Intervenção de Paulo Raimundo, Secretário-Geral do PCP, Inauguração da exposição «Camões, poeta do povo num mundo em mudança»

Camões, poeta do povo num mundo em mudança

Em nome do Partido Comunista Português, saúdo e agradeço a vossa presença nesta  iniciativa que se insere no programa do PCP de comemorações do quinto Centenário do nascimento de Luís de Camões, sob o lema «Camões, poeta do povo num mundo em mudança».

Permitam-me uma saudação particular ao senhor Presidente da Direcção da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Francisco Duarte Mangas, que muito nos honra com a sua presença.

A exposição que agora se dá a conhecer em primeira mão ao povo do Porto constitui uma justa homenagem e  reconhecimento do poeta universal Luís de Camões, a sua vida e obra, os seus admiráveis versos, a sua obra épica e lírica, as suas cartas e o seu teatro.

Uma exposição que sublinha aspectos da sua vida no contexto de um mundo em mudança e com profundas contradições que o poeta e a sua obra reflectem.

De uma história onde Luís de Camões não foi espectador, mas sim, e desde muito jovem, um activo participante, vivendo muitos dos acontecimentos da época, nomeadamente a viagem marítima para a Índia e sobre eles escrevendo as mais belas poesias que a Literatura Portuguesa regista, de que é exemplo essa grande epopeia Os Lusíadas.

Uma obra que se afirma, tal como sublinhou Álvaro Cunhal, como sendo: «a voz do nosso povo, dos lusíadas, a voz da insubmissão ante os privilégios, a voz do progresso social e científico, a voz da nação portuguesa, num elevado sentido humanista».

Esta exposição mostra o percurso deste grande poeta que transporta consigo uma história que conta outras histórias pessoais e colectivas e que coloca o povo como sujeito da história, deste País em pleno século XVI, num tempo em que Portugal conserva uma estrutura social medieval, onde as classes dominantes assentam o seu poder nos privilégios de sangue e no controlo da propriedade fundiária e respectivas rendas. 

Uma sociedade marcada por profundas desigualdades e injustiças sociais, com o povo enfrentando enormes dificuldades, a pobreza e a miséria, em contraste com a opulência das classes privilegiadas.


Uma exposição que mostra também como as navegações portuguesas, por «mares nunca de antes navegados», contribuíram para inaugurar uma nova era no comércio mundial, abrindo caminho à crescente afirmação de um novo sistema social – o capitalismo, na sua fase mercantil – em ruptura com o sistema de servidão feudal dominante na Europa. 

Navegações que obrigaram à observação de novos céus, climas e realidades que não cabiam nas limitadas representações do pensamento escolástico medieval e o contradiziam, conduzindo a importantes avanços em áreas como a geografia, a cartografia e a astronomia, e ao desenvolvimento de uma nova mentalidade e espírito crítico, combatendo o obscurantismo.

Afirma-se um mundo em transformação, cheio de contradições e violências inerentes a todos os sistemas de exploração.  

Transição que esta exposição sublinha, pondo em evidência a realidade trágica da ampliação da escravatura e o posterior tráfico negreiro transatlântico e as guerras de submissão e de conquista, a emergência do sistema colonial, expressão do sistema capitalista nascente.

Uma realidade que veio impor, durante séculos, uma brutal exploração de outros povos, uma exploração que se estendia também ao povo português e a outros povos europeus.

Camões, com o seu génio e a sua vida movimentada, soube captar as contradições e as mudanças do seu tempo.

Foi assim quando exalta as grandezas das conquistas portuguesas, a ousadia dos portugueses que se lançam mais longe «do que prometia a força humana», e quando aponta à Humanidade a aspiração às mais altas realizações o que leva Baco a temer que «Venham deuses a ser, e nós humanos». 

Ao mesmo tempo que não deixa de expressar a consciência crítica sobre a condição humana e a fragilidade da vida, que espelha as contradições e as mudanças sociais, mentais e ideológicas do seu tempo.

Uma transformação em que, como o têm afirmado especialistas da sua obra, a literatura participa também, reinventando a sua estética, formas e géneros e desenvolvendo a língua portuguesa. 

Uma transformação que conta com a participação activa de Camões, captando e expondo as contradições sociais e enaltecendo a experiência material, ao mesmo tempo que desenvolve a língua e a cultura literária.

É na sua obra maior, Os Lusíadas, que a assombrosa cultura humanista do poeta mais se manifesta, aliás como nos revelam os textos desta exposição. 

Parte fundamental da obra de Camões é também a sua lírica, a que esta exposição dá também projecção, evidenciando aquilo que ela traduz como funda reflexão sobre a existência humana. 

Uma exposição que realça, ainda e justamente, o seu teatro e as cartas que até nós chegaram.
É da imensa obra de Luís de Camões que esta exposição nos fala, uma obra que transformou a língua portuguesa, como gerações de literatos o expressam, e dotou o português de uma identidade própria, capaz de dialogar com as complexidades do mundo. 

A obra de Luís de Camões dá expressão aos ventos de mudança que sopram contra a opressão e o obscurantismo. 

Por isso mesmo, foi ao longo do tempo um autor desvalorizado, esquecido ou marginalizado pelos poderes dominantes de diversas épocas. 

