Para o PCP, «o partido político do proletariado, o partido da classe operária e de todos os trabalhadores portugueses»1, partido que «tem como base teórica o marxismo-leninismo»2, as comemorações do II Centenário do Nascimento de Karl Marx constituem, em si mesmas, uma oportunidade de excepcional importância para sublinhar a validade e a actualidade do legado do fundador do socialismo científico.
Validade e actualidade que não decorrem de uma visão dogmática e fechada da teoria marxista – por natureza criativa – mas antes da sua concepção materialista e dialéctica, do acerto dos seus princípios e conceitos fundamentais, confirmados e desenvolvidos à luz da realidade da evolução social e de experiências históricas concretas, de que a Revolução de Outubro foi e constituiu a primeira grande comprovação.
«A sociedade actual não é nenhum cristal fixo, mas um organismo vivo capaz de transformação e constantemente compreendido num processo de transformação»3 diz Marx no prefácio à primeira edição de O Capital.
Naquela que é a sua obra maior, Marx debruça-se sobre a realidade económica e social do modo de produção capitalista, avança a possibilidade de uma transformação geral das relações sociais, que se traduziria na abolição da divisão da sociedade em classes, na edificação da sociedade comunista. Possibilidade decorrente da verificação de factores como o desenvolvimento das contradições inerentes ao próprio sistema capitalista - e, desde logo, da sua contradição fundamental: a contradição entre o carácter social da produção e a apropriação privada dos meios de produção -, o papel e a intervenção da classe dos operários assalariados e a sua constituição em partido político, num «partido político distinto, oposto a todos os antigos partidos formados pelas classes possidentes»4, condição «indispensável para assegurar o triunfo da Revolução social e do seu objectivo supremo: a abolição das classes.5.
Questão central da teoria marxista, desde logo, no Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, é o papel da luta de classes - e nela o da classe operária, como força motriz da liquidação do capitalismo e da edificação da sociedade nova, liberta da exploração do Homem pelo Homem.
«A história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas de classes»6 afirma-se logo no início do capítulo I. O título do capítulo identificava já as duas classes fundamentais em presença - «Burgueses e Proletários» - mas Engels, numa nota à edição inglesa de 1888 do Manifesto, dá-lhes sentido distintivo mais preciso: «Por burguesia entende-se a classe dos Capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção social e empregadores de trabalho assalariado. Por proletariado, a classe dos trabalhadores assalariados modernos, os quais, não tendo meios próprios de produção, estão reduzidos a vender a sua força de trabalho para poderem viver»7, proletários que «só vivem enquanto encontram trabalho e só encontram trabalho enquanto o seu trabalho aumenta o capital»8.
Aquele que se constituiu como documento programático do comunismo de base científica e guia de acção do movimento operário revolucionário aponta, de forma clara, a missão histórica universal da classe operária: o derrube da burguesia e a conquista do poder pelo proletariado, a transformação revolucionária da sociedade.
Mas, como Lénine observou, «para a revolução não basta que as classes exploradas e oprimidas tenham consciência da impossibilidade de viver como dantes e exijam mudanças»9.
Desde a morte de Marx e de Lénine, o mundo conheceu transformações profundas nos planos económico, social e político mas o «sistema de teorias que explicam o mundo e indicam como transformá-lo»10 não perdeu validade. Tal como sublinhou Álvaro Cunhal em O Partido com Paredes de Vidro, «Os princípios do marxismo-leninismo constituem um instrumento indispensável para a análise científica da realidade, dos novos fenómenos e da evolução social e para a definição de soluções correctas para os problemas concretos que a situação objectiva e a luta colocam às forças revolucionárias.»11.
Coloca-se-nos, assim, como questão primordial e intemporal, a exigência de aprofundamento e desenvolvimento da análise da realidade portuguesa, da composição social da sociedade e da arrumação das forças em presença.
