Intervenção de Bernardino Soares na Assembleia de República

Política de recursos humanos do Serviço Nacional de Saúde

Interpelação sobre a política de recursos humanos do Serviço Nacional de Saúde e o seu impacto no acesso, funcionamento, capacidade e qualidade assistencial dos serviços públicos de saúde
(interpelação n.º 3/XI/1.ª)(http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheActividade...)

Sr. Presidente,
Srs. Deputados,
Srs. Membros do Governo,
Ouvi a intervenção da Sr.ª Ministra da Saúde e confesso que é de ficar incomodado com uma tal intervenção no momento em que o Serviço Nacional de Saúde está perante uma das mais graves ameaças à sua sustentabilidade, pois a Sr.ª Ministra fez um discurso idêntico ao que fez há seis meses ou há um ano, como se nada se tivesse passado.
É uma vergonha que não haja sequer um sobressalto perante o que se está a passar no Serviço Nacional de Saúde e que não haja sequer um reconhecimento daquilo que o Governo está a fazer para deitar abaixo o Serviço Nacional de Saúde, através da saída de recursos humanos para o sector privado e para a aposentação.
Diz-se que são já 500 os pedidos de saída e nós vemos isso todos os dias nas notícias. São especialistas que faltam em vários hospitais, nos centros de saúde, que deixam de dar resposta a muitos utentes que ficam sem médico de família e o Governo vem aqui com um discurso de calmaria, que não tem nada a ver com a agitação e com o descalabro que se está a passar no Serviço Nacional de Saúde.
O Governo afirma sempre as boas intenções. A Sr.ª Ministra puxa dos galões de médica do Serviço Nacional de Saúde, que ninguém lhe tira, e depois, na prática, é cúmplice de uma política que empurra para fora do Serviço Nacional de Saúde centenas de profissionais qualificados.
O Governo vem agora dizer que vai haver afinal um regime excepcional. Então, porque é que o Governo não assumiu isso durante o Orçamento do Estado? Porque é que não pôs essa excepcionalidade no Orçamento do Estado?
Porque é que entregou um Orçamento do Estado a empurrar para fora os médicos do Serviço Nacional de Saúde e agora vem a correr dizer «afinal vamos ter aqui um regime excepcional», que ninguém sabe muito bem quando e como vai funcionar? Isto não é sério, Sr.ª Ministra. Se queria estancar essa saída, devia tê-lo feito no Orçamento do Estado.
Não há nenhuma garantia agora de que consiga fazê-lo e, muito menos, não há garantia de que os que já pediram para sair voltem atrás na sua decisão. Essa responsabilidade é sua, não é só do Sr. Ministro das Finanças. É sua, Sr.ª Ministra! Está a contribuir para que o Serviço Nacional de Saúde fique depauperado do seu recurso mais fundamental, que são os médicos, que são os enfermeiros, que são os profissionais de saúde.
Mais, Sr.ª Ministra: o problema não é só a aposentação, o problema consiste igualmente nas condições de trabalho que faltam no Serviço Nacional de Saúde, bem como na destruição das carreiras, que foi feita com a reforma da Administração Pública, o que tornou esta pouco apetecível para profissionais muito qualificados, como existem na área da saúde. Esse problema já começou há vários anos, não foi só com estas últimas regras da aposentação.
Quando se sabe que a Sr.ª Ministra não quer dar resposta às justas solicitações dos médicos, dos enfermeiros, de tantos e tantos profissionais de saúde em matéria de carreiras, depois de tudo o que se passou ao longo dos últimos anos, a Sr.ª Ministra está a contribuir para que o Serviço Nacional de Saúde se afunde.
O Sr. Deputado João Semedo há pouco disse aqui que o PS era um partido fundador do Serviço Nacional de Saúde. Pois, a Sr.ª Ministra e este Governo estão a transformar o PS no partido afundador do Serviço Nacional de Saúde, no partido que está a contribuir para destruir o Serviço Nacional de Saúde!
A Sr.ª Ministra diz placidamente que os recursos humanos são o coração do Serviço Nacional de Saúde. Eu respondo-lhe com outra imagem: estamos perante uma severa hemorragia no Serviço Nacional de Saúde, em matéria de recursos humanos.
O Governo responde que está a criar Faculdades de Medicina que virão a dar mais médicos para o nosso Serviço Nacional de Saúde.
