Intervenção de Paula Santos na Assembleia de República

"A privatização da água é um crime contra o país!"

Sr.ª Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:
Passados pouco mais de um ano e três meses de governação conjunta de PSD e CDS-PP, o Governo tem pautado a sua atuação pelo autoritarismo, pela arrogância, pela imposição, mesmo quando a contestação é abrangente, ou a dizer uma coisa e a fazer outra. Diga-se, em boa verdade, que vindo desde Governo já pouco ou nada nos surpreende.
Mas, quando pensamos que já demonstrou o seu total desrespeito e desconsideração pelas populações e pelas instituições, o Governo consegue ir mais longe, independentemente de princípios de seriedade, ética ou mesmo de sentido democrático. Senão vejamos.
Tivemos conhecimento do aviso para apresentação de candidaturas no domínio do ciclo urbano da água, no âmbito do Programa Operacional Temático Valorização do Território (POVT) 2007-2013, inserido no QREN, dirigido ao investimento nas redes de abastecimento de água e de drenagem de águas residuais, na vertente em baixa — modelo não verticalizado.
Neste aviso, verificámos que um dos critérios a considerar na avaliação dos critérios de seleção das candidaturas apresentadas exige que a entidade beneficiária, que poderá ser municípios, associações de municípios, juntas metropolitanas, comunidades intermunicipais, serviços municipalizados, sector empresarial local e sistemas municipais ou intermunicipais, «não tenha manifestado oposição ao processo de fusão de sistemas multimunicipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público e/ou recolha, tratamento e rejeição de efluentes, ou aos processos de verticalização através de parcerias estabelecidas nos termos do Decreto-Lei n.º 90/2009, de 9 de abril».
Em vez de os critérios assentarem em parâmetros de avaliação sérios, objetivos, rigorosos e transparentes quanto à necessidade e importância dos investimentos nas redes em baixa, quer de água quer de saneamento, estão sujeitos às opções políticas do Governo, beneficiando os municípios que estejam disponíveis para a privatização, em detrimento daqueles que defendem a gestão pública da água e do saneamento, prejudicando essas populações.
É escandaloso que o Governo introduza um parâmetro de avaliação das candidaturas de natureza política, que, numa primeira leitura, quase passa despercebido, para «levar a água ao seu moinho».
O Governo já manifestou publicamente a intenção de privatizar o setor do abastecimento de água e de saneamento, correspondendo às velhas pretensões dos grupos económicos de monopolização e de obtenção de lucros à custa de um direito das populações e de um bem essencial à vida. Numa total desfaçatez, o Governo aplica os seus objetivos mercantilistas e economicistas, numa evidente opção política e ideológica contrária aos interesses públicos.
A orientação estratégica do Governo para privatizar o abastecimento de água passa por três fases: primeiro, pela fusão dos sistemas multimunicipais em alta, passando de 19 sistemas, atualmente existentes nos serviços de água, para 4; segundo, pela verticalização, integrando a rede em baixa nos sistemas multimunicipais já agregados; terceiro, pela concessão a entidades privadas, ou seja, a sua privatização.
Há uma questão prévia que é necessário ter em atenção neste processo: a esmagadora maioria das redes em baixa de água e saneamento encontram-se na esfera pública, sob gestão direta dos municípios, detentores de autonomia no cumprimento das suas competências, consagrada na Constituição da República Portuguesa. Portanto, para que este modelo estratégico de privatização já anunciado pelo Governo avance, os municípios têm de estar de acordo, o que constitui um obstáculo à sua concretização.
No passado, questionámos diretamente o Governo, nomeadamente a Ministra Assunção Cristas, sobre como pretende implementar este modelo de fusão e de verticalização dos sistemas com vista à sua privatização. A Ministra assumiu que teria de convencer os municípios e que a solução não passaria de modo algum por qualquer tipo de imposição ou obrigatoriedade mas, sim, por uma adesão voluntária dos mesmos.
Com este aviso, percebemos bem qual o entendimento de adesão voluntária. Rapidamente a adesão voluntária passou a uma obrigação; caso contrário, o acesso a fundos comunitários para a realização de investimentos fundamentais nas redes de abastecimento de água e saneamento em baixa fica condicionado, isto é, não há financiamento para os municípios que não estão de acordo com a privatização. Quer isto dizer que a Sr.ª Ministra mentiu à Assembleia da República, às autarquias e às populações?
Sr.ª Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:
Utilizar recursos públicos não para resolver os problemas e melhorar as condições de vida das populações mas, sim, para impor a opção política e ideológica é uma atitude desprezível. Um Estado de direito, de respeito pela autonomia das autarquias, e que supostamente deveria defender a coisa pública, recorrer a este tipo de expediente é, no mínimo, vergonhoso.
Os municípios, para este Governo — tal como acontece, aliás, na tentativa de extinção de freguesias —, têm liberdade de decidir, desde que seja para estar de acordo com as orientações do Governo.
