Senhoras e senhores:
O tema proposto para esta palestra – “o comunismo hoje e amanhã” – no ciclo promovido pela Câmara Municipal, cujo convite agradeço, sugere a necessidade de, perante as profundas alterações da situação mundial, nomeadamente a derrocada da URSS e de outros países do leste da Europa, responder a legítimas interrogações que certamente muitos de vós colocam ao reflectir sobre a questão: afinal o que é ser comunista hoje? Existem de facto hoje objectivos para os comunistas? Se existem quais são?
Nesta palestra procurarei dar resposta a estas interrogações. Desde já adianto em síntese, como ideia introdutória, que a história, os factos, a vida mostram e justificam que afinal o comunismo continua a responder às necessidades e mais profundas aspirações dos trabalhadores e dos povos.
Procurarei, nas breves palavras que uma palestra consente justificar esta afirmação.
A apreciação certa da época em que vivemos
Para quem queira ajuizar com segurança do significado dos grandes acontecimentos tanto à escala mundial, como à escala nacional, e das perspectivas da evolução da sociedade, torna-se necessária uma apreciação segura da época actual.
Neste findar do século XX, multiplicam-se as interpretações e caracterizações do que o século significou e significará na história da humanidade. Considerando a derrocada da URSS e dos regimes do leste da Europa, a mudança daí resultante da correlação mundial de forças e a nova pretensão de restabelecimento do domínio, exploração e hegemonia mundial pelo imperialismo, espalha-se a ideia de que o projecto comunista fracassou, de que “o comunismo morreu”, de que “o comunismo não tem futuro” e de que afinal o capitalismo mostrou ser um sistema capaz de resolver os problemas da humanidade, um sistema superior e melhor que um sistema socialista.
Temos opinião diferente.
Nem o projecto comunista de uma sociedade nova e melhor, deixou de ser válido, nem o capitalismo se mostrou ou mostra capaz de resolver os grandes problemas da humanidade e se pode considerar um sistema definitivo.
O capitalismo sofreu, é certo, alterações ao longo do século XX nas suas estruturas económicas e sociais. Desenvolveram-se a internacionalização dos processos económicos e sistemas de cooperação e integração. As forças produtivas receberam poderoso impulso com a revolução científico-técnica.
Mas o capitalismo manteve e mantém as suas características essenciais, como sistema de exploração, opressão e agressão, marcado por injustiças, desigualdades e flagelos sociais. O capitalismo é um sistema em que há classes que exploram e classes que são exploradas, classes que dominam e outras que são dominadas, classes que governam em seu proveito e outras que para seu mal são governadas, classes que constituem uma minoria da população que concentra a riqueza e a usufrui em excesso e classes que constituem a maioria esmagadora da população que vive com graves carências e que, em vastíssimos sectores, vive numa zona social sombria de pobreza e miséria.
Internacionalmente, é um sistema em que os países mais desenvolvidos, mais ricos e mais fortes exploram, dominam, subjugam e oprimem pelas mais variadas formas os países mais atrasados, mais pobres e mais fracos, mantendo e criando no mundo zonas imensas de fome que afecta e mata milhões de seres humanos.
Historicamente o capitalismo no século XX está marcado por duas guerras mundiais que causaram muitas dezenas de milhões de mortos, por guerras regionais, por intervenções e agressões militares, por actos de terrorismo de Estado, por ingerências e imposições a outros povos da vontade dos mais poderosos.
Só quem esteja directamente interessado num tal sistema, ou quem não pense ou não queira pensar no que ele é e significa, é que pode considerar o capitalismo como um sistema que corresponde às necessidades, aos interesses, às reais aspirações dos povos.
Continuam assim a ser justas, justificadas e actuais, a indignação e a luta contra os males do capitalismo. Continua a ter validade o ideal de uma sociedade melhor, na qual sejam eliminados a exploração, as desigualdades, as injustiças e os grandes flagelos sociais e seja dada satisfação às necessidades, interesses e mais profundas aspirações dos trabalhadores e dos povos.
Neste findar do século XX, a experiência do século mostra que há razões para que se não faça marcha atrás na história, se não limite a mais justa aspiração humana a um sonho sem esperança ou a uma utopia, mas que se insista na luta por um ideal que precisamente neste século XX começou a ser concretizado e realizado – o ideal comunista.
Ao ajuizarmos dos acontecimentos ocorridos neste século e as revoluções que tiveram lugar, muitas pessoas não reflectem que com a revolução russa de 1917 e a criação da URSS, o homem se lançou à tarefa pela primeira vez em muitos milhares de anos de história de construir uma nova sociedade sem classes exploradas nem classes exploradoras, uma sociedade de seres humanos livres e iguais.
Assiste-se actualmente a um esforço febril para rescrever a história. Procuram apagar ou ocultar os males insanáveis do capitalismo. E apagar, adulterar e caluniar tudo quanto a luta dos trabalhadores e dos povos trouxe de positivo para a humanidade.
É certo que o empreendimento da construção da nova sociedade – a sociedade socialista – se revelou mais difícil, mais complexa, mais irregular, mais acidentada e mais demorada do que nós, os comunistas, previmos e anunciámos.
Absolutizaram-se como leis objectivas de curso imparável leis relativas à evolução económica e social num determinado período histórico. Absolutizaram-se leis tendenciais relativas ao sistema capitalista que, sendo tendenciais, podiam ser contidas, e de facto de certa forma o foram, por factores que as contraditavam. Acreditou-se na irreversibilidade do socialismo. Considerou-se quase como fatal que a competição económica entre os dois sistemas se resolveria a curto prazo a favor do socialismo.
