Intervenção de Jorge Seabra, Membro da Comissão Nacional do PCP para a área da Saúde, Encontro Nacional do PCP sobre a saúde em Portugal

A articulação entre cuidados de saúde

A articulação entre cuidados de saúde

Caros camaradas e amigos:

O continuado ataque promovido pelos governos PS,PSD e CDS ao Serviço Nacional de Saúde, tem assumido formas muito diversas de subfinanciamento, descoordenação, fragmentação e privatização de serviços e unidades, com perda de direitos e garantias dos seus profissionais, cujo estado de esgotamento ou burnout atinge números preocupantes, levando ao afastamento de muitos dos seus quadros mais diferenciados.

Em 2015, segundo dados fornecidos pelas Ordens, havia cerca de 21.000 profissionais de Saúde emigrados. Entre 2014 e 2016 emigraram 1.225 médicos e, segundo um estudo do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, quatro em cada dez médicos ponderam abandonar o SNS.

Em 2014, houve mais pedidos de declarações à Ordem dos Enfermeiros para fins de emigração (2.850) do que enfermeiros formados (2.633). Dez por cento dos Técnicos de Saúde formados na Escola Superior de Tecnologia de Saúde em 2013/2014 emigraram.

Números impressionantes que reflectem a sangria continuada de trabalhadores do SNS causada pelas políticas de direita.

O objectivo de degradar o SNS pode também ser avaliado no “encolhimento” da rede de proximidade dos cuidados primários, com encerramento de unidades, extensões e dos Serviços de Atendimento Permanente (SAP), e na divisão e concorrência criadas entre os Centros de Saúde tradicionais e as Unidades de Saúde Familiar (USF), diminuindo a coerência estrutural de todo o sistema.

A adesão de muitos profissionais a estas formas híbridas de empresarialização, e as pontuais melhorias com elas conseguidas, não devem fazer esquecer que as USF representam uma forma encapotada e embrionária de “exteriorização” dos cuidados de saúde primários do âmbito serviço público estatal, apontando para a sua total privatização já contemplada nas USF tipo C.

Para além dos factores negativos referidos, a que se junta a organização das unidades em mega-agrupamentos (ACES) com uma gestão burocrática, economicista e centralizada, será de salientar continua a não existir uma cobertura generalizada em áreas como a da saúde oral, oftalmológica, psiquiátrica ou de reabilitação, mantendo-se o pouco relevo dado aos cuidados domiciliários.

Na frente dos cuidados hospitalares - outro pilar estrutural do SNS - observou-se também uma acentuada redução de unidades, serviços e valências, com fusões, encerramentos, contratação de empresas externas e exportação massiva de doentes para os prestadores privados, alargando ou prolongando as concessões das ruinosas PPP.

O número de camas de internamento hospitalar no sector público, diminuíu, numa só década, para metade, enquanto as do privado aumentaram na mesma proporção, mandando às urtigas a falsa argumentação da sua não necessidade, possibilitando aos grandes grupos privados da Saúde lucros que cresceram a um ritmo de dois dígitos percentuais ao ano.

A celebrada “empresarialização” dos Hospitais do SNS, que inoculou a pior lógica da organização privada no seio do serviço público, trouxe consigo, para além da maior partidarização dos seus órgãos directivos, práticas de obscuro rigor, perseguindo lucros virtuais construídos na falsidade das estatísticas, a que acrescentou, simultaneamente, uma cascata de medidas regulamentadoras que insuflaram o desvio administrativista e burocrático da gestão hospitalar.

Esse caminho perverso, quase sempre divorciado da realidade e tantas vezes redundante e supérfluo, sobrepôs-se à prioridade natural dos objectivos clínicos, multiplicando administradores, assessores e outsourcings, fazendo disparar os custos sem melhorar a qualidade dos serviços.

O ataque às Carreiras Médicas, que asseguravam e validavam a progressão técnico-científica e a estruturação hierárquica dos Serviços, desvalorizou a avaliação interpares substituindo-a por nomeações e contratos isolados, tornando a prática assistencial mais precária e fragmentada, com regras irracionais e metas ilusórias.

Nesse trajecto também se menorizou o ensino, a formação contínua e a investigação clínica (que gastam tempo e não “produzem números”), pondo em risco a coerência técnico-científica da assistência prestada, a sua qualidade e o seu futuro.

Culminando tudo isso, o não estabelecimento de uma relação integrada dos cuidados primários com os cuidados hospitalares, tantas vezes referida nos discursos oficiais mas sempre dolosamente negligenciada, continua a ter gravosas consequências, dificultando o acesso dos cidadãos aos diversos níveis de cuidados do SNS, agravando a “urgêncialização” da vida hospitalar.

Portugal é, segundo a OCDE, o país que, de longe, mais atendimentos nas urgências tem (70 por 100 habitantes), entre vinte um países estudados, muito à frente de Espanha e a grande distância de países como a Suíça, a Holanda ou a Alemanha.

Mais de um terço destes atendimentos podiam e deviam ser tratados nos serviços de proximidade, poupando deslocações, tempo e dinheiro, atingindo essa fatia, na região da Grande Lisboa (onde cerca de meio milhão de habitantes não tem sequer médico de família atribuído), valores que ultrapassam os 50%.

Contudo, se, em 2002, cerca de 70% dos Centros de Saúde dispunham de um Serviço de Atendimento Permanente (SAP), dez anos depois, em 2012, apenas 24% tinham SAP ou um Serviço de Urgência Básica, mostrando que se estava a caminhar no sentido errado.

Enquanto isso, entre 2006 e 2016, os hospitais privados duplicavam a prestação de cuidados de urgência, atingindo 1,2 milhões de atendimentos, ocupando também uma percentagem crescente em consultas programadas e cirurgias que o estado transfere e subsidia.

A política do actual governo PS não mudou o sentido geral do pior que vinha de trás, e o acordo com o PSD na impropriamente chamada “municipalização” dos cuidados primários é uma boa prova disso, enquanto na frente hospitalar se estimula a formação dos Centros de Responsabilidade Integrada, grupos-empresa autónomos e auto-organizados, criando uma estranha organização bimodal no interior dos serviços.

Assim se fractura ainda mais a coerência organizativa do SNS, enquanto cresce a oferta privada, tornada cada vez mais competitiva com a invenção de taxas “moderadoras” e outras ajudas directas ou encapotadas do Estado.

Em Novembro de 2017, o Presidente Marcelo, referindo-se à prestação pública e privada, afirmou que há “dois grandes hemisférios que se dividem relativamente à saúde em Portugal”, concluindo que “…é por aí que passa a procura de uma fórmula intermédia…” (DN, 17-11-17).

Também ele parece ignorar o papel central e prioritário do SNS inscrito na Constituição, que recusa falsos eclectismos de soluções “intermédias”, remetendo a prestação privada para um papel secundário e complementar, que o estado não tem obrigação de sustentar.

“Dois hemisférios”, de facto. Um público, que políticas de direita mantêm subfinanciado e a definhar, e outro, o dos grandes grupos privados, que vai crescendo com rendas asseguradas por dinheiros públicos e pela ADSE sem as quais não sobrevive, enchendo os bolsos de novos e velhos “donos disto tudo”, levando o dinheiro que falta ao SNS assim tornado “insustentável”.

Salvar o SNS é inverter esse caminho, recuperando o sentido democrático, universal e solidário, da sua matriz original.

Uma luta que temos de travar. Com o PCP. Com todas as forças unitárias, progressistas e de esquerda. Com o apoio do povo e dos trabalhadores.
Por uma Saúde melhor. Por um futuro melhor. Por um país melhor.

Viva o PCP!

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