A Comissão Política do Comité Central do PCP procedeu a uma primeira avaliação do Orçamento do Estado para 1996 apresentado pelo Governo PS. E, independen- temente de um estudo mais detalhado das políticas inscritas nas Grandes Opções do Plano e suportadas pelo Orçamento do Estado, é possível declarar desde já a nossa completa discordância e oposição ao seu conteúdo essencial e às suas orientações fundamentais.
1.
É um orçamento determinado pela obediência mais estrita aos critérios de Maastricht e aos ritmos impostos pela União Económica e Monetária, e não pelos interesses do crescimento económico, do emprego, da dinamização do mercado interno, da defesa do sector produtivo, da resposta aos principais e mais urgentes problemas da sociedade portuguesa, inclusive da rectificação da ruinosa política do cavaquismo.
É um Orçamento que vai provocar mais desemprego
É um orçamento que mantém as opções e a matriz de classe dos orçamentos elaborados pelos governos do PSD/Cavaco Silva, concretizado em políticas fiscais e despesas sociais não correctoras das profundas desigualdades da distribuição do Rendimento Nacional. A carga fiscal continuará a distribuir-se fundamentalmente sobre os que trabalham, continuando os benefícios fiscais ao grande capital e, sobretudo, ao capital especulativo. A ligeira subida do peso das despesas com a função social não será a redistribuição que era necessário e possível fazer a favor dos que mais precisam.
É um orçamento que, reclamando-se do rigor e de um uso criterioso dos dinheiros públicos, pretende estabelecer novas linhas orçamentais para reforçar as indemnizações aos antigos (e hoje novamente) donos de empresas do sector público («recálculo dos valores definitivos das empresas nacionalizadas») e acrescer as indemnizações dos latifundiários dos «juros de anos anteriores», e ainda o perdão dos empréstimos contraídos ao abrigo do Crédito Agrícola de Emergência.
É um orçamento que, articulado com o chamado Acordo de Concertação Social, da moderação salarial, da flexibilização e da polivalência para os trabalhadores, prevê a continuidade do assalto ao património público ao inscrever como receita a venda, por 360 milhões de contos, de significativo e valioso conjunto de empresas públicas, concretizando um atentado maior aos interesses da economia portuguesa, e tornando-a irreversivelmente periférica, apesar de, nas Grandes Opções do Plano, se afirmar como questão principal o «eliminar o risco de periferização da sociedade e da economia portuguesa».
Não é assim de admirar a efusiva emoção com que as organizações ao serviço dos interesses do grande capital português - CIP, CAP, CCP, AIPortuense - o saúdam e o defendem. Não é assim de admirar a estranha, mas compreensível, intervenção dessas organizações, transformadas em correias de transmissão do Governo, na pressão junto dos seus partidos, o PSD e o PP/CDS, para a viabilização do Orçamento do Estado do Governo PS.
2.
Em relação ao Acordo de Concertação Social de curto prazo assinado pelo Governo, confederações patronais e UGT, a análise aprofundada do seu conteúdo e as declarações de alguns dirigentes da CIP em relação aos horários de trabalho e à polivalência, vieram confirmar e reforçar as grandes inquietações, a denúncia e o apelo ao esclarecimento e à mobilização dos trabalhadores feitos pelo PCP.
A Comissão Política do Comité Central do PCP não pode deixar de sublinhar o papel mais uma vez desempenhado pela UGT de ser a «peninha» com que o Governo enfeita e disfarça a mais completa subserviência às imposições do grande patronato. Não pode deixar de evidenciar o significado do Conselho de Concertação Social como o lugar onde o poder político encena o espectáculo que esconde a sua objectiva e indisfarçável aliança com os interesses do grande capital e dos latifundiários.
A Comissão Política não pode deixar de denunciar a extrema gravidade do comportamento do Governo do PS, que mais uma vez foi a porta por onde entraram as reivindicações da CIP/CAP/CCP, como aliás lembrou o vice-presidente da CIP, Nogueira Simões, ao referir a criação dos contratos a prazo por anterior governo do PS, porta que os governos do PSD e da direita não tiveram forças para abrir durante o consulado cavaquista.
A insolência e o grau de confiança publicamente manifestados, designadamente pelo vice-presidente da CIP, avançando com calendários e interpretação de linhas de orientação vertidas no anteprojecto, sobre a desregulamentação dos horários e a imposição obrigatória da polivalência, levam a crer que o Governo PS persistirá em apresentar brevemente na Assembleia da República uma proposta de lei que, a ser aprovada, constituiria um rude golpe nos horários de trabalho, nas categorias profissionais e na contratação colectiva.