O proletariado e a burguesia dos nossos dias não são os mesmos que na época de Marx. A sua transformação reflecte uma realidade social que se complexifica, em resultado do desenvolvimento das forças produtivas e das formas de apropriação dos resultados da produção. E a verdade é que, de Marx aos nossos dias, o modo de produção capitalista conheceu grandes e aceleradas transformações: o capitalismo da livre concorrência passou à fase do capitalismo monopolista e de seguida à do capitalismo monopolista de estado, que conhece novos desenvolvimentos, em resultado, designadamente, da crescente ligação do grande capital em cada país ao grande capital transnacional e da «fusão do poder dos grandes monopólios transnacionais com o poder político dos principais Estados imperialistas e das instituições supranacionais que estes determinam» 12. Não mudou, porém, a essência das relações de produção capitalistas, a que é inerente a exploração do trabalho assalariado.
O nosso processo de aferimento e as conclusões a que hoje chegamos fundam-se, assim, no marxismo, no seu desenvolvimento e na sua aplicação criadora, pesem embora as invectivas grosseiras daqueles que, no dizer de Marx: «derramam as suas trivialidades ignorantes e as suas manias sectárias no tom oracular da infalibilidade científica.»13.
A nossa análise baseia-se numa estrutura de classes que assenta em duas classes fundamentais - classe operária e burguesia - e dois grupos intermédios, as camadas intermédias assalariadas e as camadas intermédias não assalariadas.
Classe operária, «fundamentalmente constituída pelos trabalhadores assalariados em que é dominante o trabalho directamente produtivo, exercendo a sua actividade nas esferas económicas de produção material, onde não desempenham funções superiores de direcção ou de mera vigilância no enquadramento de outros trabalhadores»14.
Camadas intermédias assalariadas, constituídas «basicamente por todos os assalariados não operários», incluindo «a esmagadora maioria dos assalariados administrativos, do comércio e dos serviços e [...] dos assalariados das profissões intelectuais e científicas» e excluindo «os falsos assalariados, que pertencem às camadas superiores da burguesia, como os directores e os membros dos conselhos de administração das grandes empresas, e aqueles que, com funções superiores de direcção e enquadramento, nas grandes empresas privadas ou na administração e instituições públicas, são os seus auxiliares directos na manutenção do regime de exploração»15.
Camadas intermédias não assalariadas, que «incluem a pequena burguesia e camadas inferiores da burguesia». Pequena burguesia «a classe social constituída pelos trabalhadores por conta própria, possuindo meios de produção ou distribuição, recorrendo fundamentalmente a mão-de-obra familiar e, regular ou excepcionalmente, a um número muito reduzido de assalariados». Camadas inferiores da burguesia «a fracção da burguesia constituída pelos micro empresários [...] e pelos pequenos empregadores, com profissões intelectuais e científicas ou técnicas, da indústria, do comércio e serviços ou do sector primário»16.
B>urguesia, «constituída, fundamentalmente, pelos proprietários dos meios de produção e de troca, que vivem da exploração do trabalho alheio [...]; todos quantos vivem de grandes rendimentos da propriedade», bem como «os seus auxiliares directos no enquadramento e comando da produção, distribuição, repartição, vida e ordem sociais»17.
Foi partindo desta arrumação da população que, desenvolvendo e aprofundando abordagens anteriores, em 2004, o XVII Congresso do Partidoavançou no estudo da composição e da arrumação das forças de classe na sociedade portuguesa. Era, então, evidente a forte acentuação da polarização social: «Num pólo, a classe operária, a que se agrega o conjunto dos assalariados, todos os explorados, a esmagadora maioria da população. No outro pólo, a burguesia monopolista, a grande burguesia, uma ínfima minoria que comanda o sistema de exploração»18. Aumentava a complexidade da composição da classe operária que, ainda que menos representada no total dos assalariados, numa visão lata e conforme à realidade do trabalho produtivo, abrangia já parte dos serviços e «parte crescente do trabalho intelectual».
Mais de uma década depois, a observação da realidade actual confirma o acerto da análise e das conclusões essenciais então extraídas. Sem sermos exaustivos e conscientes da fragilidade dos dados estatísticos, tomamos como referência o extraído pelo Partido em 2004, a partir, designadamente, do Censos da População de 2001, em comparação com dados mais recentes, numa base nem sempre coincidente, de várias fontes estatísticas oficiais, na sua maioria referentes ao ano de 2016.
Assim, a população total residente diminuiu - de 10 milhões e 356 mil para 10 milhões e 306 mil e 400 habitantes -, tendo registado significativas variações no período abrangido (crescimento até 2011, fruto do salto migratório, e diminuição desde então, com abrandamento das entradas e exponencial aumento das saídas, em particular na vigência do governo PSD/CDS-PP, e alguma recuperação no final do período em análise); manteve-se a tendência de crescimento do assalariamento, acima da progressão da população activa.
