Comunicação de José Vitoriano ao 10.º Congresso do Algarve

Notas sobre o movimento operário em Silves

Resumo:

a) A indústria corticeira em Silves - algumas fases mais significativas por que passou.
b) A movimentação operária - lutas, associação de classe e outras formas de associação criadas pelos operários ou em que participaram activamente.
c) Instauração da ditadura fascista, fim da liberdade sindical e a reacção dos operários -18 de Janeiro de 1934.
d) Criação do Sindicato Nacional (corporativo) de âmbito distrital e a posição dos operários.
e) Algumas importantes lutas reivindicativas levadas a cabo pelos operários corticeiros no âmbito sindical.


Quando se fala em movimento operário em Silves está-se essencialmente a pensar nos operários corticeiros, pois foram estes que, pelo menos desde meados do século XIX, constituíram quase exclusiavamente a massa operária na população de Silves.

Terá havido em dado momento uma ou duas fábricas de tecelagem, aliás a trabalhar sobretudo para a indústria corticeira e em função dela, na produção de sacaria. Posteriormente, já nos fins da década de 30 deste século e princípios da de 40 começou a tomar expressão uma empresa metalúrgica de reparação e produção de máquinas destinadas à indústria corticeira e que, apesar do desaparecimento quase total desta indústria em Silves, se mantém em laboração sendo desde há vários anos a maior empresa industrial de Silves.

Não conseguimos elementos que nos situem com algum rigor no tempo o início da actividade corticeira em Silves. No entanto, de acordo com a grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Salvador Gomes Vilarinho, que nasceu em 1825 e faleceu em 1893, terá sido um dos principais impulsionadores da indústria corticeira em Silves, provavelmente também um dos seus pioneiros. Segundo a mesma fonte, a indústria foi aqui particularmente florescente nos meados desse século.

Esta afirmação de florescimento da indústria corticeira em Silves nesta época é corroborada por referências que encontrámos em imprensa operária do início da última década desse século em que, comentando o desemprego que então atingia a classe corticeira, se escreve: “o futuro desta classe, que há 20 anos se elevava entre nuvens cor de rosa, avizinha-se hoje negro é sinistro” e ainda: Silves, que era uma roça corticeira, vai-se tornando numa terra fúnebre”.

Já nos finais do século passado e início deste existiram duas importantes empresas em Silves, as mais importantes da época nesta localidade e muito conhecidas, de que ainda hoje se ouve falar, que foram as de Pereira Caldas e de Gregório Mascarenhas, esta última uma das melhor apetrechadas em Silves e mesmo a nível do país, segundo referências de jornais dessa altura.

Mas os problemas do desemprego para muitos operários durante alguns dias de cada semana ou durante semanas ou meses seguidos não desapareceram mesmo em fases de relativa expansão da indústria e progresso de algumas empresas.

Conhecemos isso mesmo já na década de 40 deste século, em momento de relativa expansão local da indústria corticeira então com cerca de 2000 operários inscritos no sindicato e em que duas empresas cresceram e se tornaram as maiores de Silves nessa altura e, entretanto, ao lado, e mesmo nestas em algumas secções, havia desemprego. Referimo-nos à J.A.Duarte, Lda., que veio depois a falir, e a Aldemiro E. Mira que se transferiu no início dos anos 50 para a Margem Sul do Tejo, após um incêndio.

A indústria corticeira é desde há muito, talvez desde sempre, constituída por dois sectores fundamentais - o preparador e o transformador. Enquanto o primeiro se limita a preparar a cortiça para depois ser transformada em produto acabado exigindo portanto muito pouca mão de obra, o transformador é o que absorve a maioria esmagadora dos trabalhadores que aqui laboram.

E se hoje há toda uma vasta gama de produtos com várias aplicações que sai da transformação da cortiça, ainda há 50 ou 60 anos as rolhas como produto final constituíam a principal base de laboração da indústria e da ocupação dos operários corticeiros. Houve mesmo desde tempo em que a indústria corticeira era muitas vezes designada por indústria rolheira.

Porque se trata de um produto quase totalmente dependente dos mercados externos; porque uma grande parte da cortiça é exportada em prancha como matéria prima para países que a transformam eles próprios em rolhas ou outros produtos de que necessitam; por razão de crises económicas ou outros motivos como por exemplo, a partir de certa altura, o aparecimento de sucedâneos, as crises cíclicas na indústria corticeira, com o flagelo do desemprego temporário, mas por vezes prolongado, para os que nela laboram, terão quase a mesma idade que a própria indústria.

