Requerimento

Pedido de Fiscalização da Lei nº 72/2014 - Lei dos Baldios

Pedido de Fiscalização da Lei nº 72/2014 - Lei dos Baldios

Os Deputados da Assembleia da República abaixo-assinados, em número superior a um décimo dos Deputados em efetividade de funções, ao abrigo do disposto da alínea a), do n.º 1 e na alínea f), do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa e nos artigo 51.º e 62.º, n.º 2 da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (com as alterações introduzidas pela Lei n.º 143/85, de 26 de novembro, pela Lei n.º 85/89, de 7 de setembro, pela Lei n.º 88/95, de 1 de setembro, e pela lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro), requerem ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas contidas na Lei n.º 72/2014, de 2 de setembro, que procede à segunda alteração à Lei n.º 68/93, de 4 se setembro, que estabelece a Lei dos Baldios, alterada pela Lei n.º 89/97, de 30 de julho, adiante referenciadas.

Introdução

A redação dada pela Lei n.º 72/2014, de 2 de setembro aos n.ºs 3 e 4 do artigo 1.º, do artigo 10.º, da alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, da alínea b) do artigo 21.º e do artigo 33.º da Lei n.º 68/93, de 4 de setembro que estabelece a Lei dos Baldios, no entender dos requerentes, viola princípios e normas constitucionais, pelo que, requerem a fiscalização abstrata sucessiva da sua constitucionalidade, nos termos e com os fundamentos seguintes:

Da inconstitucionalidade do n.º 3 e 4 do artigo 1.º e consequentemente da revogação da alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, da alínea b) do artigo 21.º e do artigo 33.º

1. Os baldios são uma realidade centenária, já sendo descritos nas Ordenação Manuelinas, no século XVI, como “Os matos maninhos e as matas e bravios que nunca hajam sido lavrados e aproveitados ou de que disso não haja, a não ser que haja grande prejuízo para a generalidade dos moradores do lugar nos pastos dos gados e criações, e no logradouro para a lenha e madeira para suas casas e lavoura” (Ordenações Manuelinas, século XVI, livro 4, título 67).

2. São diversas as referências escritas que demonstram a importância dos baldios para a sobrevivência das comunidades locais ao longo dos tempos.

3. Durante a ditadura (1926-1974), foi autorizada a venda de parcelas dos baldios pelas autarquias, com vista à obtenção de verbas para a realização de obras, retirando-os às respetivas populações que, privadas destes, perdiam pastos para o gado, estrumes para as terras, lenhas para se aquecerem e meios de sustento, sendo muitos milhares de populares empurrados para a migração interna ou externa.

4. Com a Revolução de 25 de Abril de 1974, foi devolvido aos povos serranos do Norte e Centro do país o direito histórico de uso, fruição e administração dos seus baldios. Assim, o Decreto-lei n.º 39/76, e o Decreto-lei n.º 40/76, ambos de 19 de janeiro,“(…) operaram a restituição dos terrenos baldios às comunidades que deles foram desapossados pelo Estado, correspondendo-se assim a uma reivindicação antiga e constante dos povos, ocasionando-se por essa forma três mudanças jurídicas essenciais: (1) pôs-se fim à administração dos baldios pelas autarquias locais, transferindo-a para as comunidades de compartes; (2) determinou-se a restituição dos baldios de que o Estado se apossara para a florestação; (3) estipulou-se a recuperação dos baldios indevidamente apropriados por particulares. (…). “ (Ver Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 240/90).

5. A lei n.º 68/93, de 4 de setembro, denominada “Lei dos Baldios” (que revogou os decretos-lei n.º 39/76 e n.º 40/76, de 19 de janeiro) passou a definir baldios como os terrenos possuídos e geridos por comunidades locais, o que se mantem aliás na redação dada pela lei n.º 72/2014, de 2 de setembro.

6. A definição de baldios encontra-se profundamente ligada à definição de comparte, ou seja, quem dentro de uma determinada comunidade local tem direito de uso e fruição do baldio. Este forma-se através dos usos e costumes das comunidades locais, para pastar os gados, recolher a lenha, colocar colmeias, ou seja, uma infindável gama de tarefas que complementam ou garantem mesmo o rendimento desses compartes, isto é, desses elementos da comunidade local.

