1 – Significado da pausa
A dupla vitória do NÃO nos referendos da França e da Holanda,
respectivamente a 29 de Maio e 1 de Junho de 2005, abriu novas
possibilidades de luta contra as orientações cada vez mais neoliberais
que se têm vindo a impor, nos últimos anos, na União Europeia, de que o
projecto da dita constituição europeia tentava ser a consagração plena.
Sob o ponto de vista político e jurídico o Tratado constitucional ficou
ferido de morte com as posições dos povos nos referidos referendos, já
que só pode entrar em vigor um Tratado que tenha sido ratificado por
todos os 25 Estados-membros.
Por isso, o Conselho Europeu
seguinte – 16 e 17 de Junho – não tinha outro caminho que não fosse
reconhecer a evidência. Mesmo assim, não o quis fazer, admitindo apenas
meia derrota, e prolongando a agonia por mais uns tempos, ao decidir
uma pausa de um ano para reflexão, que o Luxemburgo aproveitou para o
referendo. Mas terão de reconhecer que esta proposta, tal como está,
não pode entrar em vigor. E, mesmo uma revisão, terá, obrigatoriamente,
de voltar ao princípio de todo o processo de ratificação.
2 – Alguns antecedentes
Sabemos que este projecto foi preparado por uma Convenção que durou
cerca de 16 meses (de 2002 a início de 2003), sob a orientação do
antigo presidente francês Giscard d’Estaing. Com esta dita «Convenção
europeia», tentaram associar a expressão «convenção» aos momentos
fundadores das Convenções francesa e americana. Só que, de semelhante,
apenas tinha o nome. Nem a sua composição, nem o seu modo de
funcionamento obedeceram a princípios democráticos legitimadores de
qualquer constituição. Tratou-se, pois, de uma farsa. Como diz o Prof.
Paulo Pitta e Cunha (1), “Uma constituição é, em rigor, a lei
fundamental de um Estado. Ora, a União Europeia não é um Estado. É uma
associação de Estados com características especiais, em que se
combinam, em doses variadas, poderes transferidos para órgãos centrais
(supranacionalidade) e poderes correspondentes à autonomia soberana dos
Estados. Não se justifica, assim, a forma de constituição, devendo a
União continuar a ser regulada por um ou mais tratados internacionais
celebrados entre Estados soberanos, e não por uma pseudo-constituição,
não dimanada de um poder constituinte – poder que teria de ser radicado
num (inexistente) povo europeu.»
Na Conferência
Intergovernamental de Roma, em Outubro de 2003, não houve acordo entre
os 15 Estados-membros para aprovar este texto global. Estávamos em
vésperas de eleições para o Parlamento Europeu, que se seguiram à
adesão de mais 10 países, em 1 de Maio de 2004. Só após as eleições
europeias de 13/06/04, os 25 chefes de Estado e de Governo, de forma
discreta, aprovaram o texto final, no Conselho Europeu de 17 e 18 de
Junho de 2004, o qual foi assinado em Roma, a 29 de Outubro do mesmo
ano. Foi esse texto que franceses e holandeses rejeitaram.
3 – A
consagração da concorrênciaTodo o texto tem uma orientação ideológica
clara: a competição entre as pessoas, a concorrência entre as regiões e
os países. Às instituições é dado um papel essencial: assegurar a
concorrência, a liberdade total de circulação de capitais, como se diz
logo no artigo I-3, quando define como objectivos da União «um espaço
de liberdade, segurança e justiça sem fronteiras internas e um mercado
interno em que a concorrência é livre e não falseada».Assim, ficam logo
abertas as portas ao dumping social e fiscal, às deslocalizações, onde
a rivalidade entre os indivíduos, as empresas e os países se torna o
objectivo central. Este princípio de livre concorrência, que atravessa
todo o texto do Tratado Constitucional, impede, por exemplo, a
protecção de um sector contra a entrada de um concorrente, incluindo
nos serviços públicos, os quais nem sequer são referidos como objectivo
da União.
Igualmente pretende vulgarizar, considerar normal, a
existência de livre concorrência entre trabalhadores e a luta entre si
para obter ou manter um emprego, renunciando a direitos sociais e
laborais fundamentais, de que o projecto de directiva «Bolkenstein» é
já um exemplo. Quando se inscreve como objectivo fundamental da União
Europeia uma «concorrência livre e não falseada», recorrendo
frequentemente à palavra concorrência, o que se pretende é consagrar o
capitalismo, na sua fase mais neoliberal, como a única via possível de
vida económico-social e política. Assim, tentam fazer crer que qualquer
política pública, qualquer ajuda pública, qualquer serviço público têm
de estar subordinados à concorrência. De igual modo, a protecção
social, as empresas públicas, as ajudas aos pequenos e médios
agricultores ou micro e PME’s podem pôr em causa a concorrência.Às
instituições políticas (governos, parlamentos, etc.) apenas deve caber
o papel de garantir que a «concorrência é livre e não falseada». Este
conceito da livre concorrência é, depois, aplicado à escala europeia e
mundial. Veja-se o que se diz no artigo III-314.º sobre a política
comercial comum, quando se afirma que a União contribui para a
supressão progressiva das restrições às trocas comerciais e aos
investimentos estrangeiros directos e para a redução das barreiras
alfandegárias de outro tipo.
