Camaradas e amigos
I
Na Inglaterra do Século XVIII, a maior potência comercial de então, fruto da Revolução Tecnológica, assistia-se a uma profunda Revolução económica e social. A máquina a vapor, a máquina de fiar algodão e o tear mecânico lançam as bases da indústria. Os camponeses são expulsos da terra, os artesãos são arruinados. Uma massa de trabalhadores livres aflui aos grandes centros urbanos. Estes trabalhadores livres vendem o único bem que lhes resta: a sua força de trabalho. O trabalho assalariado generaliza-se, massifica-se e instala-se. Nasce o capitalismo. A burguesia apropria-se da propriedade. O trabalho fica para o proletariado.
A classe agora nascida vive na mais profunda miséria. O quadro traçado por Engels em 1845 é chocante: metade das crianças morria antes dos 5 anos; os bairros eram aglomerados de barracas; o horário de trabalho atinge 17 horas; não há férias, apoios em caso de doença ou acidente, nem direito à reforma; a base da alimentação é a batata; o salário é o estritamente necessário para a sobrevivência física do trabalhador e dos seus. Nos modos de produção anterior, as classes trabalhadoras eram subjugadas através de meios não económicos, e o mercado jogava um papel marginal. No capitalismo, o mercado torna-se a espinha dorsal de toda a economia, e é no mercado também que se estabelecem as novas relações de dominação.
Lenta e dolorosamente a nova classe vai descobrindo que a única liberdade que possui é a de aceitar a mais abjecta exploração em troca da sua sobrevivência física. A burguesia, substituindo a nobreza, emergia como nova classe dominante proprietária dos meios de produção, e a classe operária, cada vez mais numerosa, depressa tomava consciência de que os objectivos emancipadores na qual a burguesia se empenhara arrancando o poder à aristocracia feudal, arrastavam consigo novas formas de exploração, a exploração capitalista.
A consciência da existência de uma classe que vivia da exploração da riqueza produzida por terceiros, de profundas desigualdades e injustiças, da miséria, da fome e da guerra que esmagavam a dignidade de milhões de seres humanos sujeitos à máxima obtenção do lucro, exprimia-se na emergência das primeiras versões do socialismo utópico. Mas faltava passar da crítica moral para o conhecimento objectivo e científico sobre as leis que determinavam o funcionamento do capitalismo e, sobretudo, do caminho necessário para a eliminação da exploração e construção de uma sociedade nova.
É a Marx, com a colaboração preciosa de Engels, que a classe operária, os trabalhadores, os povos, as forças do progresso, devem esse grande passo em frente. A criação de um poderoso instrumento de análise, luta e combate no processo de emancipação humana e transformação da sociedade que permitiu compreender e desvendar as leis do modo de produção capitalista, designadamente da mais-valia e da acumulação, perceber o desenvolvimento do capitalismo e o papel da classe operária como força determinante na superação revolucionária do capitalismo e de construção de uma sociedade nova.
II
A contribuição de Marx para a compreensão do modo de produção capitalista constitui um passo de enorme envergadura e de valor universal na evolução do pensamento económico e político, particularmente desenvolvidos na sua obra O Capital.
Destaca-se, da sua interpretação, a compreensão de que a economia é uma ciência social, afastando-se dos que até então, ou daqueles que ainda hoje, procuram apresentar as leis de desenvolvimento económico como se de leis naturais se tratassem, como se as desigualdades, as injustiças fossem resultado de um qualquer “pecado original” e o lucro - objectivo supremo do modo de produção capitalista - um valor intrinsecamente humano.
A história das sociedades humanas já não era apenas uma sucessão de factos e acontecimentos mais ou menos aleatórios, mas antes o resultado do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de propriedade que os indivíduos estabelecem com as mesmas. Sociedades dividas em classes, com interesses contraditórios, designadamente na sociedade capitalista, com a burguesia, uma minoria detentora dos meios de produção, e o proletariado, uma imensa maioria sujeita, em campos opostos e com interesses antagónicos.