7. O decreto-lei n.º 39/76, de 19 de janeiro, define que são compartes “os moradores que exerçam a sua atividade no local e que, segundo os usos e costumes reconhecidos pela comunidade, tenham direito à sua fruição” (artigo 4.º). No mesmo sentido, o artigo 1.º da lei n.º 68/93, de 4 de setembro, considera comparte o morador de uma ou mais freguesia ou parte dela que, segundo os usos e costumes, tem direito ao uso e fruição do baldio.

8. Deste modo, na vigência da lei n.º 68/93, de 4 de setembro, eram os costumes e usos que definiam, dentro das comunidades locais e, segundo a especificidade de cada uma delas, quem tinha direito ao uso e fruição do baldio, verificando-se que as condições para se ser comparte de um baldio variam e sempre variaram de região para região de acordo com os usos e costumes de cada uma.

9. A lei n.º 72/2014, de 2 de setembro, altera profundamente a definição de compartes considerando-os “todos os cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais onde se situam os respetivos terrenos baldios ou que aí desenvolvem uma atividade agroflorestal ou silvo pastoril”, tal como “os menores emancipados que sejam residentes nas comunidades locais onde se situam os respetivos terrenos baldios”. Assim, a par do alargamento do âmbito subjetivo de baldio, com a extensão do direito ao uso e fruição dos baldios a todos os eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais, elimina-se o costume e o uso como forma de delimitação desse âmbito.

10. Segundo a lei n.º 13/99, de 22 de março, na redação dada pela lei n.º 47/2008, de 27 de agosto, que estabelece o novo regime jurídico do recenseamento eleitoral, considera-se que a circunscrição eleitoral é a correspondente à morada que se obtém a partir do cartão de cidadão, sendo esta, segundo o previsto no artigo 1.º da Lei n.º 7/2007, de 5 de fevereiro (que cria o cartão de cidadão e rege a sua emissão e utilização), o “endereço postal físico, livremente indicado pelo cidadão, correspondente ao local de residência onde pode ser regularmente contactado”. Presume-se assim, que seja esta a definição de residência a que se refere a lei n.º 63/98, de 4 de setembro, na redação da Lei n.º 72/2014, de 2 de setembro, e por conclusão, a definição de comparte, já que, sublinhe-se, a lei considera agora que será comparte todo o cidadão eleitor, inscrito e residente na comunidade local.

11. É importante também referir que com a aprovação da lei n.º 11-A/2013, de 28 de janeiro, que procede à reorganização administrativa do território das freguesias, ou seja, que procedeu à união de diversas freguesias, com a extinção de muitas, os limites territoriais dos baldios alteraram-se. O mesmo acontece com o número de eleitores que agora existem em cada união de freguesias, sendo que, a título de exemplo, onde antes existiam 100 eleitores passam agora a 250 e, segundo a nova redação da Lei dos Baldios, todos estes eleitores são agora possuidores do estatuto de compartes e assim com direito a fruir do baldios, mesmo aqueles que nem conhecem ou não tem interesse em conhecer ou explorar o baldio.

12. A lei n.º 72/2014, de 2 de setembro, ao retirar os costumes e os usos como formadores do direito de uso e fruição dos baldios, e assim delimitar o estatuto de comparte, faz com que muitos cidadãos que anteriormente não seriam considerados compartes agora o sejam unicamente por serem eleitores dessa freguesia.

13. Importa referir que no artigo 33.º da lei n.º 68/93, de 4 de setembro, previa-se o recenseamento dos compartes, ou seja, a identificação dos moradores dentro da comunidade local com direito sobre o baldio e assim considerados compartes. Em caso de esse recenseamento não existir, eram várias as iniciativas progressivamente diligenciadas, sendo em último caso utilizado o recenseamento eleitoral dos residentes da comunidade local para a definição de quem era comparte, mas sempre com as adaptações e correções aprovadas em Assembleia de Compartes, para que, deste modo não usufruísse deste estatuto quem não teria direito a ele. Desta forma, verifica-se que o legislador considerou que não eram todos os eleitores, inscritos e residentes que deveriam ser considerados compartes, mas apenas aqueles a que segundo os usos e costumes a isso tinham direito. Todavia, este recenseamento, acaba por ser revogado, tal como todas as normas que a ele façam alusão [alínea c) do artigo 15.º e alínea b) do artigo 21.º] com a aprovação da lei n.º 72/2014, de 2 de setembro.