Na classe operária, o proletariado industrial, que, antes, registara algum aumento, perde agora peso e decresce mais no conjunto dos assalariados, reflectindo a crescente desindustrialização do país; o proletariado agrícola e o das pescas continuaram a sua trajectória descendente, enquanto o proletariado dos serviços cresceu, se bem que menos que no período anterior, vendo ainda reduzido o seu peso nos assalariados; alargou-se, grandemente, o conjunto dos assalariados intelectuais e quadros técnicos que intervêm directamente na produção. Numa visão alargada e numa estimativa por defeito, aponta-se para 2 milhões e 62 mil o número de assalariados que, em 2016, integrariam a classe operária, a que haveria que acrescentar milhares de imigrantes clandestinos (só em 2016 foram detectados 2 461 imigrantes em situação irregular)19, bem como parte dos falsos trabalhadores independentes, que em 2015, segundo a OIT, representariam cerca de 4% do emprego20.
Já no que se refere às camadas intermédias assalariadas, o seu crescimento assenta, fundamentalmente, nos assalariados intelectuais e quadros técnicos, enquanto, neste grupo, os outros assalariados perdem peso entre 2011 e 2016.
As camadas intermédias não assalariadas, por seu lado, continuaram a diminuir o seu peso na população activa, confirmando-se a tendência de instabilidade social da pequena burguesia que, só entre 2011 e 2016, viu reduzir-se em 203 mil o número de trabalhadores por conta própria. O campesinato continuou a perder peso, num contexto em que apenas cerca de 14% da população agrícola familiar trabalhava a tempo completo na exploração.
A burguesia volta a crescer, elevando o seu peso na população activa. Segundo o Banco de Portugal21, as grandes empresas, ou seja, 0,3% das 418 000 empresas não financeiras em actividade em 2016, geraram 40% do volume de negócios, o que revela a elevada concentração económica do grande capital, sendo que só o comércio representou 38% da facturação. Entretanto, as actividades financeiras, de seguros e imobiliárias tiveram um peso no PIB da ordem dos 14%. A grande burguesia continua a reforçar o seu poderio económico, nomeadamente em sectores estratégicos para o desenvolvimento do país, e a sua influência na vida social e política. Ao mesmo tempo, cresce a integração de grupos a operar no país em grupos económicos transnacionais, cada vez mais submetidos aos objectivos da globalização capitalista e dos que dela beneficiam, em detrimento dos interesses nacionais.
«A burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção, portanto as relações sociais todas.»22, dizem Marx e Engels no Manifesto.
Bem o sabemos! Num tempo de aprofundamento da crise estrutural do capitalismo, aí está a chamada 4ª Revolução Industrial, por ele comandada, visando o abaixamento dos custos de produção à custa do aumento da exploração e do próprio direito ao trabalho. Objectivos que os arautos do sistema e os média ao seu serviço reconduzem a uma suposta inevitabilidade histórica, que decorreria da substituição do trabalho humano pela máquina “pensante” e do seu impacto no emprego. Caminho idealizado para atingir um outro objectivo de sempre do capitalismo: pôr fim ao protesto e à luta organizada dos trabalhadores, à luta de classes.
A chamada 4ª Revolução Industrial está aí, determinará novas transformações na arrumação das forças de classe mas o seu rumo não é imutável. A luta de classes está viva e existirá enquanto subsistir a opressão e a exploração de uma classe sobre outra classe: o capitalismo.
Em 1864, em sessão pública inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores, dirigindo-se aos operários, diz Marx: « tornou-se agora uma verdade demonstrável a todo o espírito sem preconceitos e apenas negada por aqueles cujo interesse está em confinar os outros a um paraíso de tolos que nenhum melhoramento da maquinaria, nenhuma aplicação da ciência à produção, nenhuns inventos de comunicação, nenhumas novas colónias, nenhuma emigração, nenhuma abertura de mercados, nenhum comércio livre, nem todas estas coisas juntas, farão desaparecer as misérias das massas industriosas; mas que, na presente base falsa, qualquer novo desenvolvimento das forças produtivas do trabalho terá de tender a aprofundar os contrates sociais e a agudizar os antagonismos sociais.»23.
