Sessão Pública sobre«Precariedade não é um futuro nem uma fatalidade»
Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do PCP
A precariedade e o trabalho ilegal são dos problemas sociais mais graves, a par com os elevados níveis de desemprego que o mundo do trabalho e o país enfrentam. Os trabalhadores e os portugueses em geral sabem que há muito tempo acompanhamos com preocupação o problema da precariedade do trabalho e que face a ele não nos temos ficado apenas pela necessária denúncia pública, mas temos tomado várias iniciativas, quer promovendo o debate na Assembleia, como aconteceu no decorrer deste ano que findou com a interpelação ao governo por nossa acção, quer tomando iniciativas legislativas, com a apresentação de projectos-lei, já na presente legislatura.
Trata-se, de facto, de um problema muito sério, ao qual é necessário dar combate prioritário, no plano da luta e da iniciativa política, para fazer retroceder e anular esta crescente tendência para a precariedade das relações de trabalho na sociedade portuguesa.
Problema que é indissociável dos baixos salários, da crescente violação dos direitos dos trabalhadores portugueses, das condições degradadas de trabalho, da complacência de sucessivos governos e dos poderes públicos face ao trabalho ilegal.
As informações que aqui vieram são um expressivo exemplo deste grave problema, mas a amplitude e gravidade da precariedade e do trabalho ilegal nas suas diversas formas está bem patente nos próprios números oficiais. Eles revelam, tal como as intervenções dos amigos e camaradas presentes, que estamos perante um dos factores mais negativos no plano dos direitos, das condições de vida e do condicionamento do próprio progresso do país.
São hoje mais de 828 mil trabalhadores com contratos a termo e com uma das mais altas taxas da União Europeia, apenas superada pela Polónia e pela Espanha. Na esmagadora maioria dos casos, não se trata de trabalho sazonal e muito menos de necessidades pontuais que justificassem celebrar um contrato a termo, mas postos de trabalho permanentes que remete e amarra estes milhares e milhares de trabalhadores a um ciclo infernal de instabilidade num rodar sucessivo, entre o desemprego e a precariedade, numa permanente desestabilização das suas vidas, incapazes de assegurar as mínimas condições de segurança em relação ao futuro. Uma situação que reduz a protecção no desemprego e cria sérios prejuízos às carreiras contributivas, afectando as reformas dos trabalhadores. Ciclo infernal que atinge particularmente os jovens, 50% dos quais estão em situação precária.
Precariedade que atinge também muitas outras dezenas de milhares de trabalhadores, vitimas das empresas de trabalho temporário e aluguer de mão-de-obra, cujas actividades se vão expandindo sem controlo e sem lei. Milhares e milhares de trabalhadores por conta de outrem, obrigados a recorrer aos falsos recibos verdes para poderem trabalhar.
A estes trabalhadores, juntam-se também 570 mil trabalhadores em situação de trabalho parcial, não porque o desejem, mas porque não têm outra alternativa. Não se trata na verdade de uma opção voluntária de compatibilização da vida pessoal e familiar com a vida profissional, mas uma amarga realidade imposta como única saída para garantir um salário reduzido que está longe de assegurar um mínimo de meios de subsistência.
Situação que empurra muitos destes trabalhadores para outros trabalhos a tempo parcial e para o trabalho não declarado com as conhecidas consequências no plano da sobrecarga horária e das condições de segurança em que trabalham, para não falar das dificuldades para conciliar as responsabilidades da vida familiar e de encontrar tempo e espaço para a necessária valorização pessoal e qualificação profissional.
O trabalho precário significa esse permanente saltar de um lado para outro sem estimulo à formação e à qualificação, sem condições e possibilidades de verdadeiras qualificações.
Na verdade a precariedade dos contratos e dos vínculos, é a precariedade da família, é a precariedade da vida, mas é igualmente a precariedade da formação, da experiência profissional e da produtividade do trabalho, comprometendo o desenvolvimento do país.
No boletim mensal do mês passado do Banco de Portugal, pudemos verificar que mais de 7% do emprego declarado, cerca de 364 mil pessoas apenas conseguiam garantir 20 horas de trabalho semanal. E dentro destes, cerca de 110 mil trabalhadores só conseguiam um salário correspondente a dez horas.
