorações de milhares de vacas dos EUA, Nova Zelândia ou Austrália.

Sem se referir aqui e agora as decisões, nunca explicadas, do Governo em baixar a taxa de IVA (taxa reduzida de 5%) para alguns lacticínios importados e sucedâneos de soja no Orçamento do Estado para 2008, a conjuntura vivida no sector resulta, depois, no essencial do poder dominante que os grandes grupos de distribuição adquiriram na Europa e em Portugal, e dos processos de completa liberalização dos mercados agro-alimentares que, na esteira das sucessivas negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC), a União Europeia vai aprovando. Orientações que presidiram às negociações e reformas das Organizações Comuns de Mercado (OCM) do leite, como do vinho e outros produtos agrícolas. Por outro lado, as imposições e exigências da grande distribuição nas suas relações com a indústria de lacticínios (margens diferenciadas conforme se trata das suas marcas, marcas brancas, ou das marcas dos fabricantes, clausulado leonino nos contratos de fornecimento, práticas sistemáticas de margens garantidas, gestão de espaços e categorias, prazos de pagamento, etc., etc.), estreitam ou eliminam mesmo as margens do fabricante, que depois faz repercutir tal facto no primeiro elo da cadeia de valor: o produtor!

4. A subida dos custos de produção

É também evidente que o problema da insuportável baixa de rendimento da actividade das explorações leiteiras, e de outras produções agropecuárias, não é apenas o resultado da baixa do preço do leite, mas da conjugação desse facto com a subida brutal dos custos dos principais factores de produção (gasóleo, rações, adubos, electricidade) verificada no 1.º semestre de 2008, acompanhando a galopada dos preços do petróleo. Preços que se mantiveram, no essencial, no 2.º semestre, e que se prolongaram em 2009, apesar de algumas descidas. E quando alguns, entre os quais o Governo, valorizam os preços pagos à produção em Portugal, relativamente ao estrangeiro, esquecem sempre esta outra face da moeda, que são os preços generalizadamente mais baixos a que os agricultores desses países pagam os factores de produção (e outros custos como a Segurança Social), em geral fortemente apoiados pelos seus Estados.

Esquece também o Governo o efeito de algumas das suas decisões, como a eliminação da electricidade verde (que pretendia exactamente aproximar o custo desse factor energético em Portugal aos de outros países), ou a prática liquidação das medidas agro-ambientais, que ajudavam a equilibrar algumas explorações, ou a ausência de medidas, não só reclamadas como possíveis face à legislação europeia, como a retirada de vitelos excedentários e vacas de refugo, num quadro de subida das rações, e com o mercado de carne bovina sob pressão, também pelas importações feitas da Europa e, particularmente, da América Latina.

Sem capacidade, ou vontade, para levar a cabo um processo de licenciamento das explorações pecuárias que conjugasse a defesa de normas ambientais com a salvaguarda da estrutura real das explorações agropecuárias portuguesas, não transformando o processo de tratamento de efluentes num novo golpe nos já frágeis equilíbrios financeiros das explorações, o Governo embrulhou-se numa complexa e burocrática produção legislativa de enquadramento, ainda não completa, já revista e alterada mais que uma vez, mas sem nunca assumir o adequado financiamento público do processo, como questão chave. A caminho dos cinco anos de Governo, e o problema está pior que na estaca zero: criou desconfianças e animou em muitos a vontade de sair o mais rapidamente possível da produção.

Particularmente grave neste contexto, é a completa paralisia da Autoridade da Concorrência (AdC) que, apesar de alertada para a situação, continua sem qualquer acção relevante de abordagem de um mercado onde é manifesta a violação grosseira das regras que legalmente lhe cabe defender. Acrescente-se também que, sobre as questões da concorrência, o Ministério da Agricultura ficou mais uma vez por declarações platónicas, à saída de um Conselho Europeu - «cabe à AdC manter-se "atenta" à situação no sector, já que o preço do litro de leite no consumidor não reflecte as descidas de custo verificadas ao nível da produção»!