Percebeu que o mercado, espinha dorsal do sistema capitalista, é, antes de mais a expressão duma relação entre classes. Nesse mercado, a classe operária só tem uma mercadoria para vender, uma mercadoria muito especial e insubstituível, a sua força de trabalho, e precisa de a vender para satisfazer as suas necessidades. Por sua vez, os donos dos meios de produção precisão dessa mercadoria - a força de trabalho - sem a qual nada se produz ou transforma, sem a qual não podem obter o lucro e aumentar o capital, e por isso, vai tentar pagar o mínimo por essa força de trabalho, mediante um salário e que é o indispensável para o operário garantir o seu sustento e o da sua família, assegurando que essa mesma força de trabalho estará disponível no futuro.
A aparente troca livre e equitativa existente por via do salário, escondia afinal quem se via forçado a vender a sua força de trabalho por um período maior do que aquele que necessitava para compor o valor do salário, trabalhando gratuitamente, o trabalho excedente, criando para o capitalista a mais valia, fonte dos lucros e riqueza, de Capital, ou como disse Lénine “a pedra angular do sistema capitalista”. A extracção do trabalho excedente/mais valia, deve ser garantida pois assegura à classe dominante não só os seus meios de consumo e reprodução como classe, mas também os seus meios de dominação. A exploração capitalista reside precisamente aí, não num qualquer desvio moral ou ético, mas na apropriação da mais-valia produzida pela classe operária!
Marx compreendeu o capitalismo só tem um objectivo ao qual tudo se subordina: o lucro. Mas não um lucro qualquer, a sua natureza diz-nos que é o máximo lucro. No primeiro volume de O Capital, Marx cita um artigo que exprime de maneira bastante plástica o objectivo do modo de produção capitalista:
«O capital não recusa nenhum lucro, mesmo que muito pequeno, do mesmo modo que antigamente se dizia da natureza que tinha horror ao vazio. Com um lucro adequado, o capital é muito ousado. A garantia de 10% assegurara a sua aplicação em toda a parte; 20% garantidos provocarão uma avidez impaciente; 50%, uma audácia positivamente temerária; 100% deixam-no pronto a calcar com os pés todas as leis humanas; 300%, e não há crime de que tenha escrúpulos, nem risco que não corra, mesmo o de o seu proprietário acabar na forca. Se o tumulto e a desordem forem lucrativos, encorajará livremente um e outra. O contrabando e o tráfico de escravos provam amplamente tudo o que aqui se diz» (T. J. Dunning, Trades-Unions and Strikes, Londres, 1860, pp. 35-36).
Eis a mola impulsionadora do capital: o lucro. O lucro justifica a exploração e quanto mais lucro, quanto mais acumulação de capital, maior é a exploração. É isso que determina natureza exploradora, opressora, agressiva e predadora do capitalismo que sendo visível aos olhos de Marx em pleno século XIX, está presente hoje, como se de uma marca de água, ou melhor uma marca a fogo nas relações sociais, económicas e políticas vigentes na nossa época.
Marx desvendou que a pulsão para o lucro e o aumento da taxa da mais valia, é em si mesma, causa e consequência das insuperáveis contradições do capitalismo. Desde logo a contradição fundamental entre capital e trabalho, com o Capital a tudo fazer para aumentar a mais valia por via da redução dos salários e do aumento da jornada de trabalho, mas também, entre os monopólios e as camadas não monopolistas, ou entre as principais potencias capitalistas e os países em desenvolvimento.
Contradições que o próprio capitalismo encerra e que se revelam, seja na sua crise estrutural, seja nas suas crises cíclicas cada vez mais frequentes e destruídoras. A crise, como observou Marx, é inerente ao sistema de produção capitalista. Crise que tem como das suas principais manifestações a sobreprodução. Na busca do lucro máximo, o capitalismo produz mais do que aquilo que os salários que está disposto a pagar podem comprar, originando assim as crise de sobreprodução com o cortejo de falências, destruição de capacidade produtiva, aumento do desemprego, diminuição dos salários. Quando não a guerra, para uma mais intensa e profunda destruição de “forças produtivas”, que permita recomeçar o processo de acumulação capitalista a taxas de lucro adequadas, para de seguida tudo voltar a acontecer.
Marx não se limitou a estudar o capitalismo como ele era, mas aprofundou sobretudo as bases do seu desenvolvimento. Marx compreendeu o capitalismo na sua forma de desenvolvimento anárquico da produção e resultados irracionais face às necessidades e potencialidades das sociedades.