Subestimaram-se factores subjectivos, todas as consequências de erros graves, a possibilidade de a partir do próprio poder político após a revolução se verificar um afastamento dos ideais comunistas, conduzindo à mudança efectiva do exercício popular do poder político, à degeneração da democracia socialista, à estagnação e ulterior bloqueio das forças produtivas, à oposição do povo ao poder e como resultado, à degeneração e desagregação do sistema socioeconómico socialista.
Mau grado essas incorrectas apreciações e previsões, o facto é que o século XX ficará marcado na história precisamente por esse empreendimento gigantesco de transformação social que foi a concretização da sociedade socialista. Pelas suas grandes realizações e conquistas. Pela transformação radical do bem estar dos povos. Por importantes direitos alcançados pelos trabalhadores. Pelo ruir do sistema colonial e a conquista da independência por povos secularmente dominados, explorados e colonizados por Estados estrangeiros. O que marca o século XX na história não é qualquer superioridade do capitalismo, mas as profundas e revolucionárias transformações sociais verificadas pela luta dos trabalhadores e dos povos do mundo.
O século XX não foi o século do “fim do comunismo” (como para aí apregoam), mas sim o século do “princípio do comunismo” como concretização e edificação de uma nova sociedade para o bem do ser humano.
A ortodoxia e a resposta criativa à realidade
Está condenado a ser ultrapassado pela história qualquer projecto político que se mantenha fixo, imóvel, incapaz de dar resposta às novas situações, aos novos fenómenos, aos novos acontecimentos.
A vida social está em permanente movimento. Num período histórico determinado, um projecto político que mantenha coerentemente linhas e objectivos fundamentais, para que seja válido não pode em caso algum fechar os olhos às realidades, nem cuidar que a teoria e as soluções práticas encerram verdades absolutas imodificáveis. Nós, os marxistas, consideramos que na sociedade como na natureza, existem nas situações e nos fenómenos relações objectivas de causa e efeito. Somos deterministas. Mas não somos fatalistas. A dialéctica que informa os nossos princípios teóricos aborda e explica a realidade em movimento, é crítica por natureza e implica que se recusem verdades absolutas, incluindo na formulação de “leis da dialéctica”.
É uma acusação maldosa acusar o PCP de ser um partido ortodoxo. Ortodoxia é imobilidade e cristalização de pensamento, fé em vez de convicção política, incapacidade de reflectir, de analisar objectivamente e de acompanhar criativamente na elaboração teórica as mudanças das realidades objectivas.
Por isso a reflexão actual do nosso Partido não é nem poderia ser a mesma de quando há 72 anos o PCP foi criado. Aprendemos com a vida, com os factos, com as realidades, com as experiências.
Corrigimos e enriquecemos as nossas análises. Estudamos as mudanças em todos os aspectos da sociedade e da vida da humanidade.
Este posicionamento explica e significa que o ideal comunista, o nosso projecto de sociedade socialista para Portugal, não é hoje precisamente igual ao que era quando o nosso Partido foi criado.
Durante muitos anos, a sociedade socialista tal como a apontámos como objectivo, foi definida (e foi correcto tê-la definido assim) segundo duas referências fundamentais: as definições genéricas, por vezes circunstanciais, de Marx, Engels e Lénine e as soluções e realizações do primeiro Estado socialista – a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Os processos e transformações revolucionárias ao longo do século, o empreendimento da construção do socialismo nas condições económicas, sociais e políticas mais variadas em países de todos os continentes, a diversidade das vitórias e êxitos e as derrotas e fracassos e nomeadamente a derrocada da URSS e dos países do leste da Europa, indicaram porém que não há nem pode haver um modelo universal de socialismo, que a diferença de situações implica a diferença de soluções, e que na construção da nova sociedade há que discernir os elementos que a impulsionam e asseguram e factores negativos que a contradigam e possam conduzir à sua própria destruição.
Avançando nos caminhos desconhecidos da construção da sociedade nova não só é indispensável descobrir as soluções certas, mas é também indispensável a prevenção e atenção à surpresa e ao inesperado e a preparação para se estar em condições de dar com criatividade respostas adequadas às novas situações.
A teoria e a revolução
Se consideramos um século XX como o século de grandes conquistas e mudanças sociais revolucionárias, coloca-se a questão de saber a que forças sociais e políticas se devem essas conquistas e mudanças.
As grandes transformações progressistas realizadas no mundo ao longo do século XX estão ligadas a três elementos principais de que são inseparáveis: a luta dos trabalhadores, designadamente da classe operária, das massas populares, dos povos submetidos; a acção de forças revolucionárias orientadoras e mobilizadoras da energia popular transformadora, com papel preponderante dos partidos comunistas; uma teoria revolucionária, o marxismo-leninismo, que ganhando as massas se tornou uma força material e que permitiu não apenas explicar o mundo mas ser um guia para a acção transformadora.
A reflexão sobre estes elementos e o seu papel comportam numerosos aspectos que, pela sua amplitude e complexidade não cabem no âmbito de uma curta palestra. Permiti que aflore apenas algumas questões relativas à teoria.
Primeira observação.
Considerando a influência e a força da teoria revolucionária no século XX é infundada a tentativa de opor o pensamento de Marx ao pensamento de Lénine e vice-versa. As teorias de Marx foram desenvolvidas por Lénine a partir da análise do desenvolvimento do capitalismo, das transformações económicas e sociais, dos novos conhecimentos científicos, da experiência da luta revolucionária.
É sintomático que aqueles que começam por abandonar Lénine, acabam por abandonar Marx.
