Nos 30 anos de uma Constituição com futuro - artigo de Vitor Dias, na Revista «O Militante»

No
próximo dia 2 de Abril completam-se trinta anos sobre a
aprovação e imediata promulgação da
Constituição da República Portuguesa que
representaram – e representam ainda hoje – um marco de
extraordinário significado político e de grande alcance
histórico no processo da revolução do 25 de
Abril.

Com
a conclusão dos trabalhos da Assembleia Constituinte eleita em
25 de Abril de 1975 e a aprovação de uma nova
Constituição operou-se a passagem da situação
democrática criada pelo levantamento militar e pela
iniciativa e luta populares à instauração de um
regime democrático escolhido pelo próprio povo,
cumprindo-se assim um compromisso fundamental inscrito no Programa do
Movimento das Forças Armadas e também – importa
recordá-lo – um objectivo essencial do Programa do PCP
aprovado em 1965 e confirmado nas adaptações
conjunturais que foram introduzidas no VII Congresso Extraordinário
do PCP realizado em Outubro de 1974.

Ocorrendo
apenas quatro meses após os acontecimentos do 25 de Novembro
de 1975, a aprovação da Constituição
representou também um inestimável factor de
estabilização da situação política
e da vida democrática do país, assim contrariando as
forças e interesses que acalentavam o desejo de levar mais
longe uma dinâmica revanchista e a esperança de que uma
substituição do General Costa Gomes na Presidência
da República permitisse fazer retroceder e anular o curso
progressista imprimido ao processo de elaboração da
Constituição.

Mas
a principal grandeza e importância da Constituição
aprovada há 30 anos está no facto, carregado de
significado e consequências, de com ela o país ter
ficado dotado de uma Lei Fundamental que, embora com base num
compromisso multipartidário, incorporou e consagrou, de forma
clara e indiscutível, a ruptura revolucionária com a
ditadura fascista e o vasto e rico património de valores,
objectivos, transformações, conquistas e mudanças
trazidas à sociedade portuguesa pela revolução
democrática.

Como
será hoje ainda mais evidente, esta distintiva natureza e este
marcante conteúdo da Constituição de 1976 não
tiveram origem nem na mera relação de forças na
Assembleia Constituinte nem no exclusivo mérito dos deputados
constituintes. Antes só podem ser explicados pelos avanços
e conquistas obtidos, muitas vezes antes da sua consagração
legal, nos anos de 1974 e 1975 através da luta dos
trabalhadores e de outras camadas e grupos sociais e da aliança
Povo-MFA, bem como pela existência à época de um
muito profundo enraizamento social dos ideais e valores da revolução
de Abril que condicionou em grande medida diversas forças
políticas obrigando-as a dissimular transitoriamente muitos
dos seus reais objectivos e propósitos.

E
é também por isso que se pode dizer, com inteiro rigor
e cristalina verdade, que a Constituição da República
aprovada em 1976 constitui ela própria uma fulcral conquista
do 25 de Abril e representa, na história nacional, um
indelével momento de pujante afirmação das
melhores esperanças e aspirações e mais
generosos sonhos do povo português.

Sete-revisões-sete

Ao
longo dos últimos 30 anos, com maior ou menor intensidade, e
exactamente por ser «filha da revolução de Abril»
e não por estar em «oposição à
revolução» como várias forças
políticas sustentaram, a Constituição da
República não foi apenas motivo de luta política
ou de debate ideológico mas também e sobretudo um alvo
privilegiado da ofensiva das forças de direita e do grande
capital, quase sempre com uma significativa cumplicidade do PS.

Se
outros elementos não existissem, bastaria referir o facto de,
desde a sua aprovação, a Constituição de
1976 já ter sido sujeita a sete processos de revisão (o
que coloca certamente Portugal, a nível europeu e mundial,
como um dos países onde mais repetidamente se altera a Lei
Fundamental) para se perceber que não terminou em 1976 nem
está ainda terminado nos dias de hoje o conflito de fundo
entre as forças e interesses que não se reconhecem nos
valores, na substância concreta e na arquitectura
constitucional originada na revolução democrática
e as forças, como o PCP, que são fiéis àquele
património e nele vêem um importante instrumento e uma
decisiva referência para a construção de um
futuro diferente e melhor.

Na
verdade, as sucessivas revisões da Constituição
não são explicáveis por qualquer obsessão
perfeccionista ou volúpia actualizadora mas pelo propósito
comum à direita e ao PS de, passo a passo, ir mutilando o
texto original da Constituição, retirando protecção
constitucional a algumas importantes conquistas de Abril,
reabilitando retroactivamente as políticas que, em aberta
divergência com a Constituição, realizaram e
realizam nos governos, abrindo as portas para mais graves avanços
da política de direita.

