Intervenção de João Oliveira na Assembleia de República

Problemas na justiça - Degradação da democracia e da realização do Estado de Direito democrático

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Declaração política sobre a situação que se vive na justiça portuguesa

Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:
A situação que se vive na justiça portuguesa é uma triste imagem da realidade de declínio nacional e degradação das instituições democráticas, que se vem agravando, de forma acentuada, nos últimos anos.
Os cidadãos encaram o sistema de justiça com cada vez maior desconfiança e vêem-se crescentemente impedidos de recorrer aos tribunais para exercer os seus direitos, por impossibilidade de suportarem os custos com a justiça. Os magistrados são permanentemente sujeitos a um «fogo cerrado», que amplia todo e qualquer vício ou erro individual, mas que ignora as constantes tentativas de limitação da sua autonomia ou independência e que finge não ver a partidarização da orgânica judiciária.
Há, por todo o País, milhares de advogados com milhões de euros de honorários em dívida, por serviços prestados no âmbito do sistema de acesso ao direito, e que ameaçam abandoná-lo, deixando de garantir uma função essencial para que os cidadãos de menores recursos económicos possam aceder ao direito e aos tribunais. As condições de realização da investigação criminal e os meios que lhe são destinados não garantem a sua eficácia e sacrificam as condições socioprofissionais dos agentes incumbidos de a concretizar. A informatização dos tribunais e do sistema de justiça, concebida muitas vezes de forma apressada e irreflectida, mais a pensar na projecção mediática dos membros do Governo do que na melhoria do sistema, continua a ser fonte de constrangimentos e de insegurança no trabalho dos operadores judiciários e de outros profissionais jurídicos. Estes deveriam ser sinais de alarme suficientemente preocupantes e graves para que, também em matéria de política de justiça, se concretizasse uma profunda ruptura com as opções que vêm sendo feitas.
No entanto, a atitude daqueles que, chegados ou vindos do poder, se recusam a discutir o passado e a avaliar políticas perpetua e agrava, invariavelmente, o rumo de comprometimento do funcionamento da justiça e dos tribunais. Os espíritos, ditos reformistas, dos responsáveis governamentais rapidamente se transformam em assombrações conservadoras das mesmas velhas políticas que diziam querer superar.
Os discursos governamentais, cheios de vontades novas e ambições invejáveis, acabam irremediavelmente contrariados pelos compromissos inconfessáveis que continuam a moldar as políticas concretas.
A justiça portuguesa é cada vez mais uma justiça de classe, que permite a impunidade dos poderosos, que protege os grandes interesses económicos, que é ineficaz no combate à corrupção e inacessível aos cidadãos para o exercício dos seus direitos.
Este é o resultado das concepções neoliberais que, também em matéria de política de justiça, vão fazendo avanços.
Não é nem mais nem menos do que isso, aliás, o que se prevê em matéria de justiça no Memorando de submissão do País aos ditames do FMI e da União Europeia. Ali, está expressa, com toda a clareza, a perspectiva neoliberal, que concebe a justiça e os tribunais como uma longa manus do poder económico, destinada a satisfazer e proteger os seus interesses e, se possível, como mais uma área de negócio a explorar.
A perspectiva do Memorando é, afinal, a do aprofundamento da errada orientação que os governos portugueses têm dado à política de justiça, no sentido da sua privatização e mercantilização, e que nos conduziu, por exemplo, à situação que hoje conhecemos, em matéria de arrendamento de imóveis pelo Ministério da Justiça e de gestão do parque prisional.
Durante anos, o PCP confrontou o Governo, Orçamento do Estado após Orçamento do Estado, com os milhões de euros gastos pelo Ministério da Justiça em arrendamento de imóveis, em prejuízo do erário público e do bom funcionamento da justiça. Durante anos, governo após governo, ouvimos as mais variadas e descabidas justificações para a irracionalidade daqueles gordos negócios de arrendamentos feitos à custa do Estado.
Durante anos, propusemos que aquela irracionalidade fosse substituída por uma política criteriosa de investimento público, que permitisse a poupança dos recursos do Estado, mas foi sempre mais forte a perspectiva de quem defende que a justiça pode e deve ser um negócio. Na gestão do parque prisional, a orientação mercantilista fez-se igualmente sentir, mas, aqui, com consequências que podem vir a ser ainda mais graves.
Em 2008, o anterior governo abriu portas ao negócio no parque prisional, com a apresentação de um programa de reforma, que previa, até 2013, a alienação e o encerramento de alguns dos estabelecimentos prisionais que se encontravam em funcionamento e a construção de três novos estabelecimentos. Passados três anos e vários percalços nos concursos para a construção dos novos estabelecimentos, o Estado alienou estabelecimentos prisionais que continua a ocupar e pelos quais passou a ter de pagar renda, reduzindo a capacidade de reclusão e provocando a sobrelotação dos estabelecimentos em funcionamento. Para além dos óbvios prejuízos financeiros que daqui resultam e de mais um chorudo negócio de arrendamento à custa do Estado, esta situação encerra uma outra preocupação, para a qual chamamos desde já a atenção da maioria e do Governo.