Sr.ª Ministra, em vez de dizer que vai pôr mais um saco de sangue para transferir para o Serviço Nacional de Saúde daqui a uns anos, estanque a hemorragia, dê condições de trabalho aos profissionais, impeça que eles se aposentem para irem trabalhar para o sector privado, onde lhes estão a dar melhores condições. Essa é a sua responsabilidade! Ou isso ou aceitar que vai contribuir e ser cúmplice para a destruição do Serviço Nacional de Saúde.
(…)
Sr. Presidente,
Srs. Deputados,
Srs. Membros do Governo:
Julgo que a Sr.ª Ministra não deve sair deste debate sem explicar por que é que o Governo inscreveu no Orçamento regras para a aposentação dos profissionais da Administração Pública com um determinado figurino e vem agora correr atrás do prejuízo e dizer que, afinal, vai haver um regime especial, o qual não se sabe quando vai entrar em vigor, nem que tipo de regime especial…
Não sou a favor nem contra, porque não sei o que é. Não existe. Não está aprovado. Não está proposto. Não existe. É zero. O que existe é o Orçamento do Estado aprovado, que diz que toda a Administração Pública é submetida à regra das «duas saídas por uma entrada», que estabelece o agravamento das condições de aposentação dos profissionais da Administração Pública, incluindo os da área da saúde.
Sr.ª Ministra, nós recebemos neste grupo parlamentar (e os outros partidos certamente também) telefonemas de pessoas da Administração Pública a perguntar se podiam escapar às novas regras do Orçamento, se entregassem já o pedido de aposentação. Tal facto levou a que centenas de profissionais pedissem a saída da Administração Pública. E vem agora a Sr.ª Ministra, uma semana ou duas depois da aprovação do Orçamento, dizer: «afinal vamos ter aqui um regime especial, que hoje aprovámos na generalidade».
Mais: o que os senhores hoje aprovaram na generalidade não foi nenhuma alteração às regras da aposentação. Foi um regime para poder contratar, em determinadas condições, os médicos e outros profissionais que se venham a aposentar.
Sr.ª Ministra, então não é prioritário impedir que eles se aposentem antes do tempo? Não é aí que devia concentrar os seus esforços? Para que é que quer contratá-los depois, se o que devia fazer era impedir que eles se aposentassem? Por que razão não aposta as suas baterias nisso? Porque o Sr. Ministro das Finanças não deixa, porque não é possível alterar as regras de aposentação para os funcionários públicos, constantes do Orçamento.
Portanto, Sr.ª Ministra, isto que os senhores anunciam na generalidade para entrar em vigor sabe-se lá quando, não é a solução do problema. Nem vai conseguir competir com os salários que o sector privado está disposto a pagar a todos os médicos muito experientes que se aposentem, na última parte da sua carreira, neste momento do Serviço Nacional de Saúde. Vai ser totalmente ineficaz.
O que seria eficaz era imediatamente revogar o agravamento das normas da aposentação e garantir assim que todos os funcionários públicos (profissionais de saúde incluídos) se mantivessem na Administração Pública, nos hospitais, nos centros de saúde, com o seu saber, com a sua experiência, com a sua dedicação ao Serviço Nacional de Saúde. As medidas que os senhores propõem não têm nada a ver com isso e não vão resolver nenhum problema.
Vou terminar, Sr. Presidente, dizendo o seguinte: a Sr.ª Ministra passou o tempo a falar das responsabilidades do passado, que cabem também ao Partido Socialista e aos seus governos. E as responsabilidades do presente, Sr.ª Ministra?! E as responsabilidades de quem andou todos estes anos a atacar a Administração Pública e a criar objectivamente as condições para que os profissionais de saúde saíssem da Administração Pública?!
Há uma tira da Mafalda, do criador argentino Quino, que, referindo-se às Nações Unidas e ao seu papel na mediação de conflitos naquela década de 70, dizia que as Nações Unidas eram uma espécie de «simpáticos inoperantes».
Quase que me apetecia atribuir à Sr.ª Ministra e à sua política o mesmo qualificativo: uma simpatia inoperante.

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