Intervenção de António Filipe na Assembleia de República, Reunião Plenária

Combater a corrupção e a criminalidade, defender o regime democrático

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Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhores membros do Governo,

Discutimos nestas duas horas, vinte e cinco iniciativas legislativas e parlamentares sobre o combate à corrupção. Disponho de 21 segundos e seis décimas para cada uma delas. Desculpar-me-ão, pois, que não me refira a nenhuma em particular, excetuando, obviamente, as iniciativas do PCP que me compete apresentar.

Para o PCP, o problema do combate à corrupção como elemento fundamental para a defesa da democracia e do Estado de Direito Democrático e a convicção da necessidade de aperfeiçoar os mecanismos legislativos existentes, e sobretudo de dotar as autoridades judiciárias e a investigação criminal com os meios necessários para garantir a eficácia das suas missões, não é de hoje, nem de ontem.

Para o PCP, a convicção da necessidade de adotar medidas eficazes de combate à corrupção não nasceu com um despacho de pronúncia de 2021, nem com ondas mediáticas, nem com a gritaria de alguns demagogos.

Oiçam, senhores deputados, o que vou citar em seguida:

“Para o PCP, a situação que se vive em Portugal em matéria de corrupção e particularmente de ausência de investigação e de responsabilização dos autores de crimes dessa natureza, é absolutamente inaceitável.

Quando, como acontece em Portugal, a ação do Governo conduz à negação dos meios indispensáveis à investigação de crimes de corrupção e fraudes, designadamente das que se referem a desvios de fundos comunitários, o que está a ser posto em causa é o funcionamento elementar do Estado de Direito e são as bases fundamentais do regime democrático que estão a ser corroídas.

Não pode merecer a confiança dos cidadãos um Governo que nega ao Ministério Público e à Polícia Judiciária os meios indispensáveis para a investigação dos crimes de corrupção e fraudes, que se empenha em minimizar essa situação e em ocultar perante a opinião pública a dimensão e gravidade do fenómeno da corrupção.”

Que Governo era este Senhores Deputados?

Não era o atual, nem o anterior, nem o que os antecedeu. Era o Governo PSD de Cavaco Silva e estávamos em 26 de outubro de 1994, num debate de urgência sobre corrupção agendado pelo Grupo Parlamentar do PCP, motivado pelo Relatório de uma inspeção feita então pelo Ministério Público, que dava conta de 186 processos de fraudes com fundos comunitários que permaneciam há vários anos na Polícia Judiciária sem uma única diligência de investigação.

12 anos e cinco Governos depois, em julho de 2006, o PCP agendou potestativamente um novo debate de urgência a propósito de um Relatório do GRECO particularmente severo para Portugal devido à ausência de medidas eficazes de combate ao crime económico em Portugal.

Os relatores concluíram que as investigações sobre esse tipo de crimes foram muitas vezes abandonadas por falta de recursos ou atrasadas devido a falta de comunicação adequada entre entidades públicas e privadas. Por outro lado, a investigação sobre os bens suspeitos de terem sido ilicitamente obtidos, não foi feita de forma sistemática por falta de recursos e por não ser considerada uma prioridade.

A iniciativa do PCP não se deveu a qualquer intuito de surfar as manchetes que na altura chamavam de arrasador o relatório do GRECO, mas à consciência de que a corrupção e, frequentemente, a sua impunidade, minam os fundamentos básicos e a credibilidade do Estado de direito democrático, abrindo o caminho a falsas generalizações e a demagogos que tudo fazem para associar a corrupção à democracia, pregando uma falsa moral que se desmentiria a si própria no dia em que chegassem ao poder.

Poucos meses após esse debate, o PCP apresentou pela primeira vez nesta Assembleia, em 15 de fevereiro de 2007, o projeto de lei 360/X para a criminalização do enriquecimento ilícito, rejeitado com os votos contra do PS e do PSD. O chamado “pacote sobre a corrupção” então aprovado, apesar dos 14 projetos de lei apresentados, não passou de uma oportunidade perdida.

Em abril de 2009 o PCP insistiu com o projeto 726/X a que se juntou o projeto 747/X do PSD, aquele que anteontem o Sr. Deputado Carlos Peixoto dizia ter sido o primeiro. A maioria absoluta do PS rejeitou ambos os projetos.

No final de 2009, o PCP e o BE insistiram em iniciativas sobre esta matéria, rejeitadas então, pela conjugação de votos do PS e do CDS.

Só em julho de 2010 a Assembleia da República aprovou um pacote legislativo relevante em matéria de combate à corrupção, na sequência de um sério trabalho de estudo, de debate, de auscultação e de acolhimento de opiniões das personalidades mais reputadas no domínio do combate à corrupção e à criminalidade económica e financeira.