O abandono do leninismo por alguns partidos comunistas conduzi-os a converterem-se em partidos social-democratas ou social-democratizantes. O abandono do pensamento de Marx por partidos socialistas e social-democratas que durante muitos anos se afirmaram de inspiração ideológica marxista conduzi-os a afastarem-se totalmente de posições socialistas.
Segunda observação.
Com Marx a utopia converteu-se em pensamento político e este em acção revolucionária. Com Lénine o projecto político e a acção revolucionária converteram-se na revolução vitoriosa, na realização concreta do objectivo de construção da sociedade nova – a sociedade socialista, considerada como primeira fase do comunismo.
Silenciar Lénine é silenciar a revolução socialista, a grande e histórica realização da Revolução de Outubro e o poderoso e determinante impulso que a revolução socialista e a teoria revolucionária deram à luta emancipadora dos trabalhadores e dos povos de todo o mundo ao longo do século XX.
Nós, os comunistas portugueses, consideramos como elemento vivo do nosso património ideológico, da nossa experiência política, dos nossos objectivos, os ensinamentos históricos do pensamento e da acção tanto de Marx como de Lénine. O marxismo-leninismo, teoria dialéctica que é, mantém a validade e actualidade dos seus princípios e valores essenciais.
Terceira observação.
Ao mesmo tempo que confirmamos a teoria revolucionária de actualidade neste findar do século, sublinhamos que a teoria não pode ser compreendida como um todo de princípios tidos como verdades absolutas e imutáveis. A teoria nasce da vida e deve responder criativamente à vida.
Esta afirmação exige que se abordem em termos históricos com abertura e serenidade algumas grandes incompreensões.
Durante muitos anos, verificou-se na generalidade dos partidos comunistas uma cristalização e absolutização de princípios teóricos, que no momento dado corresponderam com rigor a uma situação determinada, mas que deixaram de corresponder em novas ou noutras situações.
Foi frequente no movimento comunista, procurar-se resposta às situações, não através da análise respectiva e do correspondente aprofundamento e enriquecimento teórico, mas através da transcrição de textos de Marx e de Lénine, de contestável validade nas novas condições.
Na definição da perspectiva da revolução socialista pesou sem dúvida uma visão simplista dos processos económicos, sociais e políticos e a sobreposição de análises, princípios e ideias cristalizadas às mudanças por vezes profundas da realidade.
Assim, por exemplo, partindo da justa conclusão de que num estádio avançado do desenvolvimento do capitalismo, a apropriação pelos capitalistas dos meios de produção, tendo como corolário a exploração dos trabalhadores não só contraria como impede o desenvolvimento das forças produtivas, concluiu-se (e correctamente) que tais contradições seriam superadas pelo modo de produção socialista, ou seja, pela propriedade social dos principais meios de produção e pela abolição da exploração capitalista, abrindo caminho ao rápido e impetuoso desenvolvimento das forças produtivas.
As revoluções socialistas que se verificaram no mundo mostraram que essa conclusão era justa. A Revolução de Outubro de 1917 transformou a atrasada Rússia semi-feudal na segunda potência económica do mundo num tempo historicamente curto. Em praticamente todos os países onde se verificaram revoluções socialistas foi impressionante o desenvolvimento das forças produtivas nomeadamente na indústria e agricultura.
Tanto os princípios teóricos como a prática tornaram legítima a conclusão de que, na competição económica entre o capitalismo e o socialismo, agravando-se a crise económica do capitalismo e prosseguindo o ritmo do desenvolvimento económico dos países socialistas, estes ultrapassariam o capitalismo num curto período histórico, o que significaria a vitória do modo de produção socialista em termos mundiais, a aproximação da mudança histórica do capitalismo pelo socialismo.
A questão que se coloca hoje à nossa reflexão é o saber quais as razões por que a partir de determinado momento tal evolução não prosseguiu. Quais as razões por que afrouxou o ritmo do desenvolvimento económico e se entrou numa fase de estagnação nos países socialistas, nomeadamente na União Soviética. Quais as razões por que o capitalismo nos países mais desenvolvidos teve capacidade de um novo e poderoso arranque das forças produtivas, nomeadamente com as novas conquistas científicas e as novas e revolucionárias realizações tecnológicas.
A realidade mostra que se considerou de forma esquemática a evolução das sociedades, que se atribuiu um valor absolutizado a leis objectivas do desenvolvimento. Mostra por outro lado, que na construção da nova sociedade se abandonaram princípios, orientações e soluções integrantes do ideal comunista, que, se tivessem sido assegurados e aplicados estamos convictos de que teriam confirmado o rigor da referida conclusão teórica.
Pela nossa parte reflectimos sobre estas lições e tiramos as necessárias consequências na investigação, elaboração, correcção e aprofundamento da teoria e na definição mais rigorosa do projecto de uma sociedade socialista para Portugal.
O fracasso de um “modelo” que se afastou do ideal comunista
Esta forma de o PCP compreender a teoria e a prática revolucionária vem de há muitos anos. Tornou-se particularmente imperativa com a derrocada da URSS e do regime existente noutros países do leste da Europa. Estes acontecimentos foram festivamente anunciados pelos propagandistas como prova de que a revolução socialista tinha sido um logro histórico, o fracasso histórico do ideal comunista. Anunciaram em consequência, “a morte do comunismo” e daí logo concluíram e anunciaram alguns a inevitabilidade e próxima morte dos partidos comunistas.
Tais ideias, profusamente espalhadas, suscitam algumas considerações fundamentais.