A situação de sobrelotação dos estabelecimentos prisionais gera deficientes condições de alojamento para os reclusos, mas também dificuldades de segurança e degradação das condições de trabalho, em particular para o efectivo do corpo da Guarda Prisional.
Considerando que, ao contrário do que estava previsto, não se iniciou o curso de formação de novos guardas prisionais e que, em 2011 e 2012, haverá aposentações, em número significativo, daqueles guardas, torna-se urgente que o Governo tome medidas no sentido de evitar a ruptura do sistema prisional.
Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados: Com a degradação do sistema de justiça, escancaram-se as portas à lei do mais forte, satisfazendo os interesses daqueles que, com melhores condições económicas, estarão também em melhores condições de impor as suas regras.
O triunfo dessas concepções neoliberais em matéria de política de justiça significa, portanto, a degradação da democracia. Os problemas que o sistema de justiça enfrenta não podem e não devem ser confinados à sua dimensão económica ou financeira. Eles são um problema da democracia e da realização do Estado de direito democrático.
O compromisso que o PCP assume é, por isso, o de contribuir para a resolução dos problemas da justiça, com a perspectiva do aprofundamento e da consolidação do regime democrático, é o compromisso com a Constituição de Abril.
(…)
Sr. Presidente,
Sr. Deputado Fernando Negrão,
Agradeço as questões que colocou e às quais vou procurar responder. A primeira, relativa à partidarização da justiça, traduz, de facto, um problema sério. Um problema sério, mas, infelizmente, para a existência do qual, em algumas circunstâncias — muitas, por acaso —, decisivamente tem contado o contributo do PSD.
Trata-se de um problema que, infelizmente, o PSD não tem contrariado. Aliás, basta lembrar-se, Sr. Deputado, daquilo que foi a lei aprovada nesta Assembleia da República, na sequência da realização do Pacto para a Justiça, acertado entre o PSD e o Partido Socialista, há duas legislaturas, lei essa que alterou a composição do Conselho Superior da Magistratura, passando a prever uma maioria de membros designados pelo poder político.
E esta, Sr. Deputado Fernando Negrão, foi uma das circunstâncias em que o PSD contribuiu decisivamente para esta politização ou partidarização da justiça. Este é um dos mais sérios problemas que temos para resolver, porque a necessidade de respeitar e fazer cumprir o princípio da separação de poderes, separando a competência do poder judicial da esfera de intervenção do poder político, é um factor decisivo não só para a consolidação de um poder judicial democrático mas também para a consolidação do Estado democrático como está configurado na Constituição. Em relação aos honorários, o Sr. Deputado Fernando Negrão invocou a questão das irregularidades, que, aliás, foi objecto de uma comunicação pública quer por parte da Ordem dos Advogados quer por parte da Sr.ª Ministra da Justiça.
Mas, Sr. Deputado Fernando Negrão, não há combate a irregularidades que possa justificar os atrasos que se verificam no pagamento de milhões de euros de honorários aos advogados. O Sr. Deputado sabe bem que estes atrasos são crónicos, que não são de hoje nem de momentos em que surgem suspeitas de irregularidades, são atrasos crónicos que causam prejuízos gravíssimos na vida profissional e também pessoal de milhares de advogados. E a resposta que tem que se encontrar não é para a circunstância que existe hoje, é uma resposta que evite que estes atrasos continuem a ser atrasos crónicos. Em relação à questão da discussão do passado e à necessidade de ruptura com as opções políticas, compreendemos que o PSD não queira fazer essa ruptura e pretenda até, em certa medida, não discutir de forma aprofundada o passado e as responsabilidades que inclusivamente tem, não só em anteriores governos mas também no acompanhamento de políticas executadas pelo Partido Socialista, na situação em que se encontra a justiça.
Contudo, Sr. Deputado Fernando Negrão, o que não podemos fazer é «tapar o sol com uma peneira». E enquanto não assumirem as responsabilidades pelas políticas que têm conduzido o sistema da justiça à situação em que hoje se encontra, certamente, não será possível resolver qualquer dos problemas com que se confronta o sistema de justiça.
Por último, respondo em relação ao combate à corrupção. O Sr. Deputado Fernando Negrão sabe bem que as medidas que têm sido tomadas na Assembleia têm contado com uma contribuição activa do PCP, não só com a apresentação de propostas concretas mas também com a viabilização das soluções que têm sido encontradas.
Mas o Sr. Deputado Fernando Negrão também sabe que em instrumentos conexos com o combate à corrupção há grandes dificuldades e constrangimentos que, depois, na prática, são impostos à concretização do combate à corrupção.
São disso exemplo as dificuldades que resultam das reformas do Código de Processo Penal, as dificuldades que são impostas na investigação da criminalidade mais grave e complexa e da corrupção. E, infelizmente, também nesse aspecto o PSD não tem acompanhado as boas soluções que poderiam ser adoptadas.

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