São e serão esses contrates e esses antagonismos sociais e de classes - inconciliáveis por natureza - que, concorrendo para a percepção da exploração, das relações e contradições que se estabelecem entre as classes na produção material e na própria existência, forjando a consciência de classe, conduzirão à incorporação, na organização e na luta da classe operária e dos trabalhadores assalariados, de outros sectores e camadas ainda tolhidos pelo universo enganador das ideias difundidas pela ideologia dominante.
As transformações operadas e as que, hoje em dia, se perfilam no horizonte não só não põem em causa o carácter essencial da luta de classes na transformação revolucionária da sociedade como se mantém actual o sistema das alianças básicas da classe operária – campesinato, intelectuais e camadas intermédias -, implicando, isso sim, o reforço da importância da aliança com os intelectuais e outras camadas intermédias. Classe operária que continua, na etapa actual da revolução, a desempenhar o seu papel histórico de vanguarda revolucionária, agregador de outras classes e camadas anti-monopolistas, na formação da frente social ampla, indispensável à concretização da alternativa política necessária e à edificação da sociedade nova.
E, mais cedo que tarde, decorrente do processo de amadurecimento das condições objectivas e subjectivas necessárias, a revolução eclodirá. Quando, no dizer de Lénine, «os exploradores não possam viver e governar como dantes. Só quando os «de baixo» não querem o que é velho e os «de cima» não podem como dantes, só então a revolução pode vencer.»24.
Notas
(1) Estatutos do PCP, Artº 1º.↲
(2) Idem, Artº 2º.↲
(3) Karl Marx, O Capital, Livro Primeiro, t. I, Edições «Avante!» - Edições Progresso, Lisboa - Moscovo, 1990, p.11.↲
(4) Marx/Engels, Das resoluções do Congresso Geral realizado em Haia, in Obras Escolhidas em três tomos, t. II, Edições «Avante!» - Edições Progresso, Lisboa - Moscovo, 1983, p. 317.↲
(5) Idem.↲
(6) K. Marx/F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, I, Edições «Avante!», Lisboa, 2011, p. 36.↲
(7) Idem.↲
(8) Ibidem, p. 43.↲
(9) V. I. Lénine, A Doença Infantil do «Esquerdismo» no Comunismo, IX, Obras Escolhidas em três tomos, t. 3, Edições «Avante!» - Edições Progresso, Lisboa - Moscovo, 1979, p. 325.↲
(10) Álvaro Cunhal, O Partido com Paredes de Vidro, Edições «Avante!», Lisboa, 1985, p. 21.↲
(11) Idem.↲
(12) Resolução Política aprovada no XX Congresso do PCP, Almada, 2, 3 e 4 de Dezembro de 2016.↲
(13) K. Marx, A Guerra Civil em França, in Marx/Engels, Obras Escolhidas em três tomos, t. II, Edições «Avante!» - Edições Progresso, Lisboa - Moscovo, 1983, p. 244.↲
(14) Resolução Política aprovada no XVII Congresso do PCP, Almada, 26, 27 e 28 de Novembro de 2004.↲
(15) Idem.↲
(16) Ibidem.↲
(17) Ibidem.↲
(18) Ibidem.↲
(19) Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo (RIFA 2016), SEF.↲
(20) Perspectivas Sociais e de Emprego no Mundo para 2017, OIT, Janeiro de 2017.↲
(21) Análise Setorial das Sociedades não Financeiras em Portugal 2012-2016, Estudos da Central de Balanços 30, Banco de Portugal, Dezembro de 2017, p. 12.↲
(22) K. Marx/F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, I, Edições «Avante!», Lisboa, 2011, p. 39.↲
(23) Karl Marx, Mensagem Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores, in Marx/Engels, Obras Escolhidas em três tomos, t. II, Edições «Avante!» - Edições Progresso, Lisboa - Moscovo, 1983, p. 9.↲
(24) V. I. Lénine, A Doença Infantil do «Esquerdismo» no Comunismo, IX, Obras Escolhidas em três tomos, t. 3, Edições «Avante!» - Edições Progresso, Lisboa - Moscovo, 1979, p. 325.↲