Em primeiro lugar, tanto a Revolução de 1917 na Rússia, a formação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e a construção da sociedade nova, como outras revoluções de carácter socialista que se verificaram no leste da Europa, na Ásia, na América e com objectivos mais limitados em África, foram assinaladas por extraordinárias realizações, transformações e conquistas progressistas de carácter económico, social, cultural e político que, como atrás foi referido, transformaram no século XX a face do mundo.
Em segundo lugar, o que fracassou não foi o ideal comunista, mas um “modelo” de sociedade que em aspectos fundamentais se afastou de tal ideal. Não foram apenas “erros humanos”, embora também o tenha havido, mas uma concepção, uma prática política e um exercício do poder que de facto se afastaram do ideal comunista.
Afastaram-se no que respeita à questão central do poder e do seu exercício, substituindo-se o poder dos trabalhadores, o poder popular, por um poder fortemente centralizado cada vez mais distante das aspirações, participação, intervenção e vontade do povo.
Afastaram-se no que respeita à democracia sempre justamente proclamada como elemento e valor integrante da sociedade socialista, mas que depois de uma fase revolucionária sofreu na sua vertente política graves limitações de carácter repressivo e infracções à legalidade.
Afastaram-se no que respeita às estruturas socioeconómicas e ao desenvolvimento económico com a centralização e estatização excessivas, a eliminação de outras formas de propriedade e de gestão, o desprezo pelo papel do mercado e a desincentivação do empenhamento e produtividade dos trabalhadores.
Afastaram-se no que respeita à natureza e ao papel do partido comunista, em que se verificou igualmente uma direcção altamente centralizada e burocratizada, o distanciamento progressivo dos trabalhadores e das massas populares, a fusão e confusão das funções do partido e do Estado e a imposição administrativa de decisões tanto no partido como no Estado.
Afastaram-se no que respeita à teoria, por um lado pela cristalização e dogmatização do marxismo-leninismo, por outro lado pela revisão e abandono de princípios essenciais – num caso e noutro pela sua imposição como ideologia de Estado.
Estas considerações são de particular importância não apenas para a análise histórica dos acontecimentos, mas como experiência que se impõe assimilar para a definição mais rigorosa dos objectivos futuros dos comunistas para a construção do socialismo.
Em terceiro lugar, uma tão grave situação exigia não apenas a correcção de erros pontuais, mas mudança radical nas orientações e uma real reestruturação da sociedade no plano económico, social e político. Consolidando as grandes conquistas revolucionárias, restabelecendo o poder político do povo, instaurando efectivamente a democracia no Estado, no partido e na sociedade, superando a estagnação, aproveitando as potencialidades do sistema sócio-económico muito longe de estarem esgotadas, – impunha-se promover a renovação criativa e o reforço da sociedade socialista.
Ao anunciar-se a “perestroika” na União Soviética esses objectivos foram apontados como objectivos fundamentais e isso explica a posição favorável e a atitude solidária que o PCP então adoptou para com o PCUS. Explica também as reservas que desde a primeira hora adiantámos em relação à atitude negativista relativamente ao passado, a novas formulações ideológicas e principalmente às concepções, objectivos, forças e processos contra-revolucionários, visando a destruição do socialismo e a restauração do capitalismo que logo começaram a desenvolver-se à sombra da “perestroika” e que adquiriram extrema gravidade por partirem das mais altas instâncias do poder do Estado e do partido, de dirigentes que traíram os seus compromissos e deveres.
A evolução da situação na URSS e países do leste da Europa comprovaram infelizmente as reservas e atitudes do PCP relativamente ao processo em curso da “perestroika”. A derrocada e liquidação da URSS e a catastrófica situação que foi criada nesses países, a mudança da correlação de forças a nível mundial, e o aproveitamento da nova situação pelo imperialismo para tentar de novo impor a sua hegemonia mundial, contra a luta libertadora dos trabalhadores e dos povos, utilizando todas as armas (económicas, financeiras, políticas, diplomáticas, militares), as ingerências, intervenções, agressões e guerras a que diariamente assistimos indicam que não só subsiste como se reforça a necessidade da luta dos comunistas por aqueles objectivos que foram através do século a razão de ser da sua existência e da sua luta.
Em quarto lugar, nós, os comunistas portugueses, não tínhamos realizado em todos os seus elementos, e muito menos explicado antes da derrocada da URSS e noutros países do leste da Europa análises e críticas que actualmente fazemos. Tivemos esperança (que os acontecimentos mostraram ser demasiado optimista) numa correcção dos apontados aspectos negativos da evolução e da política nesses países.
É porém indispensável sublinhar que na nossa luta, nos nossos conceitos, no nosso Programa, nos nossos princípios teóricos, na nossa prática revolucionária, nos nossos objectivos do socialismo para Portugal, há muito tínhamos adoptado e seguido um caminho próprio basicamente diferente de um tal “modelo” e a nosso ver traduzindo o ideal comunista tal como em aspectos essenciais nós, os comunistas portugueses, sempre o entendemos e lutámos e lutamos para que venha a ser realizado em Portugal.
Um “modelo” fracassou. Mas o ideal comunista continua válido, vivo e com futuro.
As quatro vertentes da democracia
A relação entre o socialismo e a democracia foi ao longo do século e continua a ser na actualidade em Portugal e no mundo um dos grandes temas da luta ideológica e política.
A experiência do movimento revolucionário mundial e a experiência da nossa própria luta, confirma a ideia de que são inseparáveis e complementares quatro vertentes principais da democracia: a económica, a social, a política e a cultural.
