No dia 2 de dezembro de 2017, entram em vigor modificações várias à Regulamentação da Segurança Ferroviária que irão ter um profundo impacto na circulação ferroviária no nosso país. Entre essas modificações está prevista uma alteração ao Regulamento Geral de Segurança/RGS I, no sentido de facilitar a circulação de comboios com a tripulação reduzida a apenas um único trabalhador.
A implementação dessas alterações esteve prevista para final de 2016, mas perante as várias questões suscitadas, os sucessivos alertas e denúncias de várias estruturas representativas dos trabalhadores – desde logo as ligadas à fiabilidade e à segurança da operação –, o Governo concluiu não existirem condições para que tais alterações tivessem lugar, tendo adiado essa decisão pelo período de um ano.
O balanço que hoje se faz da evolução da situação de então para cá, é de que este período não foi aproveitado para responder às justas preocupações das estruturas representativas dos trabalhadores. Ou seja, não foram tomadas medidas ao nível da infraestrutura ferroviária nem das comunicações que permitissem adoptar tais decisões, nem tão pouco se realizou a análise de risco que então se exigiu.
De facto, o que se passou no fundamental foi deixar correr o tempo, adoptando uma ou outra medida avulsa visando minimizar os problemas e objecções então levantados.
A mudança de paradigma que se pretende operar na segurança ferroviária com estas anunciadas alterações é radical. O que está em causa com esta intenção afecta profundamente a segurança e fiabilidade da circulação ferroviária. Hoje aplica-se, como princípio geral para todos os comboios, a regra de que a circulação deve ser feita, no mínimo, com dois trabalhadores, um dos quais o maquinista. Existem excepções pontuais, em situações muito especiais e devidamente regulamentadas e reportadas (ainda que pouco fiscalizadas), em que o comboio circula com um único trabalhador, neste caso, o maquinista.
Caso se adopte esta alteração, transformar-se-á a excepção em regra: a maioria dos comboios poderá circular apenas com um trabalhador, o maquinista, em regime de agente único, e só excepcionalmente se determina a presença de outro elemento.
Estas alterações só na aparência são técnicas. De facto, estamos perante um processo de pressão a vários níveis, para reduzir o número de trabalhadores na operação ferroviária, tendo como objectivo aumentar a exploração do trabalho, aumentar os lucros dos operadores que exploram (ou pretendem vir a explorar) o sector – mesmo que para atingir esses objectivos se coloque em causa a fiabilidade da operação, sobrepondo-se a redução de custos à segurança ferroviária.
Face à regra que determina, no mínimo, dois trabalhadores em cada comboio, as excepções que hoje existem levantam, só por si, enormes preocupações. Principalmente, sublinha-se o facto de tais excepções não serem fiscalizadas por nenhuma entidade. Isso mesmo foi reconhecido pelo IMT perante o questionamento que as Organizações Representativas dos Trabalhadores do sector lhe colocaram sobre essa situação, tendo ainda o IMT admitido que não dispõe de condições ou meios humanos para tal. Em resumo, o que hoje é uma excepção não fiscalizada, aplicada a poucos casos – o agente único – passaria a ser um princípio para todos os comboios.
Assim, todo este processo levanta uma serie de questões, nomeadamente – porquê? Porquê aumentar o risco? Porque é evidente que o risco aumenta. Aumenta para os utentes, para as populações, para os trabalhadores, para o material e para a infraestrutura. Aliás, essa evidência é indissociável do facto de não ter sido realizada uma análise de risco. Tem o país ou o sector alguma necessidade de aumentar o risco da operação ferroviária ao reduzir o número de trabalhadores num comboio até ao mínimo? A resposta é claramente “não”: o que o país precisa é que as estações de caminho de ferro e os terminais de carga sejam guarnecidos com trabalhadores, que as empresas vejam os seus quadros de pessoal recompostos para que possam estar nas melhores condições para dar o seu contributo na criação de riqueza e na melhoria dos serviços públicos e, neste caso, contribuindo ainda para a salvaguarda da fiabilidade e segurança do transporte ferroviário.