Por isso a exportação da cortiça não manufacturada foi sempre vista pelos operários corticeiros como uma das principais causas das crises da indústria transformadora. Já o primeiro Congresso dos corticeiros, realizado em 1894, tinha como primeiro ponto da Ordem do Dia esse problema, afirmando-se então que "a exportação da cortiça não manufacturada é, sem dúvida, a causa primordial do aniquilamento da indústria corticeira em Portugal" e exigiam-se medidas que limitassem essa exportação, através das pautas aduaneiras.

Desde cedo os operários corticeiros em Silves criaram formas de organização que melhor lhes permitissem lutar pela defesa dos seus direitos, auxiliarem-se mutuamente em situações económicas difíceis, particularmente na doença, conseguirem adquirir os produtos essenciais de consumo a preços mais suaves, promoverem meios de convívio e de cultura para si e suas famílias.

A Associação de classe dos corticeiros de Silves foi fundada em Dezembro de 1886. Ainda neste mês há uma greve cuja extensão e resultados desconhecemos. Assinalam-se ao longo dos anos outras greves dos corticeiros de Silves, como em 1909 e 1910 (esta uma greve geral dos corticeiros). Além disso há algumas outras greves gerais dos corticeiros em que se presume que os de Silves tenham participado, tais como em Novembro de 1893 (esta só dos corticeiros algarvios), em Janeiro de 1920, em Maio de 1924. Nesta última sabemos que os corticeiros de Silves participaram, pois dela chegaram até nós alguns testemunhos.

Dado que foi uma greve bastante prolongada - terá durado três semanas - devido às dificuldades económicas e á fome que atingiu os operários e suas famílias, os seus filhos - crianças - foram acolhidos por famílias doutros centros operários como Portimão, Lagos e Olhão. Quando, finda a greve, voltaram para casa os que tinham ido para Olhão, os seus pais foram esperá-los à estação do caminho de ferro. Quando regressavam e desciam a estrada da estação, apesar de então ainda se viver em democracia republicana, depararam com patrulhas da GNR a cavalo e a pé que, para os dispersar, disparou sobre eles matando um operário e ferindo gravemente outro, acontecimento que durante muitos anos permaneceu vivo na memória dos silvenses.

A luta pela redução do horário de trabalho deu também lugar a movimentações dos operários de Silves, sendo o 1o de Maio, data que simboliza a luta pelas 8 horas, assinalada desde bastante cedo. Temos, como exemplo, registo do 1.º de Maio de 1894, em que ninguém trabalhou em Silves, as fábricas encerraram, uma grande manifestação operária percorreu as principais ruas da cidade, realizando-se depois um comício no salão da escola da Cooperativa Silvense em que terão participado, segundo um jornal operário da época, cerca de 2000 pessoas e em que interveio, entre outros oradores, a então muito conhecida poetisa e jornalista Angelina Vidal.

Mas para além da acção reivindicativa os operários corticeiros preocupavam-se com muitas outras questões, sobretudo cooperativas e de mutualismo.

É assim que em 1888 é inaugurada uma cooperativa de crédito e consumo, que em 1894 cria uma escola para os seus associados e filhos. Esta cooperativa terá sido provavelmente a antecessora da que ainda existe nos nossos dias -Cooperativa Operária "a Compensadora".

Sabe-se que no início dos anos 90 do século XIX existem também em Silves duas Associações de Socorros Mútuos, "Fraternidade Operária" e "Montepio Artístico Silvense". O “artístico” indicará aqui que tinha ainda outros fins para além do mutualista. No início de 1894 houve movimentações com assembleias gerais nestas duas associações para a sua fusão.

Havia contudo alguma oposição e dizia-se que as objecções estariam ligadas a interesses dos farmacêuticos com receio de que resultando da fusão das duas uma associação mais forte, esta pudesse vir a criar ela própria uma farmácia. Ora, como de facto veio depois a existir uma associação de Socorros Mútuos com uma farmácia, farmácia que ainda existe, tudo indica que terá resultado da fusão destas duas.

Terá ainda interesse registar que, ideologicamente, os operários corticeiros de Silves seguiram, predominantemente, as ideias socialistas até 1894. A sua associação de classe era federada numa Federação socialista. A partir daqui e até 1934 são as concepções anarquistas, por via do sindicalismo revolucionário primeiro e do anarco-sindicalismo mais tarde, que dominam o movimento operário em Silves.