Acrescente-se que a experiência confirma também que uma quinta vertente, a vertente nacional, a independência e soberania nacionais (que os processos de internacionalização e de integração podem por em causa) é com frequência necessária para assegurar num país dado (é o caso de Portugal) a democracia e o seu aprofundamento.
Da mesma forma, a experiência confirma, em sentido inverso, que governos ao serviço do capital desenvolvem, embora em graus diversos, uma actuação antidemocrática nessas mesmo quatro vertentes e frequentemente também uma actuação antinacional na quinta vertente indicada.
Há quem pretenda convencer que na sua prática política as quatro vertentes são separáveis. Há partidos que se afirmam grandes defensores da democracia política e ao mesmo tempo defendem – e quando no governo promovem – o domínio e o poder dos grandes grupos monopolistas e a liquidação de direitos e liberdades dos trabalhadores.
É porém fácil de ver que num país capitalista, à ausência de democracia económica e social correspondem com evidência graves limitações à democracia política.
Esta tese não é nova da nossa parte. O PCP assumiu uma posição crítica nomeadamente em relação aos chamados regimes de democracia burguesa parlamentar em países em que o sistema socioeconómico é o capitalismo monopolista.
Num país de capitalismo monopolista a democracia política tem uma natureza de classe e é fortemente condicionada e mesmo determinada por essa natureza de classe. O sistema de poder e o Estado são concebidos para garantir o domínio não apenas económico, mas político do grande capital. Embora a igualdade de direitos dos cidadãos seja reconhecida em termos legais, são impostas de facto gravíssimas discriminações e desigualdades. A abissal desigualdade económica e de meios financeiros e materiais entre as classes exploradoras e as classes exploradas, cria uma desigualdade efectiva no exercício das liberdades e direitos democráticos. O poder político é exercido directamente pelo grande capital (capitalismo monopolista de estado), ou indirectamente pelos seus agentes. Como garantia suprema, a democracia política num país capitalista é em geral concebida (nomeadamente através de sistemas eleitorais) de forma a impedir que os trabalhadores possam vir a substituir os capitalistas no governo. Na situação portuguesa actual, a acção do Governo do PSD é um exemplo esclarecedor de ofensivas antidemocráticas simultâneas, complementares e inseparáveis nas quatro vertentes apontadas.
Na economia, reconstituindo e restaurando o capitalismo monopolista, promovendo a rápida centralização e concentração de capitais, acentuando a distância entre um pólo de grande riqueza acumulada e um pólo de pobreza e miséria.
Na social, promovendo o desemprego e a precarização do emprego, os despedimentos, os tectos salariais, a liquidação de direitos e benefícios sociais, a situação de miséria dos reformados e deficientes, a discriminação das mulheres, a degradação dos serviços de saúde, a habitação inacessível, o ensino vedado à grande massa dos jovens através do aumento das propinas.
Na política, desrespeitando a Constituição e a legalidade, governamentalizando e absolutizando o poder, liquidando mecanismos de fiscalização da acção governativa, espartilhando os direitos da oposição, criando novas polícias políticas, protegendo a própria corrupção, apossando-se e instrumentalizando grandes meios de comunicação social, elaborando novas leis eleitorais que lhe assegurem manter-se no poder mesmo quando em futuras eleições perca a maioria.
Na cultural, ressuscitando valores retrógrados e reaccionários e impondo uma política de partidarização e capela no ensino e na intervenção do Estado nas áreas das ciências e das artes.
Na nacional, tomando na CEE uma atitude submissa e de sacrifício dos interesses portugueses a interesses estrangeiros e fazendo ratificar o Tratado de Maastrich, atentatório da independência e soberania de Portugal.
Nós comunistas concebemos de forma diferente os elementos e os valores da democracia.
Democracia e Socialismo
Não tem qualquer fundamento a ideia muito espalhada nas campanhas anticomunistas de que os comunistas lutam de facto por transformações económicas e por objectivos sociais, mas não pela liberdade, não pela democracia política.
Analisando com atenção o que foram ao longo dos anos – no tempo da ditadura, na revolução de Abril, desde então e agora – os objectivos da luta imediata e a curto e a médio prazo e os objectivos programáticos do PCP, encontramos sempre com incontestável evidência (ainda que respondendo com medidas diversas a situações diversas) a simultaneidade e complementaridade de objectivos democráticos nas áreas económica, social, política e cultural, dando sempre particular relevo à liberdade e à democracia política.
A vida tem mostrado que uma das mais sólidas indicações do verdadeiro sentido dos programas ou promessas de um partido ou de um governo relativas ao futuro é o sentido da sua acção presente. O verdadeiro sentido dos programas de um partido pode ler-se, mais talvez do que nas palavras, nos seus actos, na sua acção, na sua luta através dos anos.
A coerência de uma força política revela-se tanto quando nos seus objectivos mais distantes estão presentes valores da sua luta imediata, como quando nos objectivos da sua luta imediata estão presentes valores dos seus objectivos mais distantes.
Examine-se a luta quotidiana e os programas do PCP através dos anos.
Não é excessivo lembrar que ao longo de quase meio século de ditadura fascista o PCP foi a grande força da resistência, o grande impulsionador e organizador da luta popular e democrática e que face à repressão e ao terror nenhuma outra força política travou um combate mais decidido, com tanta dedicação e sacrifícios, pela liberdade e pela democracia.
Não é excessivo lembrar que gerações e gerações de comunistas dedicaram as suas vidas à luta pela liberdade e a democracia. Que milhares de comunistas sofreram perseguições, prisões, torturas, condenações por tribunais fantoches. Que houve comunistas que viveram e lutaram na clandestinidade 10, 20 e até 30 anos seguidos. Que houve comunistas que passaram nas prisões 20 anos e mais. Que houve comunistas torturados pela polícia até à morte por se negarem a trair os seus camaradas. Que muitos comunistas conseguiram evadir-se das prisões, para de novo se consagrarem à luta com todas as duras exigências e perigos.