Foi nessa altura aprovada a importante Resolução n.º 91/2010 que recomendou ao Governo a tomada de medidas destinadas ao reforço da prevenção e do combate à corrupção, em grande parte ainda por cumprir, e teve lugar um aperfeiçoamento legislativo relevante, nomeadamente com a criação do tipo de crime de recebimento indevido de vantagem, que nos permite dizer que o maior problema do combate à corrupção em Portugal não é a falta de leis mas acima de tudo a falta de meios e as disfuncionalidades em aspetos relevantes do funcionamento da Justiça que importa evidentemente corrigir.

A questão do enriquecimento ilícito, ou injustificado, ficou, no entanto, por legislar, apesar das iniciativas do PCP, do BE e do PSD.
Na XII Legislatura, como se sabe, o texto aprovado com base na iniciativa do PSD e do CDS, e que o PCP votou favoravelmente, foi declarado inconstitucional.
O PSD e o CDS não aceitaram expurgar as inconstitucionalidades e em 2015, rejeitando iniciativas do PCP e do BE que procuravam resolver os problemas de inconstitucionalidade, decidiram aprovar um texto deliberada e grosseiramente inconstitucional levando a nova declaração de inconstitucionalidade inteiramente desejada pelos proponentes. Foi contra essa fraude que o PCP votou.

Ao contrário do que o Sr. Deputado Carlos Peixoto aqui afirmou anteontem, o voto contra do PCP não teve nada a ver com geringonças nem meias geringonças pela simples razão de que em março de 2015 o PSD e o CDS ainda estavam no Governo. Só cairiam nas eleições de outubro.

O que o PCP fez foi recusar-se a pactuar com uma fraude política: fingir que se pretendia criminalizar o enriquecimento ilícito quando se pretendia tão simplesmente forçar uma declaração de inconstitucionalidade. Uma fraude um tanto semelhante àquela a que aqui assistimos anteontem, só que desta vez em modo mais grotesco e histriónico.

Neste processo legislativo, o PCP reafirma a sua convicção de que a criação de um tipo criminal de enriquecimento injustificado poderá ser um elemento de grande importância para a prevenção e deteção de crimes de corrupção e que é possível encontrar uma solução que não seja violadora de princípios e de normas constitucionais. Estamos neste debate de espírito aberto, com a nossa proposta, mas com abertura suficiente para acolher outras soluções que possam constituir um avanço no sentido que consideramos necessário.

Há porém uma outra questão que não pode ficar na sombra quando se debate a corrupção, que é o enorme escândalo que constitui o recurso à arbitragem, e sobretudo à arbitragem ad-hoc, quando se trata de dirimir litígios contratuais de muitos milhões de euros envolvendo o Estado e interesses privados.

Não é tolerável que litígios emergentes de parcerias público-privadas ou de contratos públicos envolvendo quantias milionárias em que os interesses dos privados são cuidadosamente acautelados, sejam decididos por árbitros que não se sabe quem são, nem com que critério são nomeados, nem quanto ganham, nem que interesses defendem nas suas outras atividades profissionais, através de decisões cujos fundamentos nem são sequer conhecidos. A única coisa que se sabe é que o Estado, ou seja, os contribuintes e o interesse público, ficam sempre a perder e são condenados em vultuosas indemnizações aos grupos económicos privados envolvidos, por decisões de que nem sequer cabe recurso para os únicos tribunais dignos desse nome.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Muito haveria a dizer sobre as várias iniciativas hoje em discussão. Sobre as do Governo, importa dizer que acolhemos favoravelmente algumas propostas, mas que temos reservas muito sérias quanto a outras, nomeadamente as que dizem respeito à introdução de mecanismos de negociação em processo penal, em prejuízo da aplicação de um princípio basilar do estado de Direito que é o princípio da legalidade.

Mas estamos neste debate com espírito aberto e construtivo. Sem demagogias, sem cedência a populismos justiceiros e sem alinhar na gritaria de que Portugal é um país de corruptos.

A corrupção deve ser combatida na base dos factos e não na base de perceções fabricadas nas redes sociais, do sensacionalismo mediático que as reproduz ou de uma ação política preocupada com a espuma dos dias. As leis criminais são demasiado sérias para serem transformadas em folhetos de propaganda de quem pretende transformar o discurso sobre a Justiça em venda de banha da cobra.

Para isso não contam com o PCP. Para debater com seriedade melhores soluções para prevenir e combater a corrupção e a criminalidade económica e financeira, decerto poderão contar. Hoje como sempre.

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