Marx ao estudar a organização da sociedade capitalista percebeu que a sociedade está dividida em infraestrutura e superestrutura. Expõe essa tese na Ideologia Alemã «a produção das ideias, representações, da consciência, está em princípio directamente entrelaçada com a actividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparecem aqui ainda como o efluxo directo do seu comportamento material. O mesmo se aplica à produção espiritual como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica, das artes, da ideologia, etc., de um determinado povo» e em Para a Crítica da Economia Política «com a transformação do fundamento económico, revoluciona-se, mais devagar ou mais depressa, toda a imensa superestrutura. Na consideração de tais revolucionamentos tem se distinguir sempre entre o revolucionamento material nas condições económicas da produção, o que é constatável rigorosamente como nas ciências naturais e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas; em suma, ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o resolvem».
Os conceitos de infraestrutura e superestrutura são um dos mais valiosos contributos de Marx e Engels para o materialismo histórico, para a compreensão do papel do Estado, para a sua caracterização e para o combate teórico contra as concepções idealistas acerca da organização da sociedade.
Marx e Engels utilizaram a metáfora de um edifício em que a infraestrutura seria a base onde se ergueria a superestrutura, o que gerou o equívoco de que a luta de classes se poderia circunscrever às lutas na infraestrutura que teriam efeito mecânico na superestrutura. Uma simplificação que Engels, numa carta a Joseph Bloch, desmonta com grande rigor «Segundo a concepção materialista da história, o momento em última instância determinante na história, é a produção e reprodução da vida real. Nem Marx nem eu alguma vez afirmámos mais. Se agora alguém torce isso afirmando que o momento económico é o único determinante, transforma aquela proposição numa frase que não diz nada, abstracta, absurda. A situação económica é a base, mas os diversos momentos da superstrutura — formas políticas da luta de classes e seus resultados: constituições estabelecidas pela classe vitoriosa uma vez ganha a batalha, etc, formas jurídicas, e mesmo os reflexos de todas estas lutas reais nos cérebros dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, visões religiosas e o seu ulterior desenvolvimento em sistemas de dogmas — exercem também a sua influência sobre o curso das lutas históricas e determinam em muitos casos preponderantemente a forma delas.» Nesta citação de Engels fica evidente a importância da relação dialéctica entre infraestrutura e superestrutura, a sua importância na luta de classes em que o espectro do comunismo que no Manifesto assombrava a Europa, assombra o mundo depois da Revolução de Outubro e da derrota do nazi-fascismo em que a participação da União Soviética foi decisiva.
É uma situação que alarma a burguesia que quer consolidar uma nova ordem que se começa a definir a partir dos anos 50, em que o Estado interventivo transita para o Estado mínimo, o Estado-nação transfere poderes para instâncias supra-nacionais, em que se alarga a superfície global onde se vai dissolvendo o território, o exercício de soberania, a língua, a identidade cultural, tornados conceitos móveis e transitivos. É a globalização que decorre do desenvolvimento capitalista até ao seu estado actual com a financeirização da economia, o aumento das desigualdades com a concentração da riqueza num número mais reduzido de plutocratas, a divida pública mundial a superar em mais de 100% o produto interno mundial, em que surgem empresas cuja capitalização supera o produto interno bruto da maioria dos países e em que essas empresas negoceiam com os estados com um estatuto semelhante aos dos antigos senhores feudais, uma forma hiper-moderna de feudalismo, em que tudo é sujeito às leis do mercado que desumanizam as sociedades numa lógica perversa em que a liberdade é pura propaganda, a exploração do trabalho maximiza a produtividade, a uberização promove a exploração do trabalhador por si-próprio, numa exploração que quer que seja voluntária.
O jogo é altamente sofisticado. Tem o objectivo da exploração capitalista se eternizar superando as suas crises sistémicas por uma suposta racionalidade gestionária pelo que há que promover o desarmamento político e ideológico da esquerda que insiste no carácter contingente da realidade histórica do capitalismo.
Para consolidar essa nova ordem a burguesia percebe que é tão importante a produção de bens de consumo e de instrumentos financeiros como a produção de bens imateriais para plantar a desordem mental e cultural em que o pós-modernismo se irá empenhar para desintegrar a «ideia moderna da racionalidade global da vida social e pessoal nas mini-racionalidades de uma global inabarcável e incontrolável irracionalidade como reinvenção da vida». O pensamento crítico é varrido pelos turbilhões das amálgamas informativas e culturais que são servidas em doses massivas até os saberes serem pulverizados pelos algoritmos dos sites da Google, Facebook, Instagram, Twitter, etc., que se colocam acima da inteligência e do conhecimento esmagando a capacidade de julgamento. O alvo é evidente: desagregar todos os projectos humanistas do iluminismo, cujo ponto máximo é o marxismo, guilhotinando-os na fúria bárbara dessa nova ordem política, económica, social.