O que se passa, actualmente, com a
liberalização do comércio têxtil e vestuário é um alerta para as
consequências do que se pretende. Querem suprimir todas as protecções
existentes, acabar com o princípio da preferência comunitária, pôr em
causa os sectores produtivos mais débeis e os serviços mais frágeis,
impedir a oportunidade de desenvolvimento das economias mais atrasadas.
Tudo isto em benefício exclusivo dos grupos económicos e financeiros
europeus que, assim, teriam o caminho livre para controlar toda a
economia europeia, incluindo o comércio e os serviços, mesmo que isso
signifique destruição dos sectores produtivos nacionais, agravamento do
desemprego e da pobreza. Até nas relações com países terceiros «são
proibidas restrições tanto aos movimentos de capitais como aos
pagamentos», como se refere no artigo III-156.º. Ou seja, a preocupação
permanente é garantir sempre mais liberdade para que os detentores do
capital possam aumentar os seus lucros e menos protecção para os
trabalhadores, o ambiente e os bens comuns da humanidade.Em nome da
sacrossanta concorrência recusam-se os meios de luta contra o dumping
social e fiscal, desarma-se totalmente a União Europeia do seu
objectivo de obter «o pleno emprego» e alguns direitos sociais de que
se fala na Carta dos direitos fundamentais, mesmo assim, de forma muito
restritiva.
A livre concorrência e normas como a «do país de
origem», que aparece na proposta de directiva sobre a criação do
mercado interno de serviços, encarregar-se-iam de colocar os
trabalhadores em concorrência, pressionando-os a aceitar cada vez
maiores reduções de direitos sociais, conduzindo, de facto, à
harmonização pelo mais baixo, à asiatização do chamado «mercado de
trabalho». Aliás, a proposta de directiva sobre organização do tempo de
trabalho é também já um exemplo inadmissível do caminho que se pretende
trilhar, mesmo na sua versão mais mitigada, recentemente aprovada pelo
Parlamento Europeu. A consagração constitucional do Pacto de
Estabilidade e do Banco Central inserem-se na mesma lógica neoliberal.
4
– A restritiva Carta dos Direitos FundamentaisMas é em torno da Carta
dos direitos fundamentais que mais se pretende argumentar com os
avanços na área social. O que é uma mentira, sobretudo em países como
Portugal, França e Itália onde as suas Constituições nacionais têm a
consagração de direitos básicos essenciais: direito ao trabalho,
direito ao salário, direito a um rendimento mínimo, direito a um
subsídio de desemprego, direito a uma pensão de reforma, direito a uma
habitação, direito a cuidados de saúde, etc. É que na dita constituição
europeia estes direitos não estão garantidos. A União Europeia não
refere expressamente a Declaração Universal dos Direitos do Homem
(1948), que reconhece estes direitos sociais colectivos. Apenas refere
a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que não consagra aqueles
direitos sócio-económicos.Uma leitura mais atenta e comparada com a
Constituição da República Portuguesa, depressa descobre que o «direito
ao trabalho» é substituído por um mero «direito de trabalhar ou
procurar emprego», o que está longe de ser a mesma coisa.
Mais
grave ainda é a referência incluída no próprio texto do Tratado
Constitucional, no preâmbulo da referida Carta, que «a Carta será
interpretada pelos órgãos jurisdicionais da União e dos Estados-membros
tendo na devida conta as anotações elaboradas sob a autoridade do
Presidium da Convenção que redigiu a Carta e actualizadas sob a
responsabilidade do Presidium da Convenção Europeia». Ora, se o próprio
texto da Carta dos direitos fundamentais já é restritivo nos direitos
dos trabalhadores, mas amplia os direitos dos patrões, ao
reconhecer-lhes o direito ao «lock-out», nas explicações vão muito mais
longe. Basta ler algumas das explicações sobre o direito à Liberdade e
à segurança (artigo II – 66.º) ou sobre liberdade de associação e de
reunião (artigo II – 72) para se perceber como fica aberto o caminho às
maiores arbitrariedades e se querem pôr em causa conquistas
fundamentais dos trabalhadores da administração pública, da polícia,
etc.Por isso, na defesa de uma alternativa de desenvolvimento e
progresso, que promova a coesão económico-social, dê prioridade aos
direitos humanos e dignifique quem trabalha, só podemos dizer NÃO à
dita constituição europeia, como já aconteceu na França e na Holanda.