Ao contrário de promessas eleitorais, do seu slogan «as pessoas estão primeiro», e subvertendo a opção constitucional que valoriza e garante os direitos fundamentais dos trabalhadores, o Governo PS quer atribuir às entidades patronais o poder absoluto para determinar a organização e a prestação dos tempos de trabalho que, inevitavelmente, conduziriam ao aumento da exploração, ao embaratecimento da mão-de-obra, ao aumento dos despedimentos e das rescisões forçadas.
Não deixa de ter significado a concepção do dirigente da CIP de que as pausas e intermitências são para eliminar, e considerar que o lanche dos trabalhadores é um vício que tem de acabar. A arrogância que demonstra em relação à consagração de direitos constitucionais, como o direito a trabalho igual salários igual, afirmando que isso acabou, é uma manifestação inequívoca das práticas ilegais e inconstitucionais do grande patronato, em muitas empresas, fomentadoras da política de facto consumado, assentes na ideia da cumplicidade do Governo e no apoio das propostas de direita para a revisão constitucional.
A Comissão Política do PCP alerta para as tentativas de alguns sectores patronais que procuram pôr já em prática as linhas orientadoras do Acordo. É a Assembleia da República, e não o Governo ou o Conselho Económico e Social, que legisla sobre os direitos dos trabalhadores.
Apelando a uma grande batalha de esclarecimento e mobilização de todos os trabalhadores, pela defesa dos horários de trabalho, do direito à carreira profissional e à contratação colectiva, o PCP considera que a gravidade do que é proposto pelo Governo PS exige uma acção e a luta tão determinadas como aquelas que os trabalhadores portugueses travaram face aos sucessivos pacotes laborais dos consulados cavaquistas.
3.
O programa de privatizações integrado no Orçamento do Estado para 1996 é porventura o traço mais impressivo da continuidade da política de direita e da orientação neoliberal adoptadas pelo Governo de António Guterres. O que não deixa de ser irónico para os que, desse Governo e antes na oposição, acusaram Cavaco Silva de fundamentalista do neoliberalismo.
O programa é sustentado por um conjunto de objectivos bem na linha das justificações dos governos de Cavaco Silva, e de que Friedman não desdenharia, onde a razoabilidade e boas intenções do objectivo «reestruturação do tecido produtivo» é contraditada pelo próprio processo de privatizações, e serve para tapar os seus autênticos desígnios:
- «Dinamização do mercado de capitais», isto é, dar mais força ao desenvolvimento da especulação bolsista;
- «redução do stock acumulado da dívida pública» (290 milhões de contos), isto é, vender património público para cumprir os critérios de Maastricht;
- «redução do peso do Estado na economia,» isto é, satisfazer a gula do grande capital nacional e multinacional, abrindo-lhes novos espaços económicos para a expansão e acumulação de capitais, permitindo-lhes deitar a mão a algumas das mais rentáveis unidades do universo empresarial português.
É de assinalar que os dados sobre o Sector Empresarial do Estado transcritos no Orçamento do Estado contrariam em definitivo a ideia insistentemente vendida das privatizações como forma de poupar os enormes desperdícios de dinheiros públicos gastos com as empresas nacionalizadas.
Prevê-se que em 1996 o conjunto de empresas públicas financeiras e não financeiras, depois de pagarem 27 milhões de contos de IRS, entreguem de dividendos aos cofres públicos 87,1 milhões de contos, depois de, em 1995, terem contribuído com 42,2 milhões de contos! Empresas que pagaram de IRC, em 1995, 121 milhões de contos (34% do IRC total cobrado em 1995) e vão pagar, em 1996, 191 milhões de contos (43% do IRC total a cobrar)! Só a EDP, de que o Governo pretende iniciar a privatização, vai render, no presente ano, mais de 100 milhões de contos de dividendos e de IRC, para lá de cerca de 5 milhões de contos de IVA da electricidade vendida. Dados que, aliás, confirmam o balanço realizado em 1995 pelo GAFEEP (Gabinete para a Análise do Financiamento do Estado e das Empresas Públicas) sobre as empresas já privatizadas e que permite desvendar a completa mistificação da tese dos prejuízos das empresas públicas.