É inaceitável a pressão e a chantagem exercidas sobre os municípios, principalmente sobre aqueles que defendem a gestão pública do abastecimento de água e saneamento, para os obrigar a aderir às posições do Governo, pois só deste modo é possível acederem aos fundos comunitários para assegurarem os investimentos.
É inaceitável que o Governo utilize recursos públicos para realizar os investimentos necessários nas redes de abastecimento de água e tratamento de efluentes para posteriormente as entregar de bandeja aos privados, sem riscos, sem custos de investimento, pois estes encontrar-se-ão já realizados, aumentando assim os seus lucros.
O «quero, posso e mando» é o lema deste Governo para impor soluções e políticas contestadas pelas populações e autarquias, onde a democracia só existe enquanto houver acordo com a sua posição e o entendimento de regime democrático é tudo fazer para salvaguardar os interesses do capital.
Para quem ainda tenha dúvidas sobre a natureza de classe do Governo PSD/CDS-PP fica claro que entre o público e o privado o Governo beneficia sempre, e sem hesitar, o privado, em detrimento dos direitos do povo, sem qualquer problema em violar constantemente a Constituição da República Portuguesa.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr. Deputado António Leitão Amaro,
Registo, em primeiro lugar, que não se referiu à questão central da intervenção que trouxemos hoje à Assembleia da República.
Esta intervenção, Sr. Deputado, é sobre o aviso que abre candidaturas para o ciclo urbano da água, o qual coloca como um critério a avaliar e a ponderar nessas candidaturas que os municípios, neste caso as entidades beneficiárias — e é bom que se registe isto para se perceber o incómodo por parte do PSD e porque não se referiu a esta questão —, não tenham manifestado oposição ao processo de fusão de sistemas multimunicipais de captação, tratamento e distribuição de água, de tratamento de efluentes e aos processos de verticalização.
Coincidência ou não, pasme-se a semelhança que há entre o modelo estratégico do Governo para a privatização da água — pode chamar-lhe concessão, pode chamar-lhe o que entender, mas, na prática, o que o Governo quer é entregar a entidades privadas este setor essencial, que é um direito da população e que é essencial à vida — e as condições colocadas neste aviso, em que os municípios que não aderirem e que não tiverem a posição deste Governo são excluídos, são colocados de fora, de poderem realizar investimentos essenciais para as respetivas populações.
Sr. Deputado, grande confusão é aquilo que o PSD e o Governo querem instalar junto da população portuguesa, dizendo que a titularidade vai manter-se pública. Sr. Deputado, acha que, sendo a gestão privada, com entidades privadas, se vai garantir o direito à água a todos os portugueses?
Acha que o preço vai ser acessível e que as populações vão ter condições para o acesso à água?
Ainda há pouco anunciaram um aumento da taxa do IRS e querem aumentar novamente os custos da água para as populações?
Será certamente para valores entre 2,5 € e 3 €, como diz o Presidente da Águas de Portugal.
Isto é exatamente para que este não seja um bem garantido às populações, realizando investimentos públicos para que o privado vá beneficiar e aumentar as tarifas às populações.
Não enganem as pessoas, porque no período eleitoral o PSD nunca disse verdadeiramente qual era o seu programa e vem agora aqui dizer que a população votou na privatização. Vá perguntar às pessoas se querem ou não água pública.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr. Deputado,
Agradeço a sua questão. De facto, o PCP sempre se debateu, no Parlamento e fora dele, pela defesa do direito à água pública. A água pública é um bem de todos e deve ser garantido para todos, coisa bem contrária àquilo que o Governo do PSD e do CDS-PP vem propor.
É verdade, Sr. Deputado, que a aplicação da Lei dos Compromissos, nomeadamente na administração local, cria um conjunto de constrangimentos vários às autarquias para a prossecução das suas competências, que abrangem áreas muito diversificadas e que abrangerão também, naturalmente, a questão das águas e do saneamento, colocando em causa investimentos que serão necessários para as populações — ao nível das infraestruturas, ao nível dos espaços verdes, ao nível das áreas sociais, que são das suas competências.
Consideramos que esta Lei dos Compromissos, além de criar este estrangulamento ao nível da administração local e da administração central, tem ainda, no que diz respeito à administração local, um outro aspeto a apontar, que é a ingerência na autonomia do poder local democrático na tomada de decisões e no planeamento das intervenções e das ações a desenvolver em prol das respetivas populações para resolver esses problemas e para melhorar a sua qualidade de vida.
Na nossa opinião — aliás, o PCP votou contra esta lei na Assembleia da República porque prevíamos isto, e infelizmente a realidade tem vindo a dar-nos razão —, a aplicação desta lei claramente paralisa a administração local e central, deixando de cumprir e de assumir as suas responsabilidades.
Provavelmente, poder-se-á tratar de mais uma estratégia por parte do Governo do PSD e do CDS para restringir e degradar os serviços públicos e desta forma justificar a sua privatização, porque não se trata só da questão da água, são muito mais abrangentes esses objetivos privatizadores. Podemos falar de saúde, podemos falar de educação, podemos falar em muitos outros setores, do conjunto de privatizações com que este Governo está a avançar, sempre contrários aos interesses públicos, sempre contrários aos interesses dos trabalhadores, sempre contrários aos interesses do povo português.