Tão pouco é excessivo lembrar que no 25 de Abril, os comunistas, ao contrário das acusações que contra eles foram movidas, tiveram um papel em muitas circunstâncias decisivo para a instauração das liberdades e da democracia.
É pura invenção dizer que os comunistas com o 25 de Abril quiseram instaurar uma ditadura. Quem quis impedir a instauração de um regime democrático e impor a instauração de uma ditadura foram aqueles que logo em Julho de 1974, quando do Governo Palma Carlos tentaram um golpe, e tentaram outro em 28 de Setembro e outro ainda em 11 de Março de 1975 e ainda aqueles que, tendo participado no 25 de Novembro desse ano quiseram levar o golpe até às extremas consequências, pretendendo entre outras medidas ilegalizar o PCP e liquidar o movimento sindical.
Sem possibilidade de contestação, os comunistas tiveram em todos esses anos um papel do mais alto relevo para a instauração do regime democrático, a elaboração da Constituição pela Assembleia Constituinte, e a sua promulgação em 2 de Abril de 1976.
A dura e ímpar experiência do PCP no que respeita ao conhecimento directo ao longo de dezenas de anos de ditadura do que significam, no concreto, a ausência de liberdade e a repressão, e o facto de, ao longo dessas dezenas de anos, a luta pela liberdade e a democracia ter sido um objectivo central e um eixo central da luta do Partido em todas as frentes, inseriu e radicou os valores da liberdade e da democracia nos objectivos do PCP a curto, a médio e a longo prazo, incluindo o objectivo de construção de uma nova sociedade libertada da exploração, da opressão, das injustiças, desigualdades e flagelos sociais do capitalismo – uma sociedade socialista.
As mesmas conclusões se podem tirar examinando os Programas do PCP.
Assim foi no Programa do PCP aprovado em 1965 para a revolução antifascista caracterizada como uma “revolução democrática e nacional”, tendo como “objectivo central” a conquista da liberdade no quadro de oito objectivos fundamentais: destruir o Estado fascista e instaurar um regime democrático, liquidar o poder dos monopólios e promover o desenvolvimento económico geral, realizar a reforma agrária na região do latifúndio, elevar o nível de vida das classes trabalhadoras e do povo em geral, democratizar a instrução e a cultura, libertar Portugal do imperialismo, reconhecer aos povos das colónias portuguesas o direito à independência e seguir uma política de paz e amizade com todos os povos.
Assim foi na Revolução de Abril na acção dos trabalhadores e das massas populares que levou às grandes conquistas democráticas que vieram a ser consagradas na Constituição.
Assim tem sido na luta contra a política dos Governos de direita desde que se desencadeou o processo contra-revolucionário.
Assim é no actual Programa do PCP para “uma democracia avançada no limiar do século XXI”, que aponta “cinco componentes ou objectivos fundamentais”: um regime de liberdade no qual o povo decida o seu destino e um Estado democrático, representativo, participado e moderno; um desenvolvimento económico assente numa economia mista ao serviço do povo e do país; uma política social que garanta a melhoria das condições de vida do povo; uma política cultural que assegure o acesso à livre criação e fruição culturais; e uma pátria independente e soberana com uma política de paz, amizade e cooperação com todos os povos.
Assim é também na sociedade socialista que propomos como perspectiva ao povo português. Também a sociedade socialista porque lutamos deverá aprofundar os objectivos democráticos nas quatro vertentes e incorporar e desenvolver os elementos fundamentais (económicos, sociais, políticos e culturais) da democracia avançada (Programa do PCP, XIV Congresso, Cap.III, Pg.69) em cuja definição e concretização se “projectam como realidades, necessidades objectivas, experiências e aspirações, os grandes valores da Revolução de Abril”.
O XIV Congresso do PCP, realizado em Dezembro do ano passado, teve como lema “Democracia e socialismo – o futuro de Portugal”. Este lema aponta duas ideias e dois elementos fundamentais do nosso projecto e da nossa luta.
A luta quotidiana, os objectivos imediatos, as ideias programáticas a curto e médio prazo, o projecto de uma sociedade socialista para nós, os comunistas portugueses tiveram sempre a democracia como elemento essencial.
Democracia económica, social e cultural que são inexistentes em países de sistema capitalista e são elementos integrantes do ideal comunista. E democracia política que em países de sistema capitalista é limitada, espartilhada e discriminada com critérios de classe; e que segundo o ideal comunista deve assegurar o poder popular efectivo, a fiscalização e controlo da acção governativa, formas de democracia participativa, um Estado democrático e a igualdade e o efectivo exercício de direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.
Ao contrário do que nos acusa o anticomunismo, o ideal comunista é de todos os projectos políticos conhecidos o ideal mais democrático e humanista.
A Revolução de Abril e o socialismo
A Revolução de Abril constituiu um dos momentos mais empolgantes na história de Portugal. Desencadeada pelo levantamento militar do dia 25 e seguida no imediato por um levantamento popular, a revolução transformou profundamente a sociedade portuguesa. Foi antes de mais o derrubamento da ditadura fascista, a libertação da opressão e do terror de 48 anos, a conquista da liberdade e a instauração de uma democracia política. Mas foi mais do que isso. Foi também a libertação do domínio absoluto sobre a economia e a política dos grandes grupos monopolistas com a nacionalização dos sectores básicos. Foi a substituição da imensa propriedade latifundiária do Ribatejo e Alentejo por novas explorações que, no processo de reforma agrária, desbravaram terras incultas, aumentaram radicalmente a produção, puseram fim ao desemprego e asseguraram o melhoramento das condições de vida das populações nessas regiões. Foi a conquista de importantes direitos e benefícios sociais pelos trabalhadores, as mulheres, os jovens, as camadas mais desfavorecidas.