Na
verdade, o que verdadeiramente marca as sucessivas revisões da
Constituição (umas ordinárias, outras
extraordinárias) não são melhoramentos pontuais
positivos (que é sempre possível fazer e para os quais
o PCP, uma vez desencadeados os processos de revisão, muitas
vezes qualificadamente contribuiu) mas sim importantes alterações
de fundo em consonância com os interesses e objectivos da
política de direita. Assim, é o caso da revisão
de 1982 que procedeu à reconfiguração dos órgãos
de poder ditada pelo propósito do PS, do PSD e do CDS de
extinguir o Conselho da Revolução e a intervenção
institucionalizada do MFA na vida política. É o caso da
revisão de 1989 cujo objectivo fundamental foi o de eliminar a
protecção constitucional da Reforma Agrária e
das nacionalizações (abrindo caminho para o nefasto
processo de privatizações que o país tem
conhecido e sofrido). É o caso da revisão de 1992 que
visou proteger e autorizar as graves mutilações da
soberania nacional induzidas pela vinculação ao Tratado
de Maastricht. É o caso da revisão de 1997 que saldou
pela consagração da exigência de um referendo
obrigatório sobre a institucionalização das
regiões administrativas (que entretanto continuam inscritas na
Constituição como uma realidade integrante do poder
local) e pela perversa abertura dada a negativas alterações
nas leis eleitorais, quer para as autarquias locais quer para a
Assembleia da República. É o caso da revisão de
2001 destinada a permitir a adesão ao Tribunal Penal
Internacional e a autorizar as buscas policiais nocturnas. É o
caso da revisão de 2004 que, com o proselitismo próprio
dos subservientes, cuidou de submeter antecipadamente a nossa
Constituição a uma «Constituição
europeia» que se não está morta está mal
enterrada. E, por fim, apesar de tudo o menos grave, e o caso da
revisão de 2005 em que, após piruetas e trapalhadas sem
fim a propósito do regime do referendo sobre temas europeus,
PS e PSD acabaram por consagrar uma solução dúbia
e insatisfatória, recusando pela quarta vez a proposta do PCP
de consagrar plenamente a possibilidade de referendos sobre tratados
nesse âmbito.

Falsidades,
argumentos de conveniência e outros truques

A
campanha política e ideológica que há trinta
anos é movida contra a Constituição não
se deteve nem amainou significativamente com a frenética
sucessão de revisões e tem-se servido invariavelmente
de um vasto conjunto de falsidades, argumentos de pura conveniência
e outros truques.

Nesse
turvo conjunto, por vezes nem há qualquer coerência dado
que as forças de direita (e também o PS) acusam o PCP
de, em 1975-76, ser contrário à elaboração
e entrada em vigor da Constituição mas, ao mesmo tempo,
são elas que mais atacam o conteúdo da Lei Fundamental
do país enquanto o PCP é o seu mais firme defensor.

Em
termos históricos, esta acusação feita ao PCP
serve-se sobretudo daquela que é, sem dúvida, a maior
falsificação política posta a circular depois do
25 de Abril de 1974 e à qual bem se pode aplicar a máxima
de Goebbels de que uma mentira mil vezes repetida acaba por se tornar
verdade.

Referimo-nos
concretamente ao que quase toda a gente tranquilamente chama de
«cerco da Constituinte» – expressão que,
combinada com o sistemático recurso às imagens
televisivas da concentração de trabalhadores da
construção civil em frente ao Palácio de S.
Bento em 12 e 13 de Novembro de 1975, pretende atestar ou certificar
que, de facto, terá havido um grave conflito e antagonismo
entre, de um lado, o movimento popular, os trabalhadores e o PCP e,
do outro, a elaboração da Constituição em
que PS, PSD e CDS supostamente estariam firmemente empenhados.

Nem
os anos que passaram, nem o pessimismo pessoal sobre as hipóteses
de se ganhar esta batalha de esclarecimento e rectificação,
nem o facto de esta monumental falsificação já
ter assumido ares de «verdade oficial», designadamente
com a sua lamentável inclusão numa edição
de luxo da Assembleia da República em que se descreve a
história do Parlamento português, nos podem ou devem
levar a desistir de combater este deliberado atropelo à
verdade e grave entorse à história.

Dirigentes
e responsáveis do PS, do PSD e do CDS, e legiões de
jornalistas e comentadores já repetiram milhares de vezes a
expressão «cerco da Constituinte».

Mas
é exactamente no que sempre omitiram e omitem e no que não
contaram e não contam que está a verdade dos factos e a
verdade do que realmente aconteceu.

Porque
todos sempre omitem que a manifestação-concentração
dos trabalhadores da construção civil só se
realizou em frente ao Palácio de S. Bento porque o Ministro do
Trabalho, desrespeitando compromissos assumidos, encerrou à
última hora as instalações do Ministério
na Praça de Londres.

Porque
todos sempre omitem que não foi a Assembleia Constituinte que
foi «cercada» mas sim o Palácio de S. Bento onde
aquela funcionava mas onde funcionava também o VI Governo
Provisório e o Primeiro-Ministro Pinheiro de Azevedo, as
únicas entidades a quem os trabalhadores dirigiram as suas
reivindicações sócio-laborais.