5. Uma visão desintegrada da fileira do leite e lacticínios

A fileira do leite e lacticínios não tem resposta numa visão desintegrada das restantes actividades agropecuárias, e particularmente do mercado de carne bovina. A incapacidade para olhar a realidade das explorações agrícolas portuguesas, nomeadamente da agricultura familiar ainda dominante, leva a medidas desajustadas, incapazes de potenciar e aproveitar até, os meios que por vezes são disponibilizados. Para o que muito contribui também uma política de permanente afrontamento das confederações agrícolas que, não sendo as que o Governo desejaria, são as que existem! É o que sucede com o processo de tutela, enquadramento e apoio técnico-sanitário às explorações pecuárias que, tendo começado mal há muitos governos atrás, continua sem a resposta necessária e suficiente, sobrecarregando os produtores de normas, custos e coimas, fragilizando o débil edifício da saúde animal e, indirectamente, pondo em causa regras de saúde pública. É o que está a acontecer com o desmantelamento dos serviços do Ministério da Agricultura, via PRACE e SME (Situação de Mobilidade Especial), afastando-os dos agricultores e incapacitando-os para intervir, tornando ainda mais morosos os processos.

A solução para os problemas estruturais e, particularmente, conjunturais da fileira do leite e lacticínios não passará por forçar a saída de mais uns milhares de produtores, através de um qualquer resgate de quotas, eliminando explorações familiares de pequena ou média dimensão ou agricultores de níveis etários elevados, ou ainda a produção em zonas ditas «marginais». Pelo contrário, a questão central é criar condições para que os actuais produtores se mantenham em actividade, mesmo que com o seu «refrescamento» por jovens agricultores que se insiram na fileira. O que não significa a ausência de mecanismos adequados que possam apoiar a mudança de actividade da exploração agrícola. Mas a direcção essencial de política deve ser para incentivar a manutenção da actividade na fileira, salvo situações excepcionais.

A definição de uma política leiteira, tendo por objectivo a procura da exploração viável, eficiente ou competitiva, eliminando as de menor dimensão/menor nº de vacas, como tem acontecido nos últimos anos, é perseguir uma meta inalcançável, erro de uma estratégia que acabará por descobrir que as explorações ditas «viáveis» se localizam apenas nos países do Norte da Europa, nos EUA, Nova Zelândia ou EUA! A estratégia adequada só pode ter como objectivo assegurar, num quadro de sustentabilidade e diversidade produtivas, com quanto baste de especialização (face a um País de pequena dimensão e relativa exiguidade de solos agrícolas), o máximo de produção agro-alimentar, em todo o território nacional, visando a segurança e soberania alimentares.

Assim, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do Artigo 4.º do Regimento da Assembleia da República, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP propõem que a Assembleia da República recomende ao Governo, nos termos do n.º 5 do Artigo 166.º da Constituição da República Portuguesa, que adopte as seguintes medidas:

1. Medidas imediatas que travem a degradação dos rendimentos dos produtores

(i) instituir, no quadro das ajudas minimis, uma compensação até 5 cêntimos por litro para as explorações agrícolas familiares até 100 vacas em produção, e enquanto durar a presente baixa de preços;

(ii) repor a electricidade verde para todas as explorações pecuárias e assegurar, igualmente, um apoio diferenciado e maior para o gasóleo verde, nunca inferior a 5%;

(iii) suspensão pelo período de 6 meses das contribuições para a segurança social, à semelhança do que foi feito em 2008 para o sector das pescas, com a devida transferência do Orçamento do Estado para a Segurança Social das verbas necessárias;

(iv) desencadear um plano de intervenção apoiado para retirada de vitelos recém-nascidos e vacas de refugo;

(v) propor à AdC que desencadeie com urgência um mecanismo de monitorização dos preços de factores de produção, como as rações, pesticidas e fertilizantes;

(vi) criar, no âmbito das medidas agro-ambientais, uma ajuda à recolha e concentração de leite em zonas de montanha e desfavorecidas;

(vii) negociar e assegurar com as empresas da indústria nacional a garantia de escoamento, em condições aceitáveis, do leite hoje produzido nessas zonas;

(viii) alargamento da nova medida agro-ambiental, anunciada pelo Governo para ovinos e caprinos (250 euros/hectare), em regiões de montanha ou em risco de despovoamento, para a produção de leite e pecuária bovina de carne;

(ix) rápida conclusão dos processos de controlo de explorações pecuárias que estão a impedir centenas de agricultores de receberem as ajudas RPU de 2008, a que têm direito.

