Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

Petição solicitando a alteração do n.º 1 do artigo 151.º da Constituição da República Portuguesa, de forma a permitir a candidatura de grupos de cidadãos independentes à Assembleia da República

(petição n.º 240/XII/2.ª)

Sr.ª Presidente,
Srs. Deputados:
Queríamos, em primeiro lugar, não pactuar com uma formulação que está na moda, que é a de transformar grupos de cidadãos eleitores em cidadãos independentes, como, aliás, todos vimos acontecer nas mais recentes eleições autárquicas. E fazemo-lo, desde logo, por uma razão óbvia: os cidadãos que se candidataram aos órgãos das autarquias locais por listas de grupos de cidadãos não tiveram de apresentar nenhum certificado ou comprovativo de independência e, portanto, obviamente que esses grupos de cidadãos integraram cidadãos com cartões de partidos e cidadãos sem cartões de partidos.
São, portanto, grupos de cidadãos. A designação de independentes é aqui muito mistificatória e entendemos que não deve ser utilizada porque não corresponde à realidade e porque a designação legal é a de grupos de cidadãos eleitores. Assim, também relativamente à questão que se coloca, que é a de saber se constitucionalmente deve haver a possibilidade de candidaturas de grupos de cidadãos eleitores, não estamos a falar de cidadãos independentes. Estamos a falar de cidadãos que podem ser independentes e de cidadãos que podem não o ser.
A questão que se coloca é a seguinte: achamos que deve haver um reforço significativo dos mecanismos de democracia participativa em todos níveis, também achamos que a democracia não se esgota nos partidos. Seria mau que isso acontecesse, ainda bem que assim não é e era bom que os mecanismos de democracia participativa pudessem ser estimulados e incentivados. Infelizmente, os mecanismos existentes, designadamente quanto à iniciativa legislativa de cidadãos, estão muito longe de ser satisfatórios, deviam sê-lo mais.
Também concordamos com o direito que está consagrado de apresentação de candidaturas por grupos de cidadãos às autarquias locais, às freguesias e aos municípios; está muito bem. Portanto, e independentemente de haver um juízo favorável ou desfavorável quanto a esta ou aquela candidatura, em termos gerais, a possibilidade que a Constituição abriu e a lei consagrou é uma experiência democrática contra a qual nada temos. Pelo contrário, achamos que não deve haver tratamentos discriminatórios entre as candidaturas de partidos e as candidaturas de grupos de cidadãos.
Não alinhamos, porém, num anátema contra os partidos políticos. Consideramos que não deve haver nenhuma estigmatização dos cidadãos que fazem parte de partidos políticos e que se integram em candidaturas apresentadas por partidos políticos, seja a que nível for — seja a nível de freguesia, de município ou da Assembleia da República.
No que respeita à Assembleia da República, a situação é diferente. Os partidos políticos não estão consagrados na Constituição apenas em sede de candidatura para a Assembleia da República no artigo 151.º, que aqui se invoca, mas desde logo nos princípios fundamentais da Constituição. O artigo 10.º estabelece que «Os partidos políticos concorrem para a organização e para a expressão da vontade popular, no respeito pelos princípios da independência nacional, da unidade do Estado e da democracia política.» Daí que, em nome da unidade do Estado, seja constitucionalmente proibida a criação de partidos de âmbito meramente regional.
Ora, o que referi também tem algumas implicações quando se propõe que um grupo de cidadãos possa candidatar-se a um determinado círculo eleitoral, porque os partidos não podem ser de âmbito regional e também porque a Assembleia da República é a representação nacional, não é uma soma de representações locais.
Os Deputados representam todo o País, não apenas os círculos eleitorais pelos quais são eleitos. E, portanto, um cidadão que se candidata à Assembleia da República propõe-se representar todo o País, representar um projeto político e um projeto de governo para o País. É isso que se pede. Ou seja, o que se pede a uma candidatura à Assembleia da República é que tenha um mínimo de representatividade, aferida através da exigência de 7500 assinaturas de cidadãos para constituir um partido político, que tenha um projeto nacional para o País e que se proponha participar na governação do País.
Ora bem, se é isto que se exige, aquilo que se exige a uma candidatura à Assembleia da República é que exista efetivamente um partido político, chame-se partido, chame-se movimento, chame-se o que se quiser. Mas a exigência mínima é, de facto, a constituição de um partido político, nos termos em que a Constituição e a lei preveem a criação de partidos políticos, e a sua sujeição a mecanismos de fiscalização democrática da sua atividade.
Assim, consideramos que não é adequado do ponto de vista democrático que alguém queira cometer algo que é uma verdadeira fraude perante os cidadãos — querer ser partido mas não lhe querer vestir a pele. Ou seja, reunir todos os requisitos para ser partido, mas não querer ser partido porque existe um discurso antipartidos na opinião pública e é mau os candidatos apresentarem-se como sendo de partidos. Então, apresentam-se como sendo candidatos de outra coisa qualquer que, por acaso, reúne todos os requisitos aplicáveis aos partidos políticos, e não deve ser de outra forma.
Assim sendo, chamamos a atenção para os perigos que comporta para a democracia a insistência num discurso antipartidos, pois foi assim que surgiram muitas experiências autoritárias no século XX na Europa e foi assim que, durante 48 anos, tivemos uma ditadura que se afirmava antipartidos e que recusava a designação de partido para a União Nacional, que era o partido único. Esse partido dizia nos seus estatutos que não era um partido porque era contra os partidos.
Portanto, concordamos que se dê toda a margem de liberdade para a democracia participativa, para a afirmação dos cidadãos na vida política, mas cuidado com um discurso antipartidos que tem atrás de si perigos de derivas antidemocráticas com as quais não podemos pactuar.
Os partidos devem ser defendidos ou criticados por aquilo que fazem, por aquilo que são, por aquilo que praticam, não pelo facto de serem partidos políticos, porque os partidos políticos em si mesmo são fundamentais em qualquer regime democrático e em qualquer Estado de direito.

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