Intervenção de Manuel Loff na Assembleia de República, Reunião Plenária

É na desigualdade que se promove o abuso

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A prática do assédio sexual, com esse nome ou outro, em contextos de relações de trabalho tem muito de sistémico. Enquanto exercício de um poder que intimida sobretudo as mulheres (e secundariamente homens) que estão sujeitas a relações hierárquicas e, em geral, de poder, o que se tem designado como assédio sexual materializa-se em várias formas de coação sexual, que podem passar por ataques à autodeterminação sexual ou aquilo que no Código Penal se tem designado como “importunação sexual”. Os estudos e os dados do quotidiano demonstram que uma proporção muito significativa de mulheres foi em algum momento das suas vidas (ou em vários, naturalmente) vítima de assédio sexual, num contexto, portanto, que tem uma fortíssima dimensão de género e de cultura de dominação patriarcal que está muito longe de estar erradicada da nossa sociedade.

Na esfera académica, estes comportamentos revestem uma natureza própria, é certo, mas num contexto que, contudo, não difere muito do de todas as relações de poder marcadas por lógicas de desigualdade social e de identidade. O abuso de poder exercido por quem detém uma superioridade legal e/ou institucional sobre as vítimas tendeu a ser comum no contexto de instituições como as de Ensino Superior que permanecem fortemente hierarquizadas e com uma cultura institucional tendencialmente corporativa que, até há ainda poucos anos, assegurava um ambiente mais ou menos difuso de impunidade. Se as relações de trabalho reproduzem nestas instituições o mesmo contexto de qualquer outra instituição ou empresa pública ou privada, há dimensões específicas que se prendem com relações de dependência relativa entre, de um lado, professores, avaliadores, supervisores científicos ou gestores de projeto, e, por outro, estudantes e investigadores cujo sucesso escolar, obtenção de bolsa e/ou contrato de investigação depende do respeito efetivo pela sua identidade, dignidade e direitos.

Os projetos hoje em discussão, relativos ao assédio sexual em contexto académico, propõem, por um lado, esquemas mais ou menos formais que facilitem a denúncia de práticas desta natureza – num quadro em que, nas IES como em quaisquer outros locais de trabalho, a grande maioria das vítimas se sente enormemente intimidada – e a criação de códigos de conduta que ajudem a prevenir e que prevejam sanções contra o assédio. É nesta dimensão formal e institucional que, sem rejeitar as iniciativas propostas, temos dúvidas muito razoáveis sobre a sua eficácia. É às instituições onde trabalham os perpetradores que se pede que elaborem, adotem e apliquem estes mesmos códigos de conduta. Falamos, insisto, nas mesmas instituições onde frequentemente alguns dos perpetradores se destacaram ou destacam como gestores e dirigentes, criando teias de relações profissionais que lhes asseguraram prestígio social e profissional, sem contar com poder institucional. A lógica que acabo de enunciar ficou bem visível na resposta que, a 15 de abril, a ministra Elvira Fortunato enunciou para estes problemas: o de deverem “ser resolvidos com base na própria autonomia das instituições de ensino superior e dos seus órgãos [próprios]”. O que significará isto num quadro de desdemocratização generalizada das instituições educativas, as universidades e os politécnicos graças ao RJIES e, no quadro deste, à criação espúria de fundações de direito privado onde antes havia instituições públicas? É a órgãos de onde estão praticamente ausentes tanto estudantes e investigadores como a maioria de professores precários que hoje trabalham no Ensino Superior que se pede que definam códigos de conduta e exerçam o poder disciplinar.

As IES são, a todos os títulos (enquanto escolas e centros de investigação científica e tecnológica), locais de trabalho, ainda que sejam simultaneamente espaços de formação educacional e formativa, nos quais, ainda que devam ser espaços de emancipação e empoderamento, se reproduzem, apesar da plena maioridade cívica de todos os membros da comunidade académica, relações de poder que tão bem conhecemos na história das instituições educativas, bem como a de todas aquelas em que se desenvolvem as profissões estruturadas em carreiras profissionais altamente hierarquizadas. Sem uma efetiva democratização das relações de trabalho e das relações sociais em todos os âmbitos da vida coletiva – porque hoje é destas que falamos – será sempre difícil desenraizar o assédio - sexual ou moral, já agora – das nossas vidas. É na desigualdade que medra o abuso; é a precariedade que promove a impunidade.

Quanto aos dois projetos de criação do crime específico de “assédio sexual”, embora o nosso Código Penal não o consagre, recordam José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro que ele “(…) prevê, um conjunto de crimes, que variam consoante a gravidade do assédio, como seja a coação sexual (art. 163.º, n.º 1 do Código Penal), a ameaça à autodeterminação sexual (art. 153.º do Código Penal, p. ex. no envio de mensagens de cariz sexual), a importunação sexual (art. 170.º do Código Penal), as injúrias, por palavras, gestos, imagens, ou qualquer meio de expressão, que atenta contra a honra e consideração da vítima (arts. 181.º e 182.º do Código Penal)”, os atos reiterados de perseguição ou assédio de outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a prejudicar a sua liberdade de determinação (art.º 154.º-A).

Como sustenta o CSM no seu parecer sobre o projeto concreto do BE, “As únicas razões que justificariam esta autonomização do crime de «assédio sexual qualificado» através de exemplos-padrão radicariam no aumento da moldura abstrata da pena e na atribuição de natureza pública ao crime, não merecendo, salvo melhor opinião, qualquer delas, concordância.”

Não estar de acordo com a tipificação do crime de assédio sexual no Código Penal, isto é, a sua autonomização enquanto tal, nada tem a ver, da nossa parte, com algum tipo de tibieza ou reacionarismo moral. A história do PCP comprova-o bem. O que achamos é que é sobretudo uma lógica de não consideração das condições materiais concretas em que se desenvolvem as relações de poder e hierarquia que nos acaba por empurrar para respostas penais às questões sociais. Não creio sequer que seja essa a postura do BE. Mas não é pelo menos a nossa.

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