O materialismo histórico está sempre na mira, empresa em que se destacam os estruturalistas e pós-estruturalistas. Foucault, Deleuze e Gauttari pensam o capitalismo não a partir das relações de produção mas como «uma esquizofrenia, compreendida como uma lógica, uma racionalidade». O poder, para esses filósofos, não está subordinado a um modo de produção nem a qualquer infraestrutura ou a questões económicas, pelo que «o capitalismo não é um aparelho repressor, mas um aparelho de captura que torna possível a circulação ilimitada do desejo». Deleuze e Gauttari consideram que o que se designa como ideologia são «enunciados de organizações de poder» não uma superestrutura, são «agenciamentos de enunciação». Ou seja, os debates ideológicos são substituídos pela análise das subtilezas da linguagem, pelas relações entre a semiótica do significante e do não-significante de onde se ausenta a luta de classes. Há que lhes lembrar que por mais interessante e complexas não foram as relações entre o significante e o seu significado ou vice-versa, não foram elas decisivas para a tomada da Bastilha ou do Palácio de Inverno, para instaurar a Comuna de Paris ou para fazer a Revolução do 25 de Abril. Foram acções revolucionárias sobre o mundo material sobre o qual se agiu para o alterar.
Estes são alguns dos fundamentos de uma desideologização em que se funda uma nova esquerda adulada pelos pensadores de direita e pelos média mainstream que a etiquetam de “moderna”, opondo-a aos “conservadores”, a esquerda consequente que não aceita nem dá por eterno o princípio da dominação capitalista.
Para essas esquerdas a luta de classes é substituída pelas lutas identitárias que promovem mudanças sociais deixando intocadas as fundações do sistema. A esses rebeldes sem filtro que reclamam maiores liberdades o neoliberalismo dá-lhes essas liberdades dando-lhes a liberdade do mercado. O objectivo que os cidadãos sejam impotentes e a alienação global seja uma alienação consentida. O fim último é que já não seja sequer possível pensar que é possível pensar uma sociedade onde os valores da civilização, da humanidade, da cultura, da política se plantam para florescer ainda que com todas as contradições e dificuldades.
São as bases do que Sheldon Wollin classifica de «totalitarismo invertido (…) que não tem rosto, é anónimo, corporizado por dirigentes políticos que são marcas comerciais dos Estados completamente enfeudados às grandes empresas, em que há uma crescente indiferenciação ideológica e programática entre partidos de sectores das esquerdas tradicionais revisionistas e de direita, em que a democracia representativa deixou de ser lugar de debate ideológico (…) e os cidadãos só são tolerados enquanto participam da ilusão de viver numa democracia participativa. No momento em que se rebelam e se recusam a participar dessa ilusão, o rosto do totalitarismo invertido aparecerá com o rosto dos sistemas totalitários do passado.». É a demonstração de uma realidade que a história abundantemente demonstra: as sociedades capitalistas tanto são limitadamente libertárias como não hesitam em recorrer aos extremos mais repressivos, tanto se apresentam múltiplas como monolíticas, variando conforme os avanços e recuos da luta de classes.
Neste contexto há que afirmar que ser de esquerda é ter a certeza e a convicção de que nenhuma realidade, por mais consistente e hegemónica que se apresente como o é o capitalismo actual, deve ser considerada definitiva. É insistir no carácter contingente da realidade histórica do capitalismo e não dar por eterno o princípio da dominação capitalista. Mas também é perceber que não foi só o comunismo que procurou produzir o homem novo esse também é o objectivo do neoliberalismo, que o procura construir pela aniquilação do sujeito moderno crítico e marxista, substituindo-o por um sujeito autista, indiferente à dimensão política da existência, um indivíduo que se refere exclusivamente ao aspecto solipsista dos objectos que se realizam como mercadoria subjectiva da cultura de massas.
Essas esquerdas “modernas” que se opõem à esquerda praxada de “conservadora”, ainda que por vezes se digam pós-marxistas, não se revêm no que é nuclear no pensamento marxista: a relação de exploração entre o capital e o trabalho. Para eles, as classes sociais não contam porque perderam sentido, pelo que a tónica marxista nas classes sociais é reducionista, o que prevalece é a santíssima trindade da raça, sexo e género. Uma deriva pós-marxista em que as políticas identitárias acabam por ocultar que as fontes dos conflitos são sempre sociais antes de serem identitários.
As consequências deste estado da arte são múltiplas e, como já anotara Walter Benjamin, no radicalismo dessas esquerdas o que transparece «é o mimetismo proletário das camadas burguesas decadentes. A sua função é, do ponto de vista político, formar cliques e não partidos, de um ponto de vista das artes lançar modas e não escolas, de um ponto de vista económico criar agentes e não produtores» a que se poderá acrescentar de um ponto de vista social criar activistas e não militantes.
É neste quadro que a esquerda marxista, que se reivindica do materialismo histórico, tem um amplo território de luta pelas ideias sem tirar os pés do terreno das lutas económicas e sociais, porque uma ideologia que não se traduza na luta de classes está condenada ao apaziguamento da exploração capitalista, contribuindo objectivamente para a sua continuidade e até parece ser mais fácil pensar o fim do mundo do que pensar o fim do capitalismo, capitalismo e exploração do homem, que é e será sempre o alvo da esquerda consequente, dos partidos comunistas que está no centro da luta de classes.