Artigo de Manuela Bernardino para a publicação "100 dias que abalaram o regime" lançada por ocasião das comemorações do 50º aniversário do 24 de Março

Os estudantes comunistas na Crise de 62

Assinalar o 50º aniversário da “crise académica de 62” que constituiu a maior e mais prolongada acção de massas dos estudantes portugueses durante e contra a ditadura fascista é, antes de mais, evocar o papel das AAEE na condução dessa luta, só possível pelo seu prestígio, influência e força junto dos estudantes.
 
Desde logo como um amplo espaço de liberdade, democrático, em que todos podiam participar. Pela sua capacidade, demonstrada ao longo de anos, de responder a necessidades, interesses e reivindicações concretas no plano social e cultural. Da edição de folhas à cantina, das iniciativas culturais ao jornal da faculdade, do desporto ao turismo. Através de estruturas criadas dentro de cada Associação para responder à multiplicidade de actividades e do seu enlace com outras idênticas em diferentes Escolas, com a reunião inter-associações (RIA) e os encontros nacionais de estudantes assim se foi ampliando e fortalecendo o movimento associativo estudantil, que teve como acção constante de várias gerações a defesa da autonomia das AAEE, resultando como balanço que o fascismo nunca as conseguiu dominar.
 
62 beneficiou da experiência de 57, quando a ditadura tomou uma iniciativa legislativa que visava controlar as AAEE (o tenebroso decreto 40900). O estreito contacto das direcções das associações com os estudantes, o esclarecimento através de assembleias gerais, a mobilização em todas as escolas que culminou na presença massiva de estudantes na Assembleia Nacional fascista no dia da discussão do decreto, apesar da intimidação do aparato policial, obrigou o governo a recuar.
 
Também em 62 foi a determinação e a unidade dos estudantes, em torno das suas Associações, que possibilitou tão profundo e prolongado confronto com o poder político e o seu aparelho repressivo.
 
Os estudantes comunistas tiveram nos dois casos um papel essencial para a amplitude de tais movimentações, como incansáveis construtores da unidade e defensores da luta no plano legal e da sua articulação com a luta semi-legal e ilegal, ou seja, a sua acção clandestina como militantes comunistas era indissociável da sua actividade nas AAEE. É, aliás, uma verdade incontornável que na imensa maioria das direcções das associações e pró-associações da altura da “crise de 62”, assim como em outros organismos do movimento estudantil, estavam estudantes organizados ou ligados às estruturas do PCP (militantes e“simpatizantes” (1), mesmo que muitos posteriormente se tenham afastado dos seus ideais de então.
 
Relembrar hoje a “crise académica de 62” para além do convívio (2) que vai proporcionar entre muitos dos seus protagonistas seria útil que não se limitasse à evocação e descrição dos acontecimentos, mas que contribuisse prioritariamente para uma reflexão sobre a natureza do regime que fez recair sobre os estudantes uma violenta repressão e que durante quase meio século oprimiu o povo português e, fundamentalmente, avaliar o contributo que o movimento estudantil deu então para aprofundar as contradições do regime (3) e acelerar a sua crise.
 
A violenta carga policial - do fim da tarde do dia 24 de Março de 62 (4) - sobre milhares de estudantes, após a ocupação da Cidade Universitária visando concretizar a ordem ministerial da proibição do Dia do Estudante, despoletou uma enorme indignação e protesto que se traduziria numa nova e audaciosa forma de luta – a greve às aulas – para cujo desenrolar foram fundamentais os plenários, concentrações, desfiles, manifestações de rua que se realizaram e uma permanente informação quer aos estudantes quer à população – através dos Comunicados - como forma de contrariar a intensa campanha de desinformação da imprensa fascista.
 
A ocupação das instalações da AAC (5), não apenas sob a influência da luta que se desenvolvia em Lisboa mas como prolongamento da importante acção de massas das comemorações da Tomada da Bastilha (6) e a ocupação da Cantina da Cidade Universitária de Lisboa por mais de mil estudantes em apoio a 80 estudantes em greve da fome (7) que terminou de forma violenta com a invasão da Cantina pela polícia e a prisão em massa de todos os estudantes que aí se encontravam, projectaram a força da luta estudantil, a determinação, generosidade e coragem dos estudantes que contaram com a simpatia, apoio e solidariedade de vários sectores – desde logo vários professores – e da população em geral.
 
Muitos jovens tomaram consciência, pela primeira vez, da natureza do regime. A sucessão de cargas da polícia de choque, o cerco a instalações académicas, a ocupação e encerramento de associações de estudantes, a perseguição aos dirigentes, prisões e no final do ano as expulsões de numerosos estudantes da Universidade revelaram, para a maioria dos estudantes, a brutalidade da repressão que permitia manter Salazar no poder, consciência que levou a uma crescente politização do movimento estudantil e à identificação da luta dos estudantes com a luta mais geral do povo português pela liberdade e a democracia.
 
Aliás, as lutas estudantis de 1962 inserem-se num contexto nacional de desenvolvimento da luta popular e antifascista. A combatividade dos estudantes desenrola-se a par do ascenso da luta dos trabalhadores, com destaque para a luta dos assalariados agrícolas da zona do latifúndio que conquistam as 8 horas. Inserem-se no significado do grandioso 1º de Maio de 62 e desenvolvem-se no quadro do impacto do desencadear da luta armada em Angola contra o colonialismo português. São ainda influenciadas por movimentações de descontentamento de vários sectores e pelo ambiente dos protestos de massas e da Oposição Democrática contra a farsa eleitoral de Novembro de 1961, em que numerosos estudantes participaram. E pelo sucesso de fugas colectivas das cadeias do fascismo (8) que provaram que ele não era invencível.
 
Também o ambiente internacional de paz e desanuviamento, de importantes conquistas históricas para os trabalhadores – que agora estão a ser postas em causa – de lutas emancipadoras dos povos colonizados e de importantes avanços científicos, com destaque para a conquista do Cosmos, que uma posição de ridículo reaccionarismo dum professor do Técnico pôs em causa, negando “cientificamente” a ida do Sputnik ao Espaço, animaram e deram confiança à luta estudantil.
 
A nossa luta em 62 – a primeira das grandes lutas de estudantes que varreram a Europa nos anos 60 – teve significativa projecção internacional, contribuindo para o isolamento do fascismo no plano mundial.
 
A intervenção empenhada dos estudantes comunistas em 62, como antes e nas lutas que se lhe seguiram, com especial destaque para a greve de 69 em Coimbra, foi pautada pela defesa de AAEE legais e pelo seu carácter unitário, democrático e de massas, como garantia para a efectiva participação dos estudantes e como condição para o alargamento do movimento associativo estudantil. A sua acção, junto da massa estudantil, para a definição de objectivos concretos e imediatos de luta, desde as questões pedagógicas ao convívio, o seu trabalho para a constituição de listas que foram democraticamente eleitas, as intervenções em assembleias e reuniões das Associações, a colaboração nos seus boletins, a firme denúncia dos diferentes ataques a que elas estiveram permanentemente sujeitas e a defesa de negociações com as autoridades académicas e com o governo para as ultrapassar, envolvendo sempre a mobilização dos estudantes, possibilitaram a estreita ligação dos estudantes comunistas aos seus colegas. Mas era mais ampla a sua intervenção: nas colectividades de cultura e recreio, na sua ligação aos meios artísticos e intelectuais progressistas o que teve reflexos positivos nas próprias iniciativas das AAEE.
 
Os estudantes comunistas estiveram na primeira linha contra todos os encerramento de associações, na criação das Comissões Pró-Associações, contribuíram para a criação doutras estruturas com actividades específicas, como o Cine Clube Universitário de Lisboa, ou participaram na conquista de estruturas que o governo criou, como foi o caso do CDUL, numa constante acção de resistência às múltiplas tentativas de liquidar o movimento associativo e de fascisação da Universidade. Mas a sua actividade ia mais além. Denunciavam a repressão que caia sobre os estudantes, mas a sua solidariedade era para com todos os presos políticos e com a luta de todos os trabalhadores.
 
O papel dos estudantes comunistas na “crise de 62”, na condução da luta e da sua articulação com o movimento popular não pode ser subalternizada. Não se pode deixar cair no esquecimento que o PCP era, na altura, uma força fortemente implantada nas Universidades e liceus, gozava de grande prestígio, e muitos dos seus quadros eram dirigentes associativos que estavam organizados nas células das respectivas faculdades e que, durante a crise, mantiveram a ligação ao sector estudantil do partido.
 
Uma força que se alargou com a própria crise mas que, anos mais tarde, foi duramente atingida com a vaga de prisões de Janeiro de 1965, de estudantes de várias escolas, momento que viria a revelar a vulnerabilidade da organização dos estudantes comunistas face à repressão e a assinalar o enfraquecimento da unidade no movimento estudantil.
 
Ao realçar, nestas comemorações do 50ª aniversário da “crise académica de 62”, o papel e influência dos comunistas no movimento associativo e estudantil não pretendemos negar nem apagar a determinação e coragem de outros dirigentes e activistas estudantis com diferentes posicionamentos democráticos, de estudantes do sector católico ou de outros sem qualquer referência ideológica mas que se colocaram e mantiveram numa firme posição contra o fascismo durante a crise. Foi a unidade de todos que fez da crise de 62 uma inesquecível e inapagável acção de massas que, também ela, contribuiu para que o 25 de Abril acontecesse.
 
(1) que nele viam e sabiam ser a única força política organizada no meio universitário
(2) batalha que também então ganhámos e que contribuiu para uma maior participação das jovens universitárias na luta estudantil e, pode-se dizer, para o processo de emancipação das mulheres em Portugal
(3) lembrar que Marcelo Caetano, o homem da Mocidade Portuguesa e que viria a substituir Salazar, se distanciou em 62, como reitor, do Ministro da Educação que proibiu o Dia do Estudante
(4) 24 de Março passou a ser, muito justamente, o Dia de Estudante, em Portugal
(5) decidida em Assembleia Magna a 9 de Maio de 62
(6) em Novembro de 1961, como resultado das eleições para a AAC desse ano, em que participaram 3 mil estudantes e que deu a vitória a uma lista “unitária”
(7) a greve da fome foi outra nova forma de luta, com a particularidade de se realizar numa instalação em torno da qual se desenvolvia um processo reivindicativo pela sua gestão por parte dos estudantes e, simultaneamente, de contestação pela qualidade e preço das refeições, reivindicações que deram origem a uma canção que as popularizou
(8) de Peniche, em Janº de 60 e de Caxias em Dezº 61
 
[mesmo que no desenrolar e na agudização da crise se tenham manifestado hesitações e posições ultra legalistas num confronto que foi extraordinariamente violento com o poder]