(…)
Sr. Presidente,
Sr.ª Deputada Heloísa Apolónia,
Agradeço também as suas considerações e as suas questões em relação a esta matéria.
De facto, só a gestão pública da água e do saneamento garante um serviço de qualidade, a universalidade e o acesso a todas as populações.
É verdade que o PSD, durante a campanha eleitoral, nunca fez uma referência aos seus reais objetivos em relação a esta matéria.
Vir aqui insinuar que as pessoas votaram no PSD, que propunha a privatização da água, por causa dessa mesma proposta é, no mínimo… Diria que não há palavras para descrever essa expressão que utilizou aqui.
O Sr. Deputado, de certa forma, tentou fazer a defesa separando a titularidade da propriedade, como se fosse essa a questão que está em cima da mesa. Sr. Deputado, isto é quase como nas PPP, em que as estradas são públicas, os lucros são privados, quem ganha são os privados, mas quem paga são as pessoas.
Podemos aplicar isto exatamente a este setor.
Diz que a titularidade é pública. Mas a gestão é dos privados, e são esses que vão obter os lucros com investimentos públicos, com investimentos realizados com o contributo de todas as pessoas. Porém, quem, depois, vai pagar essa mesma gestão vão ser as pessoas, vão ser os munícipes, vai ser a população.
Após o roubo nos salários, após o corte nas prestações sociais, após os cortes nas reformas, após mais este conjunto de medidas de austeridade que hoje o Governo anunciou, ainda pretendem aumentar o preço da água para dificultar ainda mais a vida das pessoas.
A água, Sr. Deputado, é um direito de todos que deve ser garantido e salvaguardado, um bem essencial à vida que não deve estar sujeito a interesses mercantilistas e economicistas, nem deve estar sob uma perspetiva comercial, mas, sim, sob uma perspetiva de gestão pública.
É exatamente nesta perspetiva, Sr.ª Deputada Heloísa Apolónia, que o PCP se tem colocado também aqui, na Assembleia da República.
Para além disso, o PCP tem estado sempre ao lado das populações e dos movimentos que defendem a água pública e que estão, neste momento, a desenvolver uma campanha com o título «A água é de todos», de facto, uma campanha essencial para a defesa deste direito.
(…)
Sr. Presidente,
Sr.ª Deputada Catarina Martins,
Agradeço também as suas questões.
Independentemente do nome que o PSD, o CDS e o Governo queiram dar a este processo, a este modelo de estratégia em relação aos setores de abastecimento e de saneamento da água, ele é, claramente, uma privatização, porque o que está na sua essência é entregar a setores privados, aos grupos económicos privados, um setor público essencial. É uma privatização, porque põe completamente de fora a gestão pública deste bem, desde a sua captação até à distribuição, bem como o respetivo tratamento de efluentes.
Naturalmente que os objetivos não são os de garantir a qualidade, ou o serviço público, ou a acessibilidade às populações, porque para estes grupos privados a primeira preocupação que vai estar sempre em cima da mesa é o lucro, o que os move vai ser o aumento do lucro, independentemente das consequências que tenha para as respetivas populações.
Efetivamente, este aviso de apresentação de candidaturas e a forma como ele é apresentado, na nossa perspetiva, é uma verdadeira vergonha. É uma verdadeira vergonha que o Governo, para impor e para avançar com as suas opções políticas e ideológicas, utilize recursos públicos, utilize meios do Estado, para obrigar municípios a aderir a uma posição política contrária à sua própria opinião. Isto é uma pura chantagem! É inaceitável que isto seja feito nestes moldes.
Ou seja, para um município poder ter acesso aos fundos comunitários e para poder realizar investimentos no seu município a fim de beneficiar as populações, tem de estar de acordo com a opinião política do Governo; caso contrário, não tem acesso.
De facto, este entendimento de democracia deixa muito a desejar e é uma machadada nos princípios do respeito pela autonomia, nos princípios do respeito pelas várias posições, mas, principalmente, um ataque aos serviços públicos, um ataque à nossa Constituição e um ataque ao direito à água.
A terminar, não poderia deixar de fazer referência ao facto de o CDS-PP não ter entrado neste debate e também não ter colocado questões e, naturalmente, fazer considerações em relação a esta matéria. Ainda por cima, quando a Ministra desta área faz parte do seu partido!
A Ministra é do CDS-PP.
Será que o CDS não tem nada a dizer ou quem cala consente e, de facto, assume este aviso de apresentação de candidaturas, este regulamento?
O PCP entende que o que está aqui referido é um ataque, é inaceitável que seja colocado desta forma e está, naturalmente, também comprometido com estes objetivos de privatização, a saber, aumentar as taxas, aumentar os preços da água às populações e degradar o serviço público atacando aquele que é um direito essencial para todos, que é o direito à água.

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