Porque
todos sempre omitem que, sendo verdade que, num quadro de grande
exasperação e radicalismo, os deputados à
Constituinte, erradamente, também foram impedidos de sair, a
maior e mais decisiva verdade é que aquela imensa concentração
de trabalhadores não apresentou quaisquer reivindicações
à Assembleia Constituinte nem formulou quaisquer exigências
relativamente à elaboração da Constituição.

Porque
todos sempre omitem que, por mais que se dessem ao trabalho ampliar
as fotografias e as imagens televisivas dessa concentração,
jamais encontrariam nas respectivas faixas e palavras de ordem
qualquer referência à Assembleia Constituinte e à
elaboração da Constituição.

De
um outro ângulo, merecem também referência as
constantes linhas de ataque à Constituição seja
com pretexto na sua extensão (296 artigos), seja em desacordo
com as suas fortes componentes programáticas, tudo conveniente
embrulhado em sofismas como a da «neutralização
ideológica» da Constituição e da vantagem
de, para o «Estado mínimo» que alguns desejam,
haver também uma «Constituição mínima».

E
é assim que, ano após ano se vai fazendo toda uma
intensa doutrinação sem que os doutrinadores alguma vez
tenham respondido à sensata objecção de que uma
«Constituição mínima» significaria
necessariamente criar uma maior latitude e margem de arbítrio
para os órgãos de soberania, alguma vez tenham sacudido
a crítica de que eliminar o carácter ideológico
e programático de certas normas da Constituição
é viabilizar e consagrar outra ideologia e outro programa,
alguma vez tenham explicado porque é que os incomoda tanto a
extensão da Constituição portuguesa e não
os incomodou nada a extensão da «Constituição
europeia» que continha 456 artigos, fora os anexos, e que
fervorosamente apoiaram.

Defesa
da Constituição – uma luta que tem de continuar

Pode
haver democratas que hoje tendam a desvalorizar a luta em defesa da
Constituição e pelo seu respeito e cumprimento devido
à evidência de que o facto de termos tido – e ainda
hoje assim ser – uma das Constituições mais avançadas
e progressistas do mundo não poupou o povo e o país –
e, em boa verdade, não estava ao seu alcance garanti-lo –
aos continuados efeitos da política de direita praticada por
sucessivos governos com todo o seu cortejo de desilusões,
injustiças, malfeitorias e retrocessos.

Mas,
a este respeito, é necessário lembrar duas coisas
essenciais: a primeira é que é impossível fazer
a demonstração de que, sem ela, as coisas teriam
corrido melhor, sendo avisado admitir que a ofensiva antidemocrática
e a política contrária aos valores e objectivos
constitucionais teriam chegado ainda mais longe e mais fundo sem esta
Constituição; a segunda é que por alguma razão
os sectores políticos que são porta-vozes e
representantes do grande capital e do neoliberalismo continuam a
ambicionar proceder a uma grande e drástica «limpeza»
na Constituição.

E
não é prudente nem vantajoso ignorar que a eleição
de Cavaco Silva para Presidente da República introduz, ao
menos de forma reflexa, no quadro político nacional alterações
que, entre outros eixos de pressão para o agravamento da
política de direita, não deixarão de favorecer
maiores pressões para futuras revisões constitucionais
que desfigurem ainda mais, em múltiplas vertentes, o regime
democrático consagrado na Constituição.

Escrevendo
isto não estamos obviamente a prever ou vaticinar que, em
Belém, Cavaco Silva vai desencadear iniciativas ou tomar
posições frontalmente inconstitucionais, estamos sim a
chamar a atenção para que a eleição de
Cavaco Silva é um inegável factor de estímulo
para as forças económicas e interesses de classe que
apoiaram a sua candidatura e que essas nunca fizeram as pazes com a
Constituição e, mais cedo do que tarde, trarão
para a cena política toda as opções ideológicas
e todos os projectos que Cavaco Silva zelosamente escondeu e
dissimulou durante a campanha eleitoral.

E
não é necessário ter tirado qualquer curso
superior de bruxaria para saber que, de há muito, o grande
capital e as forças de direita (e sectores que pesam no PS
dirigido por José Sócrates) consideram que a
Constituição é ainda um sério obstáculo
à concretização dos seus projectos em matéria
de direitos dos trabalhadores, de privatização de
serviços públicos e de desmantelamento dos sistemas
públicos de saúde, segurança social e ensino e
talvez mesmo de reconfiguração do sistema político
e dos poderes dos órgãos de soberania.

O
PCP e os comunistas portugueses, que têm legítimo
orgulho na contribuição que deram para a elaboração
da Constituição aprovada em 1976 e para a fundação
do regime democrático, continuarão a inscrever na sua
agenda de luta e nos seus compromissos com o povo português a
defesa activa da Constituição da República,
texto que continua a ser mil vezes mais moderno do que o discurso e
as orientações dominantes na vida política
nacional e que, por isso mesmo, tem futuro e é essencial para
a construção de um Portugal com futuro.

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