No seu desenvolvimento desigual, irruptivo e assimétrico criador de profundas injustiças e desequilíbrios, propiciador do agravamento das tensões e conflitos de grande escala. Na sua tentativa de mercantilização de todas as dimensões da vida e actividade humana como forma de expansão do domínio do capital e ampliação das possibilidades de obtenção do lucro o que torna o capitalismo cada vez mais global e omnipresente. Nas suas múltiplas formas em que procura contrariar a lei da baixa tendencial da taxa de lucro, onde sobressai a tendência da fuga do capital da esfera produtiva para a especulação e financeirização da economia. Na sua indisfarçável tendência para a estagnação económica, tão visível nas últimas décadas, face ao mito do crescimento acelerado e perpétuo. No crescente domínio do poder económico sobre o poder político, com a moldagem cada vez mais visível do Estado pela classe dominante aos seus interesses, como forma de assegurar a exploração, e que assumiu novos desenvolvimentos na sua fase imperialista. Nas suas guerras, incluindo das que resultam das contradições entre as próprias potencias capitalistas, que sacrificam e destroem a vida de milhões de seres humanos. Na predacção crescente de todas as riquezas e recursos naturais, até ao seu esgotamento, mesmo que tal ponha em causa a sobrevivência da espécie e civilização humana. Na acentuação do seu carácter parasitário, decadente e criminoso, com o florescimento da corrupção, do crime organizado, de tráficos hediondos que são inerentes ao capitalismo.
A identificação das leis de desenvolvimento do modo de produção capitalista desvendados por Marx e Engels e aprofundadas com genial contributo de Lénine, constituem um corpo teórico – o Marxismo-leninismo – cujas análises a vida não só confirmou como se projectam na actualidade e no futuro.
IV
Estes duzentos anos que nos separam do nascimento de Karl Marx trouxeram consigo profundas transformações na vida, na economia, na sociedade. Mas não alteraram, nem a natureza, nem se deu resposta às principais contradições do capitalismo, cujo desenvolvimento ameaça o futuro da própria humanidade.
A profundidade da crise estrutural do capitalismo está hoje a revelar o esgotamento de soluções que reanimem de modo sustentado o próprio crescimento económico. As dificuldades provocadas pela crise na realização da mais valia, acirram as contradições e os choques entre os grandes grupos monopolistas apoiados pelos respectivos Estados, aumentando a procura de novos mercados, impulsionando novos avanços e “paradigmas” no plano tecnológico, mas também elevando perigosamente o risco de conflitos e intervenções militares. Velho e esgotado, o capitalismo revelou ao longo dos anos uma enorme capacidade de adaptação e reinvenção, ainda que sem nunca pôr em causa a sua natureza e objectivos e assim assegurando a sua continuidade. Mas na visibilidade da sua caducidade, de etapa histórica e transitória da humanidade pesam ainda na actualidade, as consequências das experiências e derrotas do socialismo na URSS e no Leste da Europa. Que o capital aproveitou para decretar o capitalismo como eterno e o fim da história.
Incapaz de responder às suas próprias contradições, os ideólogos da economia burguesa, seja os mais encarniçados neoliberais, seja a sempre disponível social-democracia, procuram ocultar a raiz capitalista da crise, o falhanço dos seus principais axiomas, promovendo o confusionismo ideológico e político, procurando a desmobilização das massas da sua organização e luta. Não faltam por aí hoje, «bodes expiatórios» para explicar o que não podia ter falhado – o «funcionamento» do capitalismo. Indiciam razões da ordem da ética, da «crise dos valores, cívicos, morais». A crise das «elites» é a justificação repetida para a crise da União Europeia, a principal construção do capitalismo na Europa, sem líderes à altura do (mito) dos «pais fundadores». Ou ainda a ganância dos gestores e titulares do capital. E a resposta é a “regulação”, a “Responsabilidade Social da Empresa”, o gestor com ética e consciência social, os “bancos alimentares”, o “capitalismo de rosto humano” e outras formas de perpetuar e naturalizar a exploração.
A resposta ideológica, particularmente o acirrar do anti-comunismo, sempre fétido e fraudulento, vai-se intensificando com a reescrita da história, a criminalização do ideal comunista, o apagamento de qualquer alternativa fora do Capital, fora dos centros de decisão e interesse do imperialismo.