Pergunta-se: existe sequer a possibilidade de implementar um sistema de agente único, ao qual o País não esta obrigado, à generalidade das situações, mesmo à luz das condicionantes presentes na «actualização» do RGS que pretendem implementar? Qualquer análise minimamente séria rapidamente chega à conclusão de que não existem essas condições. Desde logo porque estão desmantelados todos os sistemas de fiscalização, o que sendo grave em si mesmo, torna inúteis grande parte das escassas medidas cautelares apontadas para permitir o agente único no comboio.
Que implicações terá tal medida para as pessoas com mobilidade reduzida – as quais, como é conhecido, já hoje se confrontam com enormes dificuldades para lhes ser garantido o direito à mobilidade, nomeadamente pela existência de barreiras físicas, pelo desguarnecimento das estações, pela ausência de equipamentos que lhe permitam ter acesso às plataformas ou pelas avarias que se verificam em alguns dos existentes por muito tempo?
Uma outra questão que se prende com a segurança da circulação ferroviária é a existência de planos de segurança nas empresas, devidamente actualizados para a realidade em presença, assim como a existência de Planos de Protecção Civil que contenham medidas de prevenção, contingência e socorro perante ocorrências que se verifiquem nos concelhos atravessados pelo caminho-de-ferro. Perante esta alteração, justifica-se questionar: que medidas foram tomadas no sentido de verificar a sua existência, e também que medidas foram tomadas visando a sua adequação ao novo paradigma de circulação ferroviária e aos riscos que ela comporta?
Por último, mas não menos relevante, importa ter presente que ao longo de todo o processo de «actualização» do RGS, as entidades reguladoras fizeram questão de não ouvir nem atender às vastas iniciativas desenvolvidas pelas ORT, preferindo sempre encontrar as opiniões técnicas dispostas a validar os objectivos das entidades patronais do sector, que querem e se preparam para colocar a maioria dos comboios a circular só com um trabalhador a bordo pela única e exclusiva razão de que assim ganham mais dinheiro no processo.
Considerando estas preocupações, a questão que assim se coloca é de que forma o Governo e os operadores ferroviários vão assegurar os níveis de segurança ferroviária e cumprir as suas obrigações, com comboios a circularem com um único agente a bordo.
A Assembleia da República, perante esta situação e os alertas que lhe são feitos sobre o substancial aumento dos riscos de situações propiciadoras de acidentes, não pode ficar indiferente, nem pode estar de acordo com a intenção de alterar o paradigma em que até hoje tem assente a circulação ferroviária. Está em causa a diminuição da segurança da circulação – e consequentemente, das pessoas e bens transportados, bem como das populações atravessadas pela rede ferroviária nacional.
Assim, nos termos da alínea b) do artigo 156.º da Constituição e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento, os Deputados do Grupo Parlamentar do PCP propõem que a Assembleia da República adopte a seguinte Resolução.
A Assembleia da República, nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição, resolve:
1. Manifestar a sua profunda discordância e preocupação face ao agravamento do risco para a circulação ferroviária resultante da circulação de comboios com um só trabalhador.
2. Recomendar ao Governo, ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes e à Autoridade da Mobilidade e dos Transportes que suspendam o processo em curso, tenham em conta as opiniões dos profissionais do sector e reforcem os mecanismos regulamentares no sentido de assegurar a circulação ferroviária com um mínimo de dois trabalhadores com funções de segurança em cada comboio.
3. Recomendar ao Governo a adopção de medidas urgentes no sentido de reconstituir a capacidade de fiscalização da circulação e segurança ferroviária; bem como a promoção de medidas que levem ao rápido guarnecimento com trabalhadores das estações ferroviárias e terminais de carga e de recomposição dos efectivos das empresas com os trabalhadores em falta.
Assembleia da República, 8 de novembro de 2018