Porque se trata, em alguns casos, de empresas com um carácter estratégico e estruturante da economia e do território nacional, por corresponderem a algumas das empresas que desempenham um papel chave no fornecimento de bens e serviços essenciais aos portugueses - energia eléctrica, combustíveis, gás, telecomunicações, transportes aéreos e ferroviários, etc. - pelo seu valor nuclear em sectores tecnológicos avançados, assume o Governo do PS, e quem apoia e viabiliza este programa de privatizações, pesadas e graves responsabilidades para com os trabalhadores e o País.
Responsabilidades no plano económico, inviabilizando o papel motor e básico no desenvolvimento económico do País de muitas dessas empresas do sector financeiro, de bens energéticos, de telecomunicações e transportes, socavando o seu papel dinamizador do mercado interno e de apoio ao sector capitalista privado e das pequenas e médias empresas, impossibilitando a sua contribuição para um perfil produtivo português valorizado e um racional aproveitamento de recursos naturais, afectando as suas potencialidades como pólos I&D ao nível empresarial, e ainda, como é hoje evidente, pondo em causa a importante contribuição para as receitas do Estado do sector público. (É caso para interrogarmo-nos como vão os governos no futuro, vendido o património público empresarial, equilibrar os Orçamentos do Estado?).
Responsabilidades no plano social, porque, tendo em conta o que se passou nos anteriores processos de privatização, e até já nas operações preparatórias das agora anunciadas privatizações, à semelhança de toda a experiência noutros países, o programa privatizador vai significar, de forma directa, mais desemprego, mais precariedade, maior fragilização dos direitos e garantias dos trabalhadores e reformados dessas empresas e, indirectamente, atingir nessas mesmas vertentes, todos os trabalhadores portugueses.
Responsabilidades no plano dos interesses das populações e, em particular, das que residem nas regiões afectadas pela desertificação e dificuldades de desenvolvimento, pois a alteração do carácter e lógica de funcionamento de serviço público de algumas dessas empresas, vai impedir que desempenhem o seu papel de instrumentos privilegiados no ordenamento do País, e põe em causa o direito de acesso de cada um e de todos os portugueses, a bens e serviços essenciais a um preço/tarifa e com uma qualidade idênticos em todos os pontos do território nacional. A privatização dessas empresas vai liquidar a actual e necessária perequação social e geográfica realizada por essas empresas públicas, compensando os custos acrescidos de bens e serviços em regiões, estratos populacionais e sectores económicos de menores rendimentos com os excedentes de resultados em áreas com vantagens económicas de aglomeração, proximidade e força económica. A sujeição dessas empresas a critérios exclusivos de rentabilidade financeira, como acontecerá com a sua privatização, transformará os actuais utentes de bens e serviços públicos em clientes, em que o pagamento e a qualidade, e a própria existência do serviço passam a ser determinados pela quantidade do bem ou serviço adquirido e pelo custo real da operação de ligação à rede fornecedora do bem ou serviço.
Responsabilidades no plano político, porque, violando a Constituição da República que exige a existência de um sector público da economia (e pergunta-se, qual é esse sector depois de realizadas as privatizações propostas pelo PS para 96 e 97?), as privatizações põem em causa princípios constitucionais, como o da subordinação do poder económico ao poder político, e a própria independência nacional, ao substituir o Estado pelo grande capital nacional e multinacional na propriedade e orientação de sectores estratégicos para a economia e a própria sociedade portuguesas.
Nada pode justificar este assalto ao património público. Nada pode diminuir ou atenuar as graves responsabilidades do PS por estas decisões. Um PS que, pela voz de um secretário de Estado e de um ministro da Agricultura, sossega os grandes agrários alentejanos face à necessária consideração da reestruturação fundiária nas terras a regar pelo Alqueva, cuja valia vai ser acrescida por investimentos públicos, dá de bandeja um valioso património público, propriedade do povo português, a meia dúzia de grandes capitalistas nacionais e estrangeiros.
É um crime económico pelo qual os trabalhadores e o povo português não deixarão de condenar o PS. O mesmo PS que, quando na oposição, criticava a forma (e apenas a forma) como Cavaco Silva realizava as privatizações. O mesmo PS que, cúmplice da direita na revisão da Constituição que abriu as portas a este processo, recusou, quando no Governo, corrigir essas privatizações e rectificar os processos opacos, ilegais e parciais do Governo PSD/Cavaco Silva.
O PCP não deixará de prosseguir a luta em defesa de um Sector Empresarial do Estado moderno, eficiente, ao serviço dos trabalhadores e da economia nacional.