Mas o centro da resposta à crise estrutural e contradições do capitalismo passa pela revolução das forças produtivas. As novas tecnologias são apresentadas como prova do sucesso do sistema. E faz jeito na justificação do desemprego: não é o capital que desemprega, é a nova tecnologia. Mas para responder à queda tendencial da taxa de lucro, pelo aumento da produtividade, assegurando vantagens concorrenciais, sobra sempre um pequeno problema desvendado por Marx: a substituição de trabalho vivo (trabalhadores – capital variável) por trabalho morto (máquinas, sejam elas computadores – capital fixo), reduz a produção de mais valia e logo a prazo reduz a taxa de lucro, um beco, do qual o Capitalismo não encontra, nem encontrará saída.
Em Portugal, o Capitalismo que com o fascismo assumiu a forma de Capitalismo monopolista de Estado, sofre da mesma agonia. As relações de produção capitalistas expressam-se: no patamar superior de concentração da riqueza em contraponto com os baixos salários, o desemprego estruturalmente elevado ou a precariedade; na associação e dependência dos grupos económicos de base nacional com o grande capital estrangeiro; nos défices estruturais da economia portuguesa, a começar pelo seu défice produtivo, e a elevada dependência externa; na controlo por parte dos grupos económicos dos sectores básicos e estratégicos da economia nacional e no aprofundamento das contradições entre os grupos económicos e as camadas anti-monopolistas; na transformação da dívida privada em dívida publica; nas estruturas, instituições, leis e forma de organização do Estado e da administração pública; na mercantilização da saúde, da educação, da cultura, da arte, do ambiente e recursos naturais; na submissão à União Europeia e ao Euro; no alinhamento com as posições, estruturas e interesses do imperialismo como é a NATO. A política de direita concretizada ao longo de décadas por PSD, CDS e PS, é a política do capitalismo em Portugal
V
Marx demonstrou o carácter transitório do capitalismo que, tal como todos os outros modos de produção antecedentes, não é, como não o foram, o fim da história. E não o é, não só porque não dá resposta aos principais problemas da humanidade, mas sobretudo, porque o capitalismo, seja pelo desenvolvimento que propicia das forças produtivas, seja pela acentuada polarização social que cria, com a proletarização de um cada vez maior número de seres humanos, cria no seu próprio seio não só a base material para formas mais avançadas da organização social, como, e sobretudo, o sujeito capaz de empreender essas mesmas transformações.
Tal como o nosso Partido tem identificado, à medida que se desenvolvem os processos produtivos, que se aprofunda a divisão internacional do trabalho, que se concentra a riqueza e o capital, mais se vai tornando evidente, essa contradição fundamental, entre o carácter social da produção e a apropriação privada dessa mesma produção. Contradição que está patente também nas enormes possibilidades criadas pelo desenvolvimento cientifico e tecnológico para a resolução dos graves problemas da Humanidade e o agravamento destes resultante da apropriação dessas conquistas pelo capital, e que constituem obstáculos intransponíveis para o Capital, que os tenta contrariar mas não os pode superar.
Confirmado está o amadurecimento das condições objectivas para a superação revolucionária do capitalismo. Mas o capitalismo não vai morrer de morte natural por mais crises e guerras que possa vir a desenvolver.
O caminho apontado por Marx e Engels, na actual correlação de forças, a nível mundial defronta obstáculos de monta. Mas como também afirmamos no nosso Programa, na avaliação das perspectivas de evolução social e política do mundo contemporâneo é indispensável ter em conta que enquanto o capitalismo se formou e impôs como sistema dominante num processo abarcando vários séculos, o socialismo, surgindo no século XX, apenas conheceu durante algumas décadas os seus primeiros avanços históricos.
A luta de classes, motor da história, não só não desapareceu, como tenderá a acentuar-se, independentemente das novas formas e expressões que venha a assumir. Com uma grande confiança na validade teórica e prática das teses dos construtores do marxismo-leninismo. Nos progressos sociais e civilizacionais abertos pela Revolução de Outubro e, em Portugal, pela Revolução de Abril, o socialismo e o comunismo afirmam-se no futuro da humanidade. A luta pela sua concretização em Portugal, abolindo todas as formas de exploração do homem pelo homem é, foi e será, a razão de ser do PCP. É essa a homenagem que fazemos a Karl Marx.