O ponto de viragem é o primeiro Congresso dos Corticeiros realizado em Lisboa, no Outono de 1894, a que atrás já fizemos referência, congresso todo ele já preparado e influenciado pelos anarquistas. Constatámos até que um semanário operário da época, que até ao congresso inseria em quase todos os números notícias dos corticeiros de Silves através de um correspondente que se designava por “O Corticeiro”, a seguir ao congresso tais notícias desaparecem completamente. Do mesmo modo o nome da Associação de Classe dos Corticeiros de Silves, que até aí figurava como associação federada, desaparece igualmente das páginas do jornal.

Depois de 1934 são as ideias comunistas que passam a ser as dominantes no operariado corticeiro de Silves. A organização da greve do 18 de Janeiro, a que nos referiremos a seguir, tem ainda a participação e intervenção dos anarquistas e é fortemente influenciada pelas concepções anarquistas mas tem já a participação e intervenção dos comunistas. São aliás jovens comunistas a maioria dos que são condenados. São depois os comunistas que sobretudo a partir do início dos anos 40, desenvolvem a batalha para adesão ao Sindicato Nacional e, anos mais tarde, participam na criação do “O Corticeiro”, orgão de unidade da classe.

Após a vitória do golpe militar de 28 de Maio de 1926 e posterior ascensão de Oliveira Salazar ao poder as liberdades foram sendo suprimidas e a ditadura fascista foi-se afirmando e impondo.

Em Setembro de 1933, inspirado na “Carta do Trabalho” do fascismo italiano, o Governo publicou a legislação que criava o Estatuto do Trabalho Nacional, extinguia as associações de classe dos trabalhadores, determinando o seu encerramento até 1 de Janeiro do ano seguinte, e criava em sua substituição os chamados Sindicatos Nacionais integrados na orgânica corporativa e submetidos ao controlo do Governo. Era assim dado o último golpe nas liberdades democráticas com a supressão da liberdade sindical.

O movimento operário reagiu tentando opor-se a mais esse esbulho e organizou o que pretendeu ser uma greve geral revolucionária, greve que ficou conhecida na história do movimento operário pelo 18 de Janeiro por ter sido nessa data, em 1934, que teve lugar.

Os operários corticeiros de Silves participaram na sua totalidade nessa greve. Esse dia foi um dia de enorme tensão na cidade com as patrulhas da GNR a cavalo ou a pé percorrendo as ruas, fazendo prisões, desfazendo ajuntamentos, ameaçando. Quase três dezenas de operários corticeiros foram presos em Silves e as fábricas foram depois encerradas por ordem do Governo por duas semanas como represália.

Dos que foram julgados, à volta de uma dezena foram condenados a penas de prisão que chegaram aos 13 anos, com entrega ao governo depois de cumprida a pena. Foram enviados para a Fortaleza de Angra do Heroísmo e, alguns, posteriormente, para o Campo de Concentração do Tarrafal, onde passaram nesses presídios e em prisões do continente, quase todos eles mais que o tempo a que foram condenados. Outros, embora absolvidos, foram expulsos de Silves para outras terras. Eram, na sua grande maioria, jovens animados do sonho generoso de uma sociedade mais justa.

Os operários corticeiros de Silves (como os outros) sofreram uma pesada derrota mas a sua acção ficou na memória da cidade a simbolizar a resistência do operariado silvense à fascização dos sindicatos.

O Sindicato Nacional dos Operários Corticeiros do Distrito de Faro com sede em Silves, que substituiu a antiga associação de classe dos operários corticeiros que tinha sido encerrada, só foi constituído alguns anos depois. No imediato não terá havido condições para que as autoridades fascistas da terra tivessem avançado com a ideia da criação do sindicato.

Mesmo alguns anos depois, aquando da sua criação, os operários, na sua esmagadora maioria, não aderiram ao sindicato. Para além do trauma do 18 de Janeiro, que permanecia vivo, repugnava-lhes entrar para um sindicato que consideravam estar não ao serviço da defesa dos seus interesses mas da defesa dos interesses do regime e dos patrões. Nós próprios, que escrevemos estas linhas, contactados em dado momento para entrar para o sindicato, recusámos. Entretanto, tempos depois, fomos voluntariamente inscrever-nos. É que compreendemos que, apesar das limitações, os Sindicatos Nacionais podiam ser úteis aos trabalhadores se estes lá estivessem e os utilizassem, inclusivamente elegendo dirigentes da sua confiança. Em dado momento, dado o vazio que continuava nos Sindicatos Nacionais, o próprio governo decretou a inscrição obrigatória de todos os trabalhadores nos sindicatos respectivos.

