Durante anos, o chamado défice tarifário tem sido apresentado pelos sucessivos governos e pelas empresas produtoras de eletricidade como uma espécie de inevitabilidade, associada ao crescimento e modernização, designadamente em termos tecnológicos, do sistema eletroprodutor nacional. Défice que, por opção política, é apresentado como uma inevitabilidade e tem sido responsável pelo agravamento das tarifas aplicadas à generalidade dos consumidores, famílias e micro, pequenas e médias empresas.
Na génese do défice tarifário, estão duas razões: i) a privatização do sistema electroprodutor, seja no que respeita à privatização da EDP, seja no que respeita à entrada de grupos privados, particularmente na produção eólica; ii) decorrente da anterior, o desmantelamento orgânico e metodológico do planeamento energético estatal em Portugal, com a destruição do Plano Energético Nacional e da equipa que o operacionalizava.
Embora, já antes do início do processo de privatização, a EDP tivesse que responder simultaneamente a critérios de viabilidade económico-financeiros e às necessidades de desenvolvimento do País – de que são exemplos a eletrificação de todo o território nacional após o 25 de Abril, os planos de aproveitamento dos recursos energéticos endógenos, como os hidroelétricos, a prática de tarifas ajustadas ao crescimento económico e ao desenvolvimento social, refletindo-se nos encargos das MPME e das famílias –, o Governo de Cavaco Silva, para tornar a sua venda mais aliciante, criou os Contratos de Aquisição de Energia (CAE), contratos leoninos em favor da EDP, entretanto privatizada – e depois, os seus sucessores, os Contratos de Manutenção do Equilíbrio Contratual (CMEC), que apresentam características idênticas.
Por outro lado, o Governo do PS aprovou novos CAE e CMEC com o argumento de assegurar condições de atratividade financeira ao investimento dos grupos económicos e financeiros interessados na produção eólica, por se tratar de uma tecnologia supostamente ainda por amadurecer.
As circunstâncias financeiras criadas pelos CAE e CMEC e pelas tarifas da Produção em Regime Especial foram sendo repercutidas sobre o valor das tarifas pagas pelos consumidores, até ao momento em que, por razões de pressão política da opinião pública, tais valores não eram mais suportáveis, pelo que o diferencial começou a ser empurrado “para a frente”, gerando o dito défice tarifário.
A ausência de um Plano Energético Nacional, dinamicamente elaborado e gerido, e concatenando harmoniosamente, em termos de planeamento e controlo, o consumo e a produção de eletricidade, tendo como objetivo o desenvolvimento soberano do país, criou as condições necessárias para a inversão das prioridades. Instalou-se a completa descoordenação dos investimentos elétricos estratégicos que, priorizando a remuneração acionista, se transformaram em grandes negócios financeiros, muitas das vezes contraditórios entre si no plano operacional, e responsáveis pelas incoerências e desgaste do sistema e pela criação de sobrecustos.
Todos estes sobrecustos têm sido sempre pagos pelos consumidores (famílias e micro, pequenas e médias empresas) ou avalizados pelo Estado, que se assume como garante do pagamento do défice tarifário aos operadores, pois a dívida resultante do défice tarifário está constituída em fundo financeiro titularizado.
O exemplo da exportação de eletricidade para Espanha a preço zero, cujos custos de produção são suportados pelos consumidores portugueses, é uma espécie de clímax de toda esta anarquia e destes negócios.
O escândalo das chamadas rendas excessivas e do défice tarifário atingiu tal dimensão que o próprio Memorando da Troica afirma a necessidade de o alterar. No entanto, como sempre, a opção passa por assegurar que a dívida entretanto constituída e o défice que entretanto for gerado serão totalmente pagos pelos consumidores, nomeadamente por aqueles que apresentam níveis de consumo e de dependência económica insuficientes para «negociar» tarifas reduzidas.
O atual Governo não difere das opções e práticas dos que lhe antecederam. Apesar do discurso político durante muito tempo nada fez para eliminar o défice. Aliás, assim que anunciou intervir no sentido de o limitar ou iniciar um percurso que conduzisse à sua eliminação, o então Secretário de Estado da Energia foi substituído. Entretanto, quando se tornou impossível adiar por mais tempo, interveio sobre as ditas rendas excessivas sem nada fazer sobre as circunstâncias que as originam (veja-se o caso da prorrogação de algumas condições dos CMEC o ano passado, ou do Decreto-Lei n.º 35/2013, que prorroga parte das condições leoninas de contratos de parques eólicos, que estão a chegar, ou já chegaram, ao seu término).
A manutenção do nível e os sucessivos aumentos das tarifas, os lucros imensos das empresas produtoras e o valor acumulado do défice tarifário são ameaças brutais, a juntar a tantas outras que pendem sobre a competitividade da nossa economia e sobre as condições de vida e o quotidiano das populações, pelo que urge romper completamente com as políticas que geraram a atual situação.
Os diferimentos anuais, com que os governos vão “empurrando” o défice para o futuro, não resolvem nada pois não o eliminam. Bem pelo contrário, fazem-no crescer devido aos juros de mora entretanto criados.
Integrando há muito as propostas de política energética do PCP, a renacionalização das principais empresas do setor, dado o seu caráter estratégico para o desenvolvimento e a soberania nacionais, bem como a recuperação, configurada às circunstâncias de hoje, de um efetivo Plano Energético Nacional, no quadro mais geral de um planeamento estratégico da economia, conforme preceito constitucional, são condições básicas para a resolução definitiva de questões como a do défice tarifário e a ausência de coerência e sustentabilidade económica e social que impera no sector.
No entanto, mesmo no atual quadro político, urge avançar com algumas medidas. Nesse sentido, o PCP propõe, desde já, uma alteração profunda das regras que estiveram e estão na origem do défice tarifário, designadamente o enquadramento regulatório da Produção em Regime Ordinário (CAE e CMEC) e da Produção em Regime Especial (tarifas).
Nestes termos, e tendo em consideração o acima exposto, ao abrigo da alínea b) do Artigo 156.º da Constituição e da alínea b) do número 1 do artigo 4.º do Regimento da Assembleia da República, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP propõem que a Assembleia da República adote a seguinte
Projeto de Resolução
A Assembleia da República, nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição, resolve recomendar ao Governo as seguintes medidas:
1. Com vista a estancar o incremento da designada dívida, resultante de sucessivos défices tarifários, deverão ser, completa e urgentemente, revistas as condições e enquadramentos remuneratórios da produção de eletricidade, seja em regime ordinário (CAE e CMEC), seja em regime especial (tarifas remuneratórias), que estão na origem do aparecimento e crescimento do défice tarifário.
2. A dívida remanescente, após aplicação do número anterior, deverá ser absorvida pelas empresas produtoras e ou comercializadoras de eletricidade que, ao longo dos anos, beneficiaram com o enquadramento legal remuneratório.
3. As novas condições previstas na presente Resolução deverão conciliar a viabilidade económico-financeira de cada uma das empresas com a competitividade da economia, particularmente das MPME, e a capacidade financeira e as condições de vida das populações.
4. A absorção da dívida remanescente pelas diferentes empresas produtoras e ou comercializadoras, qualquer que seja o regime de produção, deverá ter por base planos de amortização ajustados às condições produtivas e económico-financeiras concretas de cada empresa, proporcionalmente ao défice gerado no seu seio.
Assembleia da República, em 21 de Março de 2014