Existem grandes diferenças de opinião acerca da caracterização da revolução de Abril. Nós, os comunistas, no tempo da ditadura, no VI Congresso realizado em 1965, ao definirmos no Programa do nosso Partido os objectivos da futura revolução antifascista, não a caracterizámos como uma revolução socialista, mas sublinhámos entretanto que a sua realização completa “criaria condições favoráveis para a evolução da sociedade portuguesa rumo ao socialismo”.
Muitos daqueles que hoje combatem a revolução de Abril, considerando que foi um mal e um erro e que assim reescrevem a história, acusam o PCP de ter querido, contra a vontade geral, impor transformações de carácter socialista e de ter apontado à revolução o caminho do socialismo.
Tais opiniões exigem um esclarecimento.
Ao contrário de partidos que procuram fazer esquecer o que foram as suas declaradas posições e o que foram as suas promessas, nós, os comunistas, nunca tivemos nem temos nada a esconder do que foram e são os nossos objectivos, a nossa intervenção e a nossa luta.
Se se fala do 25 de Abril, da democracia e do socialismo, vale a pena lembrar dois factos.
O primeiro é que a Constituição elaborada e aprovada em 1975/76 pela Assembleia Constituinte definiu “a República Portuguesa” como “um Estado democrático (…) que tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras” (artº 2º). Explicitou que “a organização económico-social da República Portuguesa assenta no desenvolvimento das relações de produção socialistas, mediante a apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos” (artº 80º), eliminando a formação de monopólios privados, procedendo a nacionalizações e realizando a reforma agrária (artº 81º). Além destes preceitos, toda a Constituição caracterizava o sistema e o regime como uma “fase de transição para o socialismo” (artº 89º).
Ora a Constituição não foi apenas obra dos deputados comunistas, nem aprovada apenas com os votos dos comunistas que aliás tinham apenas 30 lugares no total de 250. A Constituição foi elaborada pela Assembleia Constituinte e foi aprovada com os votos favoráveis do PS e do próprio PSD (então PPD).
O segundo facto que muitos procuram fazer esquecer é que não era só o PCP, mas a generalidade das forças que apoiavam a liquidação do fascismo que no seu programa apontavam a democracia portuguesa como caminho para o socialismo.
Assim, o Programa do Partido Socialista então dirigido por Mário Soares, proclamava (“Declaração de Princípios” aprovada no Congresso de Dezembro de 1974) que “o capitalismo é uma força opressiva e brutal”, que “o PS luta pela sua total destruição” (1.11.), “combate o sistema capitalista e dominação burguesa” (1.6.), “repudia o caminho daqueles movimentos que, dizendo-se social-democratas e até socialistas acabam por conservar, deliberadamente ou de facto, as estruturas do capitalismo e servir os interesses do imperialismo” (1.7.), defende “um plano escalonado de nacionalizações” (2.2.5) e “um plano escalonado de reforma agrária visando a expropriação do latifúndio” (2.2.7.), etc.
Também o actual PSD, então PPD, tendo como secretário-geral Sá Carneiro, apontava o mesmo caminho. No Programa aprovado no 1º Congresso Nacional realizado em 23/24 de Novembro de 1974 criticava “a propriedade privada sem limitações substanciais”. Indicava como objectivo “modificar a estrutura da economia expandindo progressivamente o sector da propriedade social dos meios de produção” (p.100). Defendia as nacionalizações, nomeadamente em “sectores chave e indústrias básicas” (p.103) como um dos meios para conseguir “o estabelecimento de uma sociedade justa e livre” (p.102) e uma “reestruturação fundiária” a considerar um “Instituto da Reforma Agrária” (p.115). Em síntese, declarava ser objectivo do PPD a “implantação em Portugal” de “um socialismo democrático e humanista” (p.99).
Tanto as profundas transformações e conquistas revolucionárias realizadas pela revolução, como a inscrição do socialismo nos Programas dos partidos como o objectivo explicitamente proclamada mostram como tais transformações e conquistas correspondiam a necessidades objectivas e à opinião e vontade popular expressas nesses anos na irresistível vaga revolucionária.
Graves divisões e conflitos nas forças armadas, pressões e ingerências externas, excessos anarquizantes de grupos esquerdistas, conspirações, golpes e tentativas de golpes contra o curso revolucionário por parte de partidos e forças que declaravam apoiá-lo, conduziram a um processo contra-revolucionário que ainda actualmente continua, visando a destruição de conquistas de Abril e a restauração do capitalismo monopolista do tempo do fascismo, a destruição de direitos fundamentais dos trabalhadores e, se não a instauração de uma nova ditadura, a degeneração da democracia política e a instauração de um regime de cariz autoritário.
O PS meteu o socialismo na gaveta. E o PSD nem sequer o meteu na gaveta porque muito simplesmente o rasgou desde a primeira hora.
O PCP teve e tem um comportamento diferente. Como desenvolvimento da democracia avançada em todas as suas vertentes o objectivo da construção de uma sociedade nova, uma sociedade socialista, é um objectivo assumido como uma das razões de ser do próprio Partido.