No entendimento das autoridades fascistas era pressuposto que os dirigentes de um Sindicato Nacional fossem pessoas afectas ao regime ou, pelo menos, não lhe fossem desafectas. É nesta lógica que se entende que depois de eleitos tivessem que passar (ou não passar) pelo apertado crivo da informação policial e política, onde o Governo tinha a última palavra, homologando ou não a sua eleição. De todos os presidentes do Sindicato dos Operários Corticeiros de Silves que conhecemos só um, o primeiro, era assumidamente um adepto ferveroso do regime salazarista.

Mas por vezes não era fácil nesse tempo ser-se dirigente de um Sindicato Nacional, pressupostamente identificado com a situação política existente e ser de facto um seu opositor activo embora não declarado. Surgiam situações complicadas em que era difícil por um lado não levantar sobre si suspeitas das autoridades que pusessem em perigo a continuação da sua condição de dirigente sindical, que o era para defender os interesses da sua classe e, por outro, continuar a merecer a confiança dos trabalhadores que o tinham eleito. A nossa experiência pessoal deu-nos alguns exemplos disso, de que citaremos dois.

Um dia, cremos que em Outubro de 1945, na campanha eleitoral para a chamada Assembleia Nacional, após uma grandes movimentação da Oposição Democrática que acabou por não concorrer às eleições, a União Nacional, que era o partido do Governo e o único partido permitido, realizou um comício em Faro. Era um comício distrital e em Silves foi colocado um autocarro para os apaniguados do regime. O presidente do Sindicato dos Corticeiros tinha que ser um deles e esperava-o um lugar no autocarro. Mas era demasiado violento para a sua consciência participar num comício da União Nacional a fingir que também estava desse lado. Não foi. Solicitado a justificar-se, não encontrou outra resposta que dizer que não queria meter-se em política. É seguro que tal lhe foi registado no curriculum.

Uma outra vez não conseguiu esquivar-se a ter de fazer uma breve intervenção introdutória a um chamado Serão para Trabalhadores realizado no Cine-Teatro silvense pela FNAT (Federação Nacional para a Alegria no Trabalho), uma das estruturas que o fascismo tinha e usava para levar junto dos trabalhadores a sua propaganda. Fez a intervenção mais inócua que pode e soube, mas não se livrou de comentários de alguns trabalhadores tais como: fulano é bom moço, mas mais dia menos dia está com eles. Depois provou-se que não estava mas, sobretudo nesses primeiros tempos, surgiam de facto estas situações incómodas.

A justeza da utilização dos Sindicatos Nacionais pelos corticeiros - no caso que nos interessa os corticeiros de Silves - ficou demonstrada pelas lutas que neste período que estamos a referir os operários levaram a cabo com resultados positivos e em que o Sindicato foi uma importante via.

Conseguiu-se, em momentos de muito desemprego, através de grandes movimentações dos operários, subsídios em géneros para desempregados, fornecidos por meio de senhas através do sindicato e melhorias no racionamento de alguns géneros com sua distribuição atempada. Numa fase posterior, e a nível nacional, foram obtidas significativas melhorias salariais e, pela primeira vez, para a classe corticeira, a garantia mínima de três dias de trabalho semanal e alguns dias de férias anuais. Tudo isto, naturalmente, à custa de muitas lutas e, por vezes, também de muita repressão.

Os operários corticeiros de Silves e suas famílias viveram ao longo da sua existência de operários as preocupações, as angústias e também as alegrias que são comuns à generalidade das pessoas que trabalham e vivem do seu trabalho. De tudo isto se constrói a vida.

Hoje quase não há operários corticeiros em Silves, pelo menos no activo. Mas a memória de Silves como importante centro corticeiro, cujo operariado viveu quantas vezes inconformado e sempre lutou por dias melhores, perdurará!

Bibliografia

- História do Movimento Operário e das Ideias Socialistas em Portugal I - Cronologia de Carlos da Fonseca
- "A Federação" semanário operário - Lisboa 1893/1900
- O jornal Avante!
- Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira
- Alguns testemunhos escritos