Organização Mundial de Comércio - O caminho para Cancun: interesses e contradições da Ronda Negocial de Doha
"Agenda de Doha para o Desenvolvimento", foi com este "rótulo" que ficou conhecida a nova ronda negocial da Organização Mundial de Comercial (OMC), encetada em Doha, em Novembro de 2001. "Rótulo", que esconde uma agenda já presente na Conferência Ministerial de Singapura e que procura ser a resposta possível às fortes movimentações sociais que contribuíram para o fracasso na Conferência Ministerial de Seattle e a um papel mais activo dos países em vias desenvolvimento (PVD), tendo em conta as injustiças crescentes do sistema de comércio internacional e o aprofundamento do fosso entre ricos e pobres - consequência do processo de liberalização ao nível mundial - um mundo onde 1.000 milhões de pessoas vivem em pobreza extrema. Os resultados desta dita "globalização" são cada vez mais evidentes, o que aumenta, sem dúvida, as dificuldades de negociação desta Ronda, e que serão evidentes em Cancun.
A agenda de Doha incluiu questões importantes para os PVD - como o acesso aos medicamentos - mas a questão central é que os países desenvolvidos continuam a não cumprir as metas fixadas pela ONU para a ajuda aos PVD - cerca de 0,7% do PIB -, como o demonstra o último relatório do PNUD, ao mesmo tempo que não se vislumbram soluções para que as questões de relevância para os PVD, incluídas na agenda, não fiquem pelas intenções.
A agenda integra uma contradição de fundo, que é pensar que é pelo comércio, ou seja, pela liberalização das trocas internacionais, que se promove o desenvolvimento. Esta "cartilha" fica bem patente nas cláusulas de tratamento especial e de abertura assimétrica dos mercados, como instrumento para desvalorizar os níveis diferenciados de desenvolvimento entre as partes contratantes da OMC. Filosofia que fica bem patente com o "nascimento" da OMC, em Janeiro de 2005, onde se privilegia somente o "comércio", em contraste, por exemplo, com o papel que poderia ter tido a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (CNUCED), que, para além fazer parte da Nações Unidas, integra a dimensão "desenvolvimento".
A agenda do patronato
Devemos lembrar que hoje, ao contrário da ronda do Uruguai, os interesses do grande patronato europeu e norte-americano, não residem somente na liberalização do comércio internacional e na redução das barreiras não aduaneiras, mas, sobretudo em questões conexas, como a liberalização dos investimentos, a abertura do mercado de contratos públicos, a liberalização dos serviços ou a promoção da política de concorrência. Estes temas, apontados pela primeira vez em Singapura, são as prioridades a obter, até como resposta tradicional do capitalismo à crise mundial que atravessa, bem patente na fragilidade económica e nos riscos de deflação nos pólos da tríade - EUA, UE e Japão.
A doutrina "que é pelo comércio que fazemos desenvolvimento" perspectiva usar como moeda de troca sectores tradicionais - como a agricultura ou o têxtil e vestuário - com vista a obter outros interesses, com todos os custos sócio-económicos que daí advirão. Esta troca aponta um modelo de especialização económica em que os PVD ficam com a produção de menor valor acrescentado, muitas vezes subcontratada e deslocalizada dos países desenvolvidos, o que é contrário ao seu desenvolvimento. Um exemplo é o sector agrícola, cujas práticas de dumping da UE e dos EUA ajudam a arruinar as economias rurais locais, enquanto a abertura dos mercados leva a modelos de especialização nos PVD de monoculturas ou culturas não essenciais ao nível da alimentação, muitas dominadas pelas grandes multinacionais dos países desenvolvidos, promovendo a desertificação, o desemprego e a dependência alimentar e tecnológica. Por isso mesmo, o Comissário Pascal Lamy se mostrou tão satisfeito com a aprovação, a 26 de Junho de 2003, da reforma da Política Agrícola Comum pelo Conselho de Agricultura. Numa reunião informal dos ministros de comércio da UE e dos 10 futuros membros, organizada em Palermo, a 6 de Junho de 2003, suspirava que "sobre a agricultura como já é o caso noutros domínios, nós podemos agora passar à ofensiva" e lembrava que todos, os Estados-membros, apoiavam o mandato negocial "em todos os aspectos, incluído os novos temas ditos de Singapura".