14. E não se compreende a razão de se atribuir o estatuto de comparte aos menores emancipados. Se um menor, segundo os usos e costumes, não teria o estatuto de comparte, não se entende como, só pelo facto de ser emancipado, lhe seja dado esse estatuto de forma automática e, no entender dos requerentes, arbitrária, dado que nem no preâmbulo do projeto de lei n.º 528/XII/3.ª (que deu origem à Lei sub judice) se aclaram as razões do alargamento do âmbito subjetivo do baldio ou a integração do menor emancipado no mesmo.

15. O artigo 82.º da Constituição define os três sectores de propriedade dos meios de produção: o sector público, constituído pelos meios de produção pertencentes ao Estado e outras entidades públicas; o sector privado, constituído pelos meios de produção cuja propriedade ou gestão pertence a pessoas singulares ou coletivas; o sector cooperativo e social que compreende os meios de produção possuídos e geridos por cooperativas, por comunidades locais, pelos meios de produção objeto de exploração coletiva por trabalhadores e pelos meios de produção possuídos e geridos por pessoas coletivas.

16. Os baldios são considerados bens comunitários. Nos termos referidos no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 325/89, é ”indiscutível não poderem levantar-se dúvidas sérias acerca da necessária referência dos baldios à categoria constitucional dos bens comunitários, tendo sido essencialmente em vista dos baldios que se formaram os preceitos constitucionais relativos aos bens comunitários. Isso decorre naturalmente do contexto histórico da formação da parte económica da Constituição a esse respeito, da evidente ligação entre o conceito constitucional de «bens comunitários» e a definição dos baldios constante do artigo 1.º do Decreto-lei n.º 39/76 («terrenos comunitariamente usados e fruídos»), bem como com o conceito de «coisas comuns» do Código Civil de 1987, cuja componente principal eram justamente os baldios.”

17. Também segundo o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 96/2012, “pode afirmar-se que os baldios constituem o núcleo essencial e imprescindível dos «meios de produção comunitários, possuídos e geridos por comunidades locais» integrados no sector de propriedade cooperativo e social, pertencendo a essas comunidades, comunidades de «vizinhos» ou «compartes», que não se confundem com comunidades territoriais autárquicas, não apenas a posse e gestão, mas também a própria titularidade dominial desses meios de produção.” Desta forma, “(…) a revisão de 1989 (…) trouxe para estes bens um acréscimo da sua autonomia enquanto bens integrados no sector cooperativo e social, autonomia essa que há-de traduzir-se num reforço da dominialidade comunitária ou cívica dos baldios. (…) Estes meios de produção comunitários (nos quais se incluem os baldios) são imputáveis, quanto à titularidade-dominial, a uma coletividade-comunidade que não se confunde com as coletividades territoriais autárquicas. Esta titularidade dominial é dos “povos”, “utentes”, “vizinhos” ou “compartes” e não já das freguesias ou grupos de freguesias.”

18. A comunidade local é o universo dos compartes. Não se confunde comunidades locais com comunidades territoriais autárquicas, assim como também não se pode considerar equivalente compartes e todos os cidadãos de eleitores, inscritos e residentes de determinada freguesia, pois esta equivalência pode não corresponder à realidade concreta. A norma que refere quem pode aceder ou não ao estatuto de comparte não pode ser limitada a quem é eleitor de uma determinada freguesia, mas deve ser integrada na ordem social, segundo o que na realidade concreta se considera comparte e quem segundo os costumes e usos é considerado comparte para um determinado baldio.

19. Os baldios são bens comunitários de que os compartes de um ou mais povoados podem tirar proveito de acordo com a natureza do terreno e respeitando os usos. Assim quando se integram todos eleitores de uma determinada freguesia no estatuto de comparte, esvazia-se o papel de garantia constitucional desses bens comunitários. Caso o direito ao uso do baldio seja alargado a todos os eleitores, simplesmente pelo facto de estarem inscritos nessa freguesia, o bem deixa de ser comunitário (por não ser fruído por uma comunidade local restrita, segundo os costumes da comunidade), podendo ser considerado um bem próprio de determinada freguesia, unicamente por razões de ordenamento territorial, independentemente das necessidades das populações que consuetudinariamente exploram determinado terreno para sua sobrevivência.

20. Este alargamento poderá até resultar na usurpação das competências da assembleia de compartes pelos órgãos da freguesia. Ora, como refere o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 96/2012, “os baldios não são matéria que, à partida, deva ser considerada de poder local. Havendo Assembleia de Compartes é a esta que, como conjunto de compartes de um bem comunitário gerido e possuído pela comunidade, e não aos eleitores recenseados que cabe decidir as questões que aos baldios respeitem. E nem se diga que uma eventual coincidência do universo dos compartes como o dos eleitores recenseados (…) permitiria metamorfosear cidadão eleitores interessados na coisa pública em compartes de uma propriedade comunal. (…) os baldios pertencem à comunidade dos vizinhos e não aos fregueses.”

21. A alteração prevista no artigo 1.º da lei n.º 68/93, de 4 de setembro, na redação dada pela lei n.º 72/2014, de 2 de setembro, torna possível o conflito entre o que é da titularidade dos compartes e da titularidade da junta de freguesia pois, com o alargamento do estatuto de comparte a todos os eleitores de uma freguesia, não havendo assim a separação de quem é ou não legítimo comparte, a junta de freguesia ao ser representativa de todos os eleitores e consequentemente de todos os compartes, pode administrar o baldio como se tivesse a titularidade do mesmo, ou seja, como se de um bem privado da freguesia se tratasse.

22. Deste modo o alargamento do âmbito subjetivo dos baldios subverte o definido no artigo 82.º, número 4, alínea b) da Constituição ao permitir que bens comunitários sejam possuídos e geridos por entidades públicas como é a junta de freguesia, esvaziando assim o significado desta norma o que, segundo a jurisprudência vertida no Acórdão n.º 325/89, é inconstitucional pois não pode a lei transferir para os órgãos da freguesia a administração dos baldios.

23. Pelos motivos expostos, consideram os requerentes que os n.º 3 e 4 do artigo 1.º da lei n.º 68/93, de 4 de setembro, na redação dada pela lei de n.º 72/2014, de 2 de setembro são inconstitucionais por violação do disposto na alínea b), do n.º 4 do artigo 82.º da Constituição.

Da inconstitucionalidade do artigo 10.º

24. Como já foi referido, foi essencialmente em vista dos baldios que se formaram os preceitos constitucionais relativos aos bens comunitários, decorrendo do contexto histórico da formação da parte económica da Constituição.

25. Os decretos-lei n.º 39/76 e n.º 40/16, ambos de 19 de janeiro, concretizaram a devolução às respetivas comunidades dos baldios em que o Estado definira formas de aproveitamento e que se encontravam na sua posse, e daqueles que eram indevidamente apropriados por particulares.

26. Deste modo, o decreto-lei n.º 39/76, de 19 de janeiro, afirma no artigo 2.º que “os terrenos baldios encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objeto de apropriação privada por qualquer forma ou título, incluída a usucapião.” Já o decreto-lei n.º 40/76, de 19 de janeiro acrescenta que “os atos ou negócios jurídicos que tenham por objeto a apropriação de terrenos baldios ou parcelas de baldios por particulares, bem como as subsequentes transmissões que não forem nulas, são, nos termos do direito, anuláveis a todo o tempo”.

27. Seguidamente, a lei n.º 68/93, de 4 de setembro, revoga os dois decretos-lei supra mencionados, porém mantêm a regra da inalienabilidade dos baldios e a proibição da posse privada sobre eles e consequentemente a sua apropriação por usucapião por privados. No artigo 4.º prevê que “os atos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, tendo por objeto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais do direito, exceto nos casos expressamente previstos na presente lei”, ou seja, nos casos previstos no artigo 10.º prescrevendo no n.º 1 que “os baldios podem ser objeto, no todo ou em parte, de cessão de exploração, nomeadamente para efeitos de povoamento ou exploração florestal salvo nas partes do baldio com aptidão para aproveitamento agrícola.” Deste modo, a disposição do terreno baldio apenas era possível nos casos de utilidade pública, e sempre com a salvaguarda do interesse dos compartes e segundo os limites e fins a que o baldio se destina.

28. Todavia, na redação dada na lei n.º 72/2014, de 2 de setembro, subverte-se a regra de não disposição dos baldios, ao alterar o artigo 10.º de modo a permitir que os baldios possam “ser objeto, no todo ou em parte, de arrendamento ou cessão de exploração, com vista ao aproveitamento dos recursos dos respetivos espaços rurais (…).” Acrescentando no n.º 3 que a exploração deverá ser realizada de forma sustentada, sem prejuízo da utilização do baldio pelos compartes, de acordo com os usos e costumes locais.

29. Deste modo, comparando a nova redação com a prevista na lei n.º 63/98, de 4 de setembro, a disposição do baldio passa de uma medida transitória para uma livre disposição, não apenas por necessidade de povoamento ou exploração florestal, ou seja, por motivos de utilidade pública, mas por qualquer motivo. Assim, permitir-se-á que um bem comunitário, que foi desde tempos imemoráveis fruído e gerido por certas comunidades, sendo muitas vezes a forma de sustento de muitas famílias, possa agora ser arrendado e a ser utilizado para outros fins.

30. Como refere o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 235/91, “já o Código Civil de Seabra, de 1867, apesar de um contexto doutrinário avesso às formas coletivas de propriedade, mencionava os baldios à cabeça das «coisas comuns», categoria que o Código punha a par das «coisas públicas» e das «coisas particulares», sendo consideradas «coisas públicas» os bens do domínio público propriamente dito do Estado ou outra entidade pública, «coisas particulares», as do domínio privado de particulares ou de entidades públicas, e «coisas comuns», as coisas não individualmente apropriadas, das quais só é permitido tirar proveito [...]aos indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa ou fazem parte de certa corporação pública.”

31. Da lei n.º 68/93, de 4 de setembro, resulta que os baldios são terrenos possuídos e geridos por comunidades locais, não sendo deste modo propriedade, nem dos compartes, nem do respetivo universo de compartes. Não existe direito de propriedade, mas apenas de uso e fruição pelos compartes.

32. Refere o já citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 325/89, que a “Constituição procurou marcar também um energético retorno da titularidade dos bens comunitários aos povos, pondo termo ao processo histórico de privação que desde há muito, e por várias formas, conduziu ao esvaziamento dos tradicionais patrimónios coletivos”.

33. O facto de o baldio poder ser arrendado, em parte ou na totalidade, vai fazer com que o mesmo passe de uma gestão comunitária para a uma gestão particular, passando a ser utilizado de acordo com o interesse de quem o arrendou, sendo assim subvertida a própria finalidade do baldio. Ao ser gerido por uma entidade privada mesmo continuando a ser considerado propriedade comunitária, é agora integrado no sector privado, violando o previsto na alínea b) do n.º 4 do artigo 82.º da Constituição. O artigo 10.º da lei n.º 72/2014, de 2 de setembro é, assim, inconstitucional.

34. Sem prejuízo da inconstitucionalidade das normas referidas poder ser vista em separado, pode-se também refletir pela inconstitucionalidade das normas ora impugnadas, vendo-as conjugadas.

35. Desta maneira, com o alargamento do âmbito subjetivo do baldio a todos os eleitores de uma determinada freguesia, qualquer eleitor, agora comparte, poderá por motivos egoísticos (mormente económicos, como acontece, por exemplo, com a indústria da celulose) querer arrendar o terreno ou querer dar de arrendamento o terreno, em prejuízo dos demais compartes e do próprio fim do baldio.

36. Deste modo se compreende que a alteração dos artigos 1.º (n.º 3 e 4) e 10.º da Lei dos Baldios por via da lei n.º 72/2014, de 2 de setembro, é inconstitucional por violação da alínea b) do n.º 4 do artigo 82.º da Constituição, pois permite não só que o uso e fruição dos baldios seja extensivo a cidadãos que segundo os costumes e usos da região a tal não tenham direito, como subverte a ratio da norma constitucional, possibilitando a disposição a privados de um terreno que deverá servir uma comunidade e dentro do que historicamente e consuetudinariamente é considerado a fruição e uso do terreno baldio.

Em conclusão

Pelas razões expostas, os Deputados da Assembleia da República abaixo-assinados, em número superior a um décimo dos Deputados em efetividade de funções, ao abrigo do disposto da alínea a), do n.º 1 e na alínea f), do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 51.º e 62.º, n.º 2 da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (com as alterações introduzidas pela Lei n.º 143/85, de 26 de novembro, pela Lei n.º 85/89, de 7 de setembro, pela Lei n.º 88/95, de 1 de setembro, e pela lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro), requerem ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral das seguintes normas contidas na Lei n.º 72/2014, de 2 de setembro (Lei dos Baldios), que procede à segunda alteração à Lei n.º 68/93, de 4 se setembro, que estabelece a Lei dos Baldios, alterada pela Lei n.º 89/97, de 30 de julho: - Do n.º 3 e 4 do artigo 1.º, do artigo 10.º, da alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, da alínea b) do artigo 21.º e do artigo 33.º por violação do previsto na alínea b) do n.º 4 do artigo 82.º da Constituição.

Assembleia da República, 6 de março de 2015

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