A luta por uma sociedade socialista, não são para o PCP palavras ditas porque num momento determinado correspondem aos ventos dominantes. É um ideal, é um objectivo, é uma convicção, é uma luta, sempre clara e coerentemente assumidos, mesmo nas condições mais difíceis e desfavoráveis.
Tal como, ao definirmos os objectivos da revolução antifascista, da revolução democrática e nacional, dizíamos que a sua realização completa “criaria condições favoráveis para a evolução da sociedade portuguesa rumo ao socialismo”, assim também actualmente, ao propormos ao povo português o programa de “uma democracia avançada no limiar do século XXI”, apontamos “a sociedade socialista como objectivo e como perspectiva”.
Ser comunista, hoje e amanhã
Este objectivo de transformação da sociedade portuguesa constitui um dos traços essenciais da identidade do PCP.
Respondendo à questão “o que é ser comunista hoje?” pode assim principiar-se por dizer que ser comunista é ter como objectivo a construção em Portugal de uma sociedade socialista que, ao contrário do que sucede com o sistema socioeconómico capitalista, conceba e concretize como inseparáveis as quatro vertentes da democracia.
Mas a nossa resposta à pergunta “o que é ser comunista hoje?” contém necessariamente numerosos outros aspectos relativos às ideias, aos objectivos, à acção, à luta, à mentalidade, aos conceitos éticos dos comunistas portugueses.
Ser comunista num partido, como o Partido Comunista Português, que sempre foi, é e se define como partido da classe operária e de todos os trabalhadores, é defender (sempre com os trabalhadores, sempre com o povo) os seus justos interesses, direitos e aspirações, contribuir para a sua organização, a sua unidade e o desenvolvimento e êxito das suas lutas. E não só. Defender também os interesses e direitos dos pequenos e médios agricultores, dos intelectuais e quadros técnicos, dos pequenos e médios comerciantes e industriais, das mulheres, da juventude, dos reformados, dos deficientes, de todos aqueles que são atingidos e feridos pela política ao serviço do grande capital e que constituem uma ampla frente social de cuja intervenção na vida nacional dependerá o futuro do país. E estar sempre atento a todas as grandes desigualdades, injustiças e discriminações sociais e lutar e organizar a luta para que sejam corrigidas e para lhes por termo.
Ser comunista, na continuidade da acção do PCP ao longo de mais de 72 anos da sua existência, é lutar consequentemente pelas liberdades e a democracia (lutar nas movimentações sociais, na Assembleia da República, nas autarquias, no Parlamento Europeu, em todas as áreas da vida nacional), lutar com as massas populares, lutar pela unidade dos trabalhadores, pela confluência da luta de classes e estratos sociais antimonopolistas, lutar pela unidade ou convergência das forças democráticas, lutar por uma alternativa democrática. É defender o desenvolvimento económico tendo também como elemento integrante o progresso social, nomeadamente o melhoramento das condições de vida dos trabalhadores e do povo em geral e não como sucede com a política do Governo actual em que se procura o crescimento económico à custa do agravamento das condições de vida e de trabalho do nosso povo.
Ser comunista é lutar pela amizade e cooperação dos povos, das nações e de Estados, pela paz e a segurança, ser patriota português, defensor da independência e soberania nacionais e do direito inalienável do povo português decidir do seu próprio destino e ser também activamente solidário para com os trabalhadores e os povos de todos os países na luta pelos seus justos direitos e aspirações.
Ser comunista, nas condições actuais de Portugal é lutar não apenas nas palavras mas nos actos contra um Governo de direita que não serve o povo nem o país, que arruína a economia portuguesa, degrada a situação social, perverte a democracia e compromete a independência e soberania nacionais.
Ser comunista é confiar no povo e nas potencialidades populares de compreensão, de determinação, de luta e de realização. É manter sempre estreita ligação com o povo, transmitindo ao povo os conhecimentos, a capacidade e a experiência do partido, e recebendo do povo elementos essenciais para o conhecimento rigoroso dos problemas e receber também opinião, e apoio, e estímulo e participação que se traduzem em poderosa energia revolucionária capaz de transformar a vida social para melhor. É ter consciência de que são os povos que acabam sempre por decidir da história e de que o socialismo só poderá ser construído por decisão e empenhamento do povo e nunca contra a sua opção e vontade. É ter confiança em que a luta, o futuro para a humanidade será melhor que o presente.
Ser comunista é compreender e praticar a política não para se servir da política em benefício próprio, mas para através da acção política servir o povo e o país. Com verdade, com convicção, com serena firmeza, com consciência tranquila. Mantendo vivos no pensamento e na acção valores básicos elementares como a igualdade de direitos, a generosidade, a fraternidade, a justiça social, a solidariedade humana.
Talvez tendo por certo que este fim de século é “a morte do comunismo” há quem diga que, se nós, comunistas, nos afirmamos de pé, firmes e convictos, é para morrermos de pé. A verdade (como já temos referido) é que, se assim nos afirmamos e assim somos, não é para morrer de pé, mas para de pé continuar a viver e a lutar, com confiança (fundamentada na análise das realidades) que o nosso ideal corresponde de tal forma às necessidades e aspirações mais profundas do nosso povo, que um dia dele será o futuro.
Aqui tendes, em palavras talvez demasiado demoradas para a circunstância, mas de certo demasiado breves para o assunto – como consideramos “o comunismo hoje e amanhã”, o que é “ser comunista hoje”.
Não vim porém aqui apenas para falar, mas também para ouvir. Ouvir a vossa reflexão e as vossas ideias que estou certo, constituirão uma contribuição para uma útil reflexão comum.