Daí, as congratulações da UNICE, a 14 de Novembro de 2001, "com os resultados de Doha. Após uma semana cheia de discussões difíceis, o objectivo principal do patronato europeu, particularmente o lançamento de uma ronda de negociações abrangente da OMC, para ser concluída em 3 anos, foi acordado” - como dizia Lamy, "a OMC está nos carris e o comboio saiu da estação”.
O grande capital precisa de um “balão de oxigénio”. É importante para o capital garantir em Cancun a consolidação de um compromisso de curto/médio prazo quanto ao objectivo fundamental de “melhorar o acesso aos mercados através de uma maior liberalização do comércio e do investimento” e garantir “a OMC como fórum único para a liberalização e regulação do comércio”, abrindo a porta a novos assuntos. As "rondas", como o demonstra a experiência histórica, levam tempo, sobretudo quando se pretendem dar novos saltos qualitativos. Veja-se o exemplo da ronda do Uruguai, iniciada em 1986, que levou oito anos a concretizar e que, após dificuldades, contradições e compromissos, conseguiu impor uma mais ampla redução dos direitos aduaneiros (em cerca de 36%).
Por isso, aliás como afirma a própria UNICE, “quanto mais alargada a agenda, maior as hipóteses de sucesso”, pois não só facilita a obtenção de um menor denominador comum, como permite a todos “cantar” pequenas vitórias, enquanto o essencial passa.
Dogmas vigentes
Falar de “agenda de Doha para o Desenvolvimento”, lembra um pouco alguns Conselhos Europeus que foram apelidados de "Cimeira do Emprego", quando o que se priorizou foi a flexibilização dos mercados de trabalho. A questão não é um melhor acesso aos mercados ou tratamento diferenciado, sem que sejam colocadas em questão as bases do sistema, mas sim o próprio sistema capitalista - nomeadamente na sua forma neoliberal - que se expande e impõe a sua lógica, assente num modelo de promoção das exportações e de liberalização do comércio e dos capitais. Com o propósito explícito de tudo transformar em mercadoria, incluindo o produto do trabalho e a própria vida, criando para o efeito os mecanismos de regulação que permitam uma maior apropriação de mais valias e garantam os direitos de propriedade. Por isso, na declaração final de Doha reafirma-se o compromisso “em manter o processo de reforma e liberalização das políticas comerciais” e “o apoio aos princípios e objectivos definidos nos Acordos de Marrequexe, que estabeleceram a OMC”.
O dogma do "comércio livre", alicerçado no imperialismo, coloca em causa a capacidade dos povos em definirem as suas prioridades e estruturas económicas. É uma falácia pensar que todas as vantagens comparativas são naturais e não foram na sua grande maioria criadas pelo imperialismo. Nem todos estão no mesmo patamar de desenvolvimento. O exemplo do comércio agrícola, fala por si. A questão não é os países menos desenvolvidos exportarem bens agrícolas, mas, sim, assegurarem a sua soberania alimentar, sem lhe serem impostas lógicas de divisão do trabalho contrárias aos seus interesses. A injustiça é imposta pelo imperialismo das grandes potências e das instituições por elas dominadas. As políticas definidas na OMC/GATT têm, por isso, um cunho de classe.
Não se devem desvalorizar as contradições, mas a concertação e pressão do patronato quanto às prioridades é evidenciada na carta conjunta que enviaram aos Chefes de Estado, reunidos na Cimeira do G8 em Evian, no dia 1 de Junho de 2003. Carta assinada pela UNICE, a Mesa Redonda dos Industriais na UE, a Mesa Redonda dos Industrias dos EUA, o Conselho Canadiano de Chefes de Empresa, a Câmara de Comércio Internacional e a Confederação Patronal Japonesa (Nippon Keidanren), que, sob o lema "o crescimento económico mundial está em risco", exortam os governos a respeitar o calendário traçado em Doha - fechar a ronda até 2005- e a tomarem as decisões necessárias em Cancun.
Têxteis em risco Por iniciativa dos deputados do PCP ao PE, com apoio dos deputados de todos os partidos políticos portugueses representados no PE, o Parlamento Europeu agendou um debate sobre as consequências do fim do Acordo Têxtil e Vestuário, em 2005, que ocorreu na Sessão Plenária de 18 e 19 de Junho. Infelizmente, por responsabilidade dos grupos parlamentares do PPE e PSE - os quais integram respectivamente o PSD e o PS - foi recusada a existência de uma resolução parlamentar. Na sua intervenção, Ilda Figueiredo, considerou indispensável "uma avaliação completa dos impactos sociais, económicos e territoriais, quer dos acordos bilaterais já concretizados, quer de uma eventual maior liberalização, com o fim do actual Acordo Têxtil e Vestuário". E considerou urgente, "adoptar um plano de acção com medidas concretas que visem a manutenção de uma fileira produtiva coesa e eficiente, reforçando também os apoios às PME, à investigação e à formação profissional", como, aliás, propôs em resolução de sua iniciativa. A deputada do PCP ao PE salientou que nas negociações em curso na OMC "os têxteis europeus não podem continuar a ser usados como moeda de troca para outros negócios de sectores de serviços ou de alta tecnologia". |
Pela moratória na liberalização dos serviços Por iniciativa dos deputados do PCP ao PE e do seu grupo parlamentar GUE/NGL foi realizado na sessão plenária de Março de 2003 um debate sobre as negociações do Acordo Geral sobre Comércio e Serviços (GATS). O Grupo Esquerda Unitária Europeia / Esquerda Verde Nórdica (GUE/NGL) defendeu, na sua resolução o estabelecimento de uma moratória sobre novas liberalizações no domínio dos serviços, em negociações no âmbito do GATS, voltando a reafirmá-lo no debate sobre a Conferência Ministerial de Cancun, realizado na Sessão Plenária do PE de Julho de 2003. O Grupo opõe-se a uma nova vaga de liberalizações e defende a realização de um balanço sério sobre os efeitos das liberalizações realizadas até aqui para o desenvolvimento e a acentuação das desigualdades. O Grupo opõe-se igualmente à ampliação das negociações aos novos temas de Singapura - investimentos, mercados públicos e concorrência. |
Deputado do PCP ao PE participa em Cancun O deputado do PCP ao PE, Joaquim Miranda, integrará a delegação do Parlamento Europeu que irá acompanhar os trabalhos da Conferência Ministerial da OMC, em Cancun, nos próximo dias 10 a 14 de Setembro, como presidente da Comissão para a Cooperação e Desenvolvimento. O deputado integrará igualmente a delegação do Grupo Esquerda Unitária / Esquerda Verde Nórdica, no qual os deputados do PCP ao PE se integram. |
Pela soberania alimentar / Agricultura fora da OMC A liberalização do comércio agrícola tem contribuído para a baixa dos preços mundiais, o que coloca em causa a sobrevivência dos pequenos e médios agricultores e da agricultura familiar, quer nos países do hemisférios Sul, quer do hemisfério Norte. Em comunicado de imprensa, de Maio de 2003, relacionado com a reforma da Política Agrícola Comum, a deputada do PCP ao PE, Ilda Figueiredo, defendeu "o princípio da soberania alimentar, ou seja, o direito a cada país a ter uma agricultura conforme as condições edafoclimáticas dos seus solos, tendo em conta as suas necessidades e especifidades", quer nos países em vias de desenvolvimento, quer nos países industrializados. De acordo com a deputada do PCP ao PE "este modelo é incompatível com a liberalização do sector agrícola" e, por isso, é necessário "retirar a agricultura da OMC". |
São precisas mais do que declarações de intenções No debate parlamentar sobre a 5ª Conferência Ministerial da OMC, a realizar em Cancun (México) de 10 a 14 de Setembro de 2003, o deputado do PCP ao PE, Joaquim Miranda lembrou "as dificuldades que se fazem sentir neste momento crucial das negociações que precedem Cancum", que "decorrem, em larga medida, do actual sistema comercial mundial, da sua tendência liberalizadora e das respectivas incidências", sobretudo para as frágeis economias dos países menos desenvolvidos. Por isso, lembra, que a "Agenda do Desenvolvimento", "não pode ser uma designação sem consequências, antes deve determinar uma vontade e uma orientação sem equívocos". Considera por isso indispensável "um cabal respeito pelos temas mais importantes suscitados por esses países", nomeadamente a questão-chave dos medicamentos, cujo o acordo foi bloqueado, em Doha, pelos EUA, nomeadamente através da pressão que "vêm exercendo junto de alguns países para que renunciem ao direito de importarem medicamentos genéricos" |