E, já no século XX, o fascismo português procurou utilizar a sua figura e a sua obra, e particularmente Os Lusíadas, como instrumento de controlo ideológico, para propagandear o nacionalismo fascista e a sua concepção colonialista.

De facto, «De há longa data comemorado como Dia de Camões – refere a edição do Avante! da segunda quinzena de Junho de 1957 – o 10 de Junho transformou-se, no regime salazarista, em Dia da Raça. 

É como tal que nesse dia se fazem pelo País meia dúzia de palestras aproveitando-se para falar da raça portuguesa, da sua supremacia sobre as raças angolana, moçambicana, indiana, etc., e tentando, como este ano se fez, sem resultado, mobilizar a juventude para apoio destas ideias imperialistas. 

Quer dizer, com base em Camões, os salazaristas louvam o seu colonialismo opressor de povos, castrador do progresso, da civilização, do patriotismo e da independência nestes territórios.»

Mas o Avante!, órgão central do PCP, nesta mesma edição, acrescentava também aquilo que era a concepção deste Partido na luta pela valorização e conhecimento de Camões, como poeta e como homem: 

«Só um regime democrático conseguirá elevar Camões ao seu verdadeiro lugar – o de magnífico cantor das coisas nacionais, das coisas humanas universais, do nosso povo –, esse povo a quem um dia o Portugal livre e independente, pacífico e democrático, tornará acessível a obra imortal de Luís de Camões (...)».

São estes valores presentes na obra de Camões que o Partido Comunista Português sublinha. 

Valores que nortearam o PCP em mais de cem anos de luta ao serviço dos trabalhadores, do povo e da pátria.

Esta pátria, este País do qual não desistimos.

Pátria que não é uma província da União Europeia, que é, isso sim,  uma nação soberana, com quase 900 anos de história, fruto da construção de um povo que, sempre que foi necessário, encontrou a força para superar as dificuldades, como o demonstrou de forma bem viva, exultante e bela o 25 de Abril.

A situação actual exige do povo essa força.

Força para impor um rumo de bem-estar, desenvolvimento, soberania, progresso social, que não é utopia ou quimera, mas sim real possibilidade com uma outra política, no cumprimento dos valores e conquistas de Abril, respeitando a Constituição da República Portuguesa.

Opções que implicam romper com uma política ao serviço dos grupos económicos que acentua as injustiças e as desigualdades, a política dos poderosos levada por diante pelos partidos ao seu serviço, PSD, CDS, Chega e IL, com a cumplicidade e compromisso do PS.

Uma ruptura que exige força e forças que existem, no povo, numa  batalha de extraordinária importância para a qual este povo, o nosso povo, conta e conta sempre com o seu partido, o PCP. 

Como mostra esta exposição é, afinal de contas, a exaltação do povo e da pátria, a defesa da identidade nacional, num mundo de paz, progresso social e cooperação, é o sentido que Camões faz da língua, um contributo, que sublinha a cultura  como valor ao serviço do povo, como factor de identidade nacional, a que Camões deu um impulso universal, que faz dele a maior figura literária da Língua Portuguesa de todos os tempos e genial património da Humanidade. 

Camões que não cala a crítica aos poderosos, à vaidade, à ambição desmedida e à decadência moral, ao poder do dinheiro, ao esmagamento dos mais fracos e do povo, e à crueldade da guerra e ao seu poder destruidor. 

Camões que denuncia as desigualdades e injustiças e que defende mesmo que todo o trabalho deve ser pago, incluindo o «suor da servil gente». 

É este Camões que esta exposição aqui evoca, e que a juventude tem o direito a conhecer e compreender, esse notável poeta, o seu espírito socialmente atento e inconformado com as injustiças e desigualdades.

São estas as razões que levam o Partido Comunista Português a desenvolver, até ao final de 2025, um vasto programa de comemorações deste quinto Centenário do nascimento de Camões.

Cá estamos para contribuir para o seu conhecimento e apropriação pelos portugueses, designadamente pelos trabalhadores, em coerência com a concepção de democracia cultural que defendemos e pela qual lutamos.

O direito à cultura ocupa um lugar central nos objectivos do PCP que o considera uma das quatro vertentes fundamentais de uma democracia avançada inspirada nos valores de Abril. 

Uma democracia simultaneamente política, económica, social e cultural, que assuma a educação, a ciência e a cultura como vectores estratégicos para o desenvolvimento integrado do nosso País. 

Uma democracia que promova o intercâmbio com outros povos da Europa e do mundo, a abertura aos grandes valores da cultura da humanidade e a sua apropriação criadora; que estimule o combate à mercantilização e à colonização cultural; que fomente a promoção internacional da cultura e da língua portuguesas, em estreita cooperação com os outros países que a usam.

Numa pátria independente e soberana com uma política de paz, amizade e cooperação com todos os povos.

A valorização da sua obra inserida no seu tempo, no processo histórico de luta contra a opressão e a exploração, pelo progresso social – projectando-os na actualidade e afirmando o património cultural português, a língua portuguesa, a cultura e a arte, também nesse quadro.

É com essa perspectiva que apelamos a que dêem o seu contributo insubstituível para levar a obra de Luís de Camões até ao povo, é este também o desafio que está colocado aos democratas. 

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