Áudio
Fez no passado dia 15, 31 anos que foi promulgada a Lei do Serviço Nacional de Saúde. Após um intenso debate nacional que envolveu as populações, as autarquias, o movimento sindical e os trabalhadores da Saúde, foi consagrada em Lei uma das mais importantes conquistas de Abril. SNS foi o resultado da iniciativa revolucionária do povo e de muitos profissionais de saúde no contexto da Revolução.
A Revolução de Abril acabou com décadas de sofrimento do povo português e abriu as portas do desenvolvimento a um país onde pontificava um sistema de saúde muito fragmentado, sem uma estrutura de cuidados primários, uma rede hospitalar assente sobretudo nos hospitais das misericórdias e apenas cerca de 8 000 médicos. O acesso aos cuidados de saúde para a maioria dos portugueses era uma tarefa quase impossível, um bem escasso, só ao alcance dos ricos. No início da década de 70 a despesa em saúde era apenas de 2,8% do PIB.
Num contexto de uma intensa luta ideológica, de interesses antagónicos e de grupos de pressão, o PCP apresentou no seu VIII Congresso realizado em Junho de 1976, um conjunto de propostas políticas, muitas das quais vieram a integrar a Lei que, pela primeira vez procurou dar forma ao SNS.
Propostas como: a cobertura do país em serviços de saúde; a integração dos serviços no plano local; a descentralização de competências; o aproveitamento dos recursos existentes nos hospitais; a regulamentação e controlo da actividade clínica privada, ainda hoje mantêm pertinente actualidade.
Este era o princípio da responsabilidade prioritária do Estado em assegurar o direito à saúde dos portugueses, que a Constituição da República assumiu em 1976 e a que procurou dar forma, afirmando o Serviço Nacional de Saúde (SNS), como seu instrumento para a concretização da responsabilidade prioritária do Estado em garantir o direito à saúde a todos os portugueses independentemente da sua situação económica e social.
Foi com este SNS, apesar de atacado e fragilizado ao longo dos seus 31 anos de vida, que Portugal obteve significativos ganhos em saúde, fruto de um desempenho que levou a Organização Mundial de Saúde a classificá-lo como o 12º melhor a nível mundial, à frente de países como a Alemanha, a Grã-Bretanha, o Canadá ou os Estados Unidos.
Hoje, passados que estão 31 anos sobre a criação do SNS, recordamos aqui alguns dos argumentos utilizados na altura pelos seus detractores. Diziam então ser inviável quer do ponto de vista dos meios humanos, materiais e financeiros, quer do ponto de vista da qualidade da assistência prestada. Não são muito diferentes dos argumentos agora utilizados. São outras palavras mas no essencial mantêm as mesmas teses.
Ao longo destas três décadas a questão da universalidade e do financiamento têm estado sempre no centro do debate. Mais uma vez assim é com a entrega do PSD do seu projecto de revisão constitucional. Porque não temos memória curta, importa recordar aqui que apenas três meses e meio após a aprovação da Constituição da República, que consagrava a gratuitidade, o governo do PS formado a 23 de Julho de 1976, já utilizava a expressão “tendencialmente gratuito” que a maioria de direita havia de inscrever no texto constitucional na revisão efectuada em 1989. Não podiam entrar pela porta, entraram pela janela.
Com esta alteração, não foi apenas a introdução das taxas moderadoras que ficaram legitimadas, foi a teoria de “quem quer saúde, paga-a” pondo em causa a universalidade de acesso ao SNS, atingindo largas camadas da população.
Com a introdução de mecanismos de mercado o consumo das famílias em saúde tem crescido exponencialmente, confirmando-se assim a denúncia do PCP, na altura, de que o que se pretendia era passar para as famílias uma fatia cada mais significativa da despesa em saúde e não moderar o acesso aos cuidados de saúde. De acordo com os últimos dados disponibilizados pelas Contas Nacionais e, considerando apenas o período entre 2000 e 2007, o consumo das famílias em saúde passou de 3765 milhões de euros para 5897 milhões de euros, ou seja cresceu 57% e simultâneamente cresceu o acesso dos utentes aos serviços de saúde.
Tendo em conta a população residente no país e a dimensão média das famílias, este valