«Pátria ou morte!»

Entrevista do "Avante!" à Embaixadora da República de Cuba em Portugal, Johanna Talblada de la Torre, por ocasião do 55.º aniversário da revolução cubana

No dia 1 de Janeiro assinalou-se o 55.º aniversário da revolução cubana, processo que a embaixadora de Cuba em Portugal sublinha ter culminado a longa luta popular pela verdadeira independência do país. Johana de la Torre também destaca que o progresso soberano e o socialismo, iniciados pela revolução, são os objectivos de um povo que superou as mais duras provas históricas e resiste a um longo e severo bloqueio imposto pelo mais poderoso inimigo da emancipação social: o imperialismo norte-americano –, motivando outros países e povos a seguirem a consigna de «Pátria ou morte!».

Quais são as principais conquistas alcançadas durante mais de meio século de revolução?
 
A revolução cubana de 1959 culminou um processo iniciado por José Martí, Máximo Gomez ou António Maceo. Em 1898, os EUA intervêm na luta de libertação nacional e ocupam Cuba. Os norte-americanos são obrigados a retirar-se em 1902, mas já detêm 70 por cento das melhores terras agrícolas e os mais importantes recursos naturais. O país deixou de ser uma colónia espanhola para ser uma colónia dos EUA, ao abrigo da Emenda Platt. A miséria, a desigualdade, a exploração, a repressão, o analfabetismo marcavam a sociedade.

Só em 1959 conquistámos a verdadeira independência, a liberdade, a democracia. Nunca os cubanos tinham decidido o próprio destino e o programa de Moncada respondeu aos desafios de soberania e justiça social. Iniciam-se grandes transformações na posse e uso da terra com a reforma agrária, na educação, na cultura, na saúde, permitindo ao povo o seu acesso massivo.

Cuba ainda hoje é conhecida pelos seus médicos e professores, pelos seus músicos e desportistas. Não raramente com más intenções, perguntam-nos: «por que é que de Cuba saem tantos médicos, tantos professores, tantos músicos?». A questão é como é que um país pequeno e subdesenvolvido foi quinto em número de medalhas nas olimpíadas de Barcelona, em 1992; como é que acumula prémios internacionais na música e promove uma cultura que ultrapassa as suas fronteiras; qual a razão de ter tantos clínicos e pedagogos a trabalharem em todo o mundo? Graças à universalidade e gratuitidade da educação; fruto das condições e qualidade de vida, todos têm oportunidade para desenvolver as suas capacidades e talentos.

Muito está por fazer. O desenvolvimento das nossas infra-estruturas é menor do que o progresso cultural do nosso povo. O facto é que estamos entre os primeiros 40 países no que respeita ao desenvolvimento humano, apesar do bloqueio imposto pelos EUA, o que só é possível alcançar conjugando um enorme esforço colectivo com um sistema político-económico e uma legislação que amparam e protegem o ser humano.

Em Cuba não podes escolher entre dez tipos de cereais e de leite diferentes, mas todas as crianças e jovens comem leite de manhã; todos vão à escola bem calçados e bem vestidos, com os seus livros sem se preocuparem em trabalhar para ajudar a família. Ao contrário, na maioria dos países, incluindo nos considerados desenvolvidos, um cada vez maior número de crianças e jovens vão para a escola de estômago vazio.

O que temos resulta de uma política de redistribuição da riqueza que resiste às condições artificiais ditadas pelos EUA, as quais afectam todas as esferas da nossa vida. O objectivo do bloqueio é obrigar-nos a abandonar o projecto de justiça social.
Imagine-se onde estaríamos se não fosse o bloqueio? Por exemplo, recebemos três milhões de turistas por ano e não fazemos publicidade nos grandes meios de comunicação social, que nos estão vedados pelos norte-americanos. Nem estamos presentes nos principais sistemas de reservas das companhias aéreas.

Oitenta por cento dos cubanos nasceram sob o bloqueio. Não sabemos o que é viver em condições normais de desenvolvimento. Sabemos o que é estar a concluir um negócio e, da noite para o dia, a companhia cancela-o porque foi comprada pelo país que nos bloqueia. Sabemos o que são as pressões desenhadas para fazer colapsar a economia cubana, e o que são as multas milionárias aplicadas a empresas que pretendem fazer transacções comerciais e financeiras com Cuba.
 
Considera que a manutenção das conquistas fundamentais depois do derrube do socialismo no Leste da Europa foi outra das vitórias de Cuba e do seu povo?
 
Os parceiros naturais das trocas comerciais de Cuba são a América Latina e os EUA. Ora, nos primeiros anos da revolução e durante muitos anos, a América Latina era governada por subalternos do imperialismo. Nos primeiros anos da revolução, expulsaram-nos da OEA, cortaram créditos, impuseram o bloqueio, o que explica que 80 por cento das nossas relações passassem a fazer-se com o campo socialista. A derrota da URSS forçou-nos a reconfigurar tudo pela segunda vez em 40 anos.
Acresce que, em 1992, os sectores mais reaccionários dos EUA consideraram que estava aberta a oportunidade de nos fazerem capitular aplicando um conjunto de leis que agravaram o sistema de sanções unilaterais mais prolongado, mais completo e severo da história, o qual passa a ter um carácter extraterritorial e a perseguir terceiros.
A questão nos anos 90 resumia-se ao seguinte: ou nos rendíamos, ou nos reorganizávamos. Rejeitámos o que o FMI pretendia, um programa cujas consequências são hoje conhecidas de muitos europeus. A resposta de Cuba foi que não vendíamos o país, não renunciávamos ao controlo público dos recursos e à justiça social.
Passámos por extremas dificuldades. Muitos amigos portugueses, e em particular o Partido Comunista Português e o movimento de solidariedade, entenderam que o nosso povo resistia para manter a alternativa ao que o imperialismo norte-americano e os seus aliados lhe queriam impor.
 
É essa reorganização que prossegue com novas, mais profundas e rápidas medidas?
 
Em Cuba existe um consenso muito grande sobre a manutenção do sistema socialista. A actualização do modelo e as orientações económicas e sociais foram amplamente discutidas com o povo, determinante para avaliar a sua justeza e decidir a sua concretização. O projecto inicial foi alterado em 67 por cento.
São mudança estruturais que, na sua essência, não alteram a prevalência da propriedade social sobre outras formas de propriedade. Cerca de 600 mil pessoas já trabalham por conta própria. Até ao momento, isso tem convivido com a prioridade dada à satisfação das necessidades da população e à distribuição equitativa da riqueza, com o desenvolvimento da produção e o controlo público dos principais recursos.
Preservar as conquistas revolucionárias é, também, um exemplo que damos ao mundo e que muitos países da América Latina e do Caribe hoje perseguem.
 
A quebra do isolamento a que os EUA vos tentaram votar e a derrota da subserviência ao imperialismo no subcontinente, é outra grande conquista do processo cubano?
 
Rompemos o isolamento porque contribuímos para inverter a hegemonia dos EUA na América Latina, que não é hoje o mesmo subcontinente de há 40 anos. Aprendeu a dizer que não. Só assim se compreendem os processos de integração e cooperação regionais em curso. Raúl Castro preside à Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), organismo multilateral que nem sequer existia. «Juntos podemos mais», foi sempre o pensamento de Fidel Castro, e depois de Hugo Chávez.
Hoje são populares as políticas que beneficiam os povos. Antes, era quase um crime defender que o Estado devia ser o principal responsável pela saúde, pela educação, pelo emprego, pela previdência, pela exploração dos recursos naturais e a redistribuição e aplicação dos seus proveitos.
 
Não referiu a solidariedade internacionalista como uma das grandes conquistas da revolução cubana, embora esta seja das mais reconhecidas.
 
E justamente. No funeral de Nelson Mandela, Raúl Castro foi apresentado como «o presidente da ilha que nos libertou [do apartheid] em Cuíto Cuanavale [no Sul de Angola, em 1988]». Sem a vitória em Cuíto Cuanavale, Mandela não teria sido libertado e os racistas sul-africanos não teriam sido obrigados a negociar.
De todas as missões internacionalistas de Cuba em África, não trouxemos nem petróleo nem pedras preciosas. Repatriámos os corpos dos nossos mortos, que em Cuíto Cuanavale morreram ao lado dos sul-africanos, dos angolanos e dos namibianos.
Cuba recebeu muita solidariedade. Fidel chama-lhe «a nossa dívida para com a humanidade». Estamos gratos e demonstramo-lo oferecendo o que temos. Hoje, os médicos e os professores cubanos estão em dezenas de países a combater flagelos, a colmatar carências e a ajudar as populações.
 
O cumprimento recente entre os presidentes de Cuba e dos EUA durante as cerimónias fúnebres de Nelson Mandela deixa antever uma alteração nas relações entre os dois países?
 
Terá de perguntar ao presidente Barack Obama. Eu não sei por que é que o fez.
O presidente Raúl Castro foi coerente com a nossa política de sempre de normalização das relações, baseadas no respeito mútuo, civilizadas entre nações independentes e soberanas. Os EUA mostram que não o pretendem. E não apenas em palavras hostis, mas em acções quotidianas de manutenção do bloqueio, de financiamento da contra-revolução. Investem milhões para criar uma oposição artificial que defende o retrocesso de Cuba. Promovem uma política concreta de perseguição económica, financeira e comercial.
Já nem nos EUA esta política goza de apoio. Trezentos mil emigrantes cubanos viajam todos os anos dos EUA até Cuba para visitarem as respectivas famílias, para fazerem férias. Sectores universitários, religiosos, económicos – nenhum está a favor do bloqueio.
É preciso portanto aguardar para saber se o cumprimento de Obama se tratou apenas de cortesia. Nós temos relações com 187 países. O bloqueio dos EUA recebe há vinte anos condenações esmagadoras nas Nações Unidas.
 
Mas há algumas condições para normalizar as relações?
 
Os EUA conhecem a nossa agenda porque já a apresentámos oficialmente em várias ocasiões: o fim do bloqueio, o regresso dos quatro patriotas cubanos antiterroristas e a reparação das vítimas do terrorismo contra Cuba, a devolução da Base de Guantánamo, a retirada de Cuba da arbitrária lista de países terroristas e o abandono da retórica do desrespeito pelos direitos humanos, negada por todos os indicadores internacionais e pela realidade. Em Cuba não se tortura, não há bandos armados que matam famílias inteiras ou alunos em escolas, não há sequer delitos violentos significativos associados à exclusão social.
Os EUA sabem que em todos os temas em que quiseram cooperar chegámos a acordo. Está em vigor um tratado migratório que funciona. Cuba reconhece o direito das pessoas a emigrarem e o direito a voltarem. Muitos pensaram que depois desta reforma assistir-se-ia ao êxodo massivo. Os EUA mantêm a política de «pés secos e pés molhados», que recebe de braços abertos quem atravessa 90 milhas para chegar à Florida, e dificulta a entrada a quem pede autorização. Isto é, estimulam a emigração ilegal, a qual não sucedeu. Muitos dos que viviam fora de Cuba estão até a regressar.

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