Intervenção

Política criminal para o biénio de 2007/2009 - Intervenção de João Oliveira na AR

Objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007/2009, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio, que aprova a Lei-Quadro da Política Criminal

 

Sr. Presidente,
Sr. Ministro da Justiça,

Nesta intervenção inicial, V. Ex.ª não deixou de repetir alguns dos enunciados gerais e globais que tanto marcam a proposta de lei (n.º 127/X) que estamos a discutir, mas há algumas questões mais concretas a que entendemos que seria necessário dar resposta, a primeira das quais é muito simples e objectiva e tem a ver com as consequências práticas que o Governo coloca no horizonte desta proposta de lei, ou seja, na prática, em que é que esta proposta de lei se poderá traduzir.

O Sr. Ministro identifica, como enunciado geral de qualquer política criminal, a necessidade de consideração da prevenção e da investigação criminal - e, nisto, estamos certamente de acordo -, mas, na prática, em que é que esta proposta de lei pretende alterar a realidade que temos hoje? É com a aceleração processual? É com a redução da pendência processual? É com o objectivo de reduzir o número de condenações a penas de prisão que se regista, hoje, em Portugal?

De facto, a resposta a esta questão é fundamental, por duas ordens de razões: primeiro, para podermos avaliar plenamente os mecanismos que a proposta de lei prevê e perceber se se adequam, de facto, aos objectivos que o Governo define; segundo, para podermos, daqui por dois anos, e porque esta é uma lei datada no tempo, avaliar a sua aplicação.

A segunda questão que lhe coloco tem a ver com uma preocupação que entendemos dever estar subjacente à definição de uma política criminal, com o conhecimento aprofundado da realidade com que estamos confrontados neste domínio. E a questão que lhe quero deixar é a seguinte: de que estudos criminológicos, sociológicos, de que análises estatísticas ou vitimológicas dispõe o Governo que lhe permitiram redigir esta proposta de lei? Em que é que o Governo se baseou para redigir esta proposta de lei? Que estudos são esses, que conhecimento tem ou não o Governo da realidade para elaborar esta proposta de lei? É que esta questão, de facto, condiciona uma outra, que tem a ver com a identificação, nesta proposta de lei, dos crimes que consubstanciam as prioridades, porque só um conhecimento profundo da realidade possibilita encontrar os critérios que permitirão, depois, concretizar a definição das prioridades. E esta é uma questão que também queremos colocar-lhe, Sr. Ministro: que critérios tomou o Governo por base para definir o elenco de prioridades? É o critério do bem jurídico protegido, com a definição do tipo de ilícito? É o critério de necessidade de resposta à perturbação social criada pela mediatização de alguns tipos de crime? Que critérios adoptou o Governo para a definição deste elenco de prioridades?

Por último, Sr. Ministro, deixo-lhe uma questão que tem a ver com o artigo 18.º da proposta de lei, que define como competência do Governo a afectação dos meios necessários ao cumprimento desta lei. E a questão concreta que lhe coloco, em relação a este artigo 18.º, é a seguinte: qual é a identificação que o Governo já fez dos meios necessários ao cumprimento da lei? Quais são os meios necessários ao cumprimento da lei? Que medidas é que o Governo já tomou para dotar o sistema judicial, nomeadamente o Ministério Público, que é o principal destinatário desta proposta de lei, de modo a que possa cumprir cabalmente as funções que lhe são cometidas nesta lei, e quais são as que irá tomar até Setembro, data da entrada em vigor da presente lei?

(...)

Sr. Presidente,
Sr. Ministro da Justiça,
Sr.as e Srs. Deputados:

Antes de mais, importa fazer uma ligação entre a discussão hoje aqui travada em torno desta proposta de lei e a sua matriz, a Lei-Quadro da Política Criminal, pois uma e outra são indissociáveis. Importa, pois, analisar esta proposta de lei à luz do quadro criado com a Lei n.º 17/2006.

Assim sendo, começo precisamente por referir, Sr. Ministro, as considerações que o Conselho Superior da Magistratura nos pôde disponibilizar relativamente àquilo que identifica como um problema originário da Lei-Quadro da Política Criminal e que, nas palavras do Conselho Superior da Magistratura, esta proposta de lei não resolve.

Esse problema originário tem a ver com um problema fundamental que é identificado neste parecer nos seguintes termos: «O seu conteúdo, se absolutamente genérico e programático, torna-se inconsequente e por isso inútil; se concretizado em determinações, imposição de condutas ou procedimentos, corre o risco de se tornar inconstitucional, por afectação de princípios de legalidade e de autonomia do Ministério Público, podendo, no extremo, afectar a própria separação e independência do poder judicial».

Ora, é no enquadramento deste problema originário e nesta aparente encruzilhada que o Governo se coloca com a apresentação desta proposta de lei. É porque de duas, uma: ou a lei é inconsequente para não beliscar a autonomia do Ministério Público, ou, beliscando a autonomia do Ministério Público, consegue, de facto, atingir alguma consequência.

E, em nosso entender, Sr. Ministro, esta proposta de lei padece dos dois males: padece destes dois males, antes de mais, porque o elenco de crimes identificados como prioritários consome mais de 50% dos inquéritos pendentes nas comarcas do nosso país. Ora, se o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal se concentrarem, desde já, só nestes crimes, dificilmente se poderá obter algum objectivo de celeridade.

O Sr. Ministro está a acenar com a cabeça que não... Então, gostava que pudesse contrariar estes dados que nos são transmitidos pelo próprio Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, porque isso, o podermos encontrar alguma consequência na lei, descansar-nos-ia. Mas, como os dados que temos são estes, é com esta realidade que trabalhamos.

O n.º 5 do artigo 8.º, Sr. Ministro, também acaba por dar conta de alguma possibilidade de redundância das determinações desta lei, ao estabelecer que aqueles mecanismos de priorização de alguns tipos de crime deixam de poder funcionar quando houver o perigo de prescrição dos outros crimes que não são prioritários. Ou seja, acaba por dizer que os crimes que não eram prioritários passam a ser prioritários quando houver o risco da sua prescrição. Portanto, em todas essas situações, devemos deixar de ter em conta aquela lista de prioridades, o que, mais uma vez, traduz uma possibilidade de inconsequência da lei.

Por outro lado, Sr. Ministro, gostava de referir, mais uma vez, uma questão que já coloquei no meu pedido de esclarecimento, pois as informações que o Sr. Ministro aqui nos deu permitem-nos agora fazer uma nova afirmação, que é esta: a responsabilidade que o Sr. Ministro assume ao identificar aquele conjunto de exemplos de dotação de meios do sistema judicial que aqui nos trouxe, permitir-nos-á avaliar, por um lado, a adequação dessas medidas do Governo às necessidades impostas pelo cumprimento desta lei e, por outro, se o Governo dota ou não o sistema judicial dos meios necessários para o cumprimento desta lei. É que, no caso de não haver essa correcta afectação dos meios, a inconsequência desta lei, que é o que está em causa, ficará a dever-se, agora sim, a medidas de mera gestão.

O segundo ponto da encruzilhada de que falei há pouco tem a ver com a necessidade de salvaguardar a autonomia do Ministério Público. Podemos dizer que esta lei talvez não obrigue o Ministério Público a trilhar um determinado caminho, mas diz-lhe que só há aquele caminho a percorrer.

E esta ideia reflecte-se, antes de mais, no facto de, até agora, ser o Ministério Público quem definia na prática, em função dos casos concretos e da dinâmica da realidade, quais eram as prioridades da sua actuação, mas, a partir de agora, deixar de sê-lo. A partir de agora, passamos a ter um elenco estático, definido legislativamente e que só ao legislador cabe alterar, retirando ao Ministério Público a possibilidade que, até agora, tinha de fazê-lo.

Por outro lado, esta proposta de lei pode traduzir uma interpretação política rígida, abstracta e dirigista, que impedirá os magistrados do Ministério Público de terem em conta a realidade e a singularidade de cada caso concreto, como, aliás, está legislativamente plasmado, podendo pôr em causa os princípios da objectividade e da imparcialidade na actuação do Ministério Público.

Dou apenas três exemplos: o do artigo 11.º, que parece até não ter em conta que as medidas aí previstas têm já um enquadramento nas normas processuais penais; o do n.º 1 do artigo 14.º, onde se prevê a escolha da medida de coação com a sua sujeição a critérios diferentes dos previstos no Código de Processo Penal, esquecendo inclusivamente que a medida de coação de prisão preventiva não se aplica só nas situações em que pode haver perigo de continuação da actividade criminosa; e o do artigo 16.º - o pior de todos, Sr. Ministro! -, onde se impede a avaliação concreta da justeza de uma determinada decisão judicial e se impõe o recurso aos magistrados do Ministério Público.

Concluo, Sr. Presidente, com a seguinte consideração: entendemos que esta proposta de lei pode transformar o Procurador-Geral da República num veículo de transmissão entre o poder político e os magistrados do Ministério Público, ao ter em conta inclusivamente a introdução da referência às directivas, ordens e instruções, que são já hoje consideradas um instrumento de trabalho e que a lei passa agora a impor ao Procurador-Geral da República, significando isto um recuo relativamente àquela que era a concepção plasmada na proposta inicial apresentada pelo Ministério da Justiça.

Termino - agora sim, Sr. Presidente - com esta ideia: entendemos que esta lei pode ser inconsequente em algumas das suas determinações e, ao mesmo tempo, pode ferir a autonomia do Ministério Público, sendo certo que é o Ministério Público o principal destinatário desta proposta de lei, como o Sr. Ministro já afirmou, e que poderá ser ele o principal responsabilizado pela aplicação desta lei.

Se assim for, Sr. Ministro, confirmam-se as nossas piores expectativas: é que todo este edifício jurídico criado em torno da política criminal terá como objectivo a fragilização da imagem do Ministério Público e a sua subordinação ao poder político, o que é manifestamente contrário ao princípio da independência dos poderes e aos comandos constitucionais actualmente previstos.

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