Situação que se agravará se for aprovada a Lei do trabalho temporário do Governo do PS, apresentada o ano passado e que vai alargar ainda mais o caminho por onde passa a desregulamentação descarada das relações laborais, ao permitir às empresas de trabalho temporário um mais amplo campo de manobra para transformar o trabalho temporário numa forma encapotada subcontratação, retirando-lhe o seu carácter de excepcionalidade.
Toda esta realidade da precariedade laboral está também associada ao grave problema do trabalho não declarado e ilegal que é hoje ainda uma situação difícil de avaliar na sua verdadeira dimensão, mas que se deduz pelo enorme peso que apresenta em Portugal a economia subterrânea que pelos vários estudos que se vão fazendo se estima se situe entre 20 a 25% do Produto Interno Bruto. Realidade que é sem dúvida um forte incentivo à precariedade, mas também ao tráfego de mão-de-obra envolvendo o trabalho imigrante, além de ser uma forma de debilitar o financiamento da segurança social e das receitas do Estado.
Esta sistemática violação dos direitos dos trabalhadores é também o resultado da reduzida eficácia da Inspecção-Geral do Trabalho e da existência de uma justiça célere e com custos que impedem em muitos casos o próprio acesso à justiça.
Mas a precariedade não é apenas uma preocupante situação que se constata no sector privado. Ela é uma realidade de um país em que o Estado, em vez de dar o exemplo, faz exactamente o contrário. Na verdade, os sucessivos governos não têm hesitado em usar e abusar das diferentes formas de contratação precária, nomeadamente com o recurso à abundante prática dos recibos verdes e de outras situações precárias que envolvem cerca de 150 mil trabalhadores. Milhares de trabalhadores que desempenhando funções permanentes sem qualquer vínculo e sobre os quais pesa de forma permanente a ameaça da suspensão, depois de anos de trabalho, com a particular injustiça de ficar sem emprego e sem qualquer tipo de indemnização.
Situação que o actual governo do PS se prepara para agravar de forma drástica com as suas propostas de reestruturação da Administração Pública, assentes na falsa premissa de que Portugal tem uma administração pública muito superior à dos outros países. Justificação que não tem outro objectivo senão o de pôr em prática as teorias neoliberais do Estado mínimo com a entrega ao sector privado dos serviços públicos essenciais.
O PRACE foi o primeiro passo que se vai concretizando com o encerramento das maternidades, escolas, centros de saúde, urgências e serviços de atendimento permanente de saúde e outros serviços essenciais às populações, depois o programa de “racionalização dos efectivos” e o “regime de mobilidade” com o objectivo de abrir as portas aos despedimentos massivos e à precarização das relações de trabalho e que agora se quer ampliar com a anunciada intenção do governo, a pretexto da delimitação da natureza dos vínculos laborais, de reduzir às áreas de soberania (defesa, relações externas e pouco mais) as funções nucleares do Estado, com o objectivo de alienar mais funções e mais responsabilidades sociais do Estado. Trata-se de facto de um projecto inquietante que a concretizar-se levará ao esvaziamento progressivo das principais áreas e funções do Estado e à sua reconfiguração colocando-o ao serviço dos interesses dos grandes grupos económicos e financeiros.
Projecto que põe em causa a própria essência da função pública, a própria natureza do estatuto de trabalhador da Administração Pública com a intenção de introdução, em larga escala, também do regime de contrato individual de trabalho.
Mas projecto inquietante é também o da chamada “flexigurança” essa nova “varinha mágica” defendida pelo grande capital europeu e nacional e que dizem ser para a criação de emprego, mas cujo efectivo propósito é impor a total liberalização dos despedimentos, a desregulação dos horários de trabalho e a total precarização do mercado de trabalho.
Esta é uma nova ameaça que o Governo do PS se prepara para considerar e concretizar e que se não for contida se traduzirá na desregulamentação completa das leis laborais, intensificando a exploração dos trabalhadores, a precariedade e o desemprego, as injustiças e as desigualdades sociais e aprofundando o processo de concentração e acumulação de riqueza que as políticas de direita têm vindo a promover.
É preciso inverter este caminho que agrava todos os dias as injustiças e as desigualdades sociais.