2. Medidas urgentes de saneamento da fileira do leite e lacticínios

(i) rápido início de negociações entre produção, indústria e comércio, sob a coordenação do Estado, visando a concertação e a tomada de medidas, com o objectivo de estabilizar os mercados, assegurar a comercialização de níveis adequados de produção nacional, inclusive dos stocks existentes, e reduzir o recurso a importações;

(ii) imediato desencadeamento de medidas de fiscalização do leite e lacticínios importados e comercializados no País, visando verificar se cumprem as normas higieno-sanitárias e da concorrência, exigidas pelas leis portuguesas e normas comunitárias; uma particular atenção deve ser dada ao leite e lacticínios comercializados sob a designação vulgar de marcas brancas;

(iii) exigência de que a AdC, em colaboração com o Observatório dos Mercados Agrícolas e das Importações Agroalimentares, intervenha e analise com urgência as práticas comerciais dos diversos agentes do sector;

(iv) no quadro da legislação em vigor - Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho - que aprova o regime jurídico da concorrência e, nos termos do Artigo 27.º (Medidas Cautelares), reclamar que a AdC ordene preventivamente «as medidas necessárias à imediata reposição da concorrência» e salvaguarda dos interesses da produção nacional;

(v) a proposta de que a AdC solicite a entidades congéneres da União Europeia uma reunião para abordagem da situação no mercado europeu do leite e lacticínios e possíveis violações das regras da concorrência;

(vi) a proposta de que o Governo português, com base na enorme perturbação verificada no sector, que pode varrer definitivamente a produção leiteira de regiões e mesmo países, solicite a realização de um Conselho Extraordinário de Ministros da Agricultura para debate e tomada de medidas, visando a reposição do sistema de quotas leiteiras, única forma de garantir que Portugal e outros Estados vão manter a produção;

(vii) acompanhamento e avaliação da situação do mercado de outros produtos lácteos e do mercado de carne bovina, com vista a possíveis intervenções regularizadoras;

(viii) rápida criação do enquadramento normativo para a implementação voluntária de um rótulo de qualidade (Rótulo Q), que permita a traçabilidade integral, desde a exploração até à indústria, e a fácil visibilidade pelo consumidor da origem do produto.

3. Medidas que reponham níveis razoáveis de equilíbrio económico-financeiro das explorações

(i) apoio financeiro à tesouraria das explorações, com a criação de uma linha de crédito com juros bonificados a 100%, período de carência de um ano e um prazo de pagamento nunca inferior a 5 anos;

(ii) criação de linha de crédito a longo prazo (nunca inferior a 20 anos) com uma taxa de bonificação de 50% visando o desendividamento;

(iii) criação de linha de crédito em condições similares à referida em (ii) para investimento;

(iv) rápida operacionalização e encurtamento de prazos no processamento das ajudas destinadas à fileira, no âmbito do ProDeR;

(v) avaliação, elaboração e proposição à União Europeia de mecanismos de antecipação e pagamento célere aos produtores de apoios e ajudas ao rendimento e ao investimento;

(vi) suspensão dos actuais processos de licenciamento das explorações pecuárias e reconsideração, em diálogo com as estruturas associativas de agricultores, de todo o enquadramento legislativo, visando a sua simplificação e ajustamento à realidade do tecido produtivo pecuário, com a definição simultânea do quadro de apoio e redistribuição de custos.

Assembleia da República, em 4 de Junho de 2009

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