As condições de vida dos trabalhadores e do povo estão cada vez mais distantes das encenações cor-de-rosa e das projecções optimistas do governo.
Ontem foram revelados pelo Instituto Nacional de Estatística os dados do desemprego e do trabalho precário do último trimestre de 2006. A taxa de desemprego (em sentido restrito) atingiu no final de Dezembro, 8,2%, o que corresponde a 458.600 trabalhadores no desemprego. Uma subida de 9,9% em relação ao trimestre anterior e de 2,5% em relação a igual período de 2005. Uma taxa altíssima que em sentido lato significa 10,8% de trabalhadores no desemprego, cerca de 614 000. O desemprego de longa duração a continuar a aumentar com mais de metade dos trabalhadores no desemprego nesta situação. O trabalho precário, segundo os dados do INE ultrapassou os 21,3% do total dos trabalhadores por conta de outrem.
É aqui na Região Norte que se regista a maior taxa de desemprego do país, com 9,7%.
Esta é uma evolução preocupante que confirma que o rumo traçado pelo governo do PS, seguindo, no essencial, as mesmas orientações e políticas de direita dos anteriores governos do PSD e CDS-PP, não está em condições de responder aos anseios e aos reais problemas dos trabalhadores e do povo.
Não há propaganda que mude a dura realidade com que Portugal está confrontado: a realidade do “pára, arranca” entre a estagnação e uns “pingos” de crescimento que continua a agravar a sua situação social e estrutural.
É necessária uma política económica e financeira que promova o crescimento e o desenvolvimento. Esta política tem de romper com as políticas restritivas e monetaristas centradas no combate ao défice das contas públicas, de romper com o processo de privatizações, liberalização e crescente desregulamentação, de romper com a política de redução do investimento público.
Só essa política, como vezes sem conta o PCP tem colocado aos portugueses, é capaz de criar e manter o emprego a um alto nível, de criar e manter empregos cada vez mais qualificados.
Mas, também outras medidas que valorizem o trabalho e o trabalho com direitos. Uma política e uma acção governativa que não encarem como uma fatalidade a desregulamentação laboral e a precariedade como uma inevitabilidade.
São possíveis medidas e há respostas para este grave e grande problema com o aprofundamento da fiscalização da Inspecção-Geral do Trabalho, relativamente ao cumprimento da legislação laboral, particularmente no que concerne às relações de trabalho: com a obrigatoriedade da transformação dos contratos a termo e outras formas de relações precárias correspondentes a funções de natureza permanente, em contratos sem termo; com a revogação das normas do Código do Trabalho que permitem a contratação a termo de jovens só por estarem à procura do primeiro emprego, bem com a revogação da disposição legal que permite a contratação a termo, de desempregados de longa duração; com o combate ao trabalho ilegal ou não declarado, pelo reforço da fiscalização e inspecção.
Mas também com outras medidas e soluções como as que o PCP apresentou na Assembleia da República que instituía o Programa Nacional de Combate à Precariedade e ao Trabalho Ilegal e criação da Comissão Nacional para o coordenar e dinamizar, que o PS recusou, ou o projecto-lei contra a precariedade na Administração Pública que se associa às propostas já avançadas de alteração do Código do Trabalho.
Propostas que partem da ideia que o combate à precariedade laboral e ao trabalho não declarado e ilegal deve constituir uma política do Estado, que se assumida terá êxito, como teve na solução de outros problemas.
Estas são propostas com as quais não deixaremos no futuro de insistir, porque somos um Partido que não desiste e que luta e lutará para enfrentar os problemas do país, para derrotar a ofensiva contra os direitos económicos e sociais que está em curso, para que os trabalhadores e o povo português tenham uma vida melhor.
Mas estas são também propostas que na sua concretização não dispensam o contributo da luta dos trabalhadores e do povo. Lutas como as que se vão travar no próximo mês de Março, como a Acção de Luta Nacional Convergente, marcada pela CGTP para o dia 2 de Março e a Manifestação Nacional de Jovens Trabalhadores para 28 de Março em defesa dos seus direitos e contra a precariedade. Lutas que assumem particular importância para a criação de uma ampla frente social pela exigência da interrupção das políticas de direita e na afirmação de um novo rumo para o país, assente numa política alternativa e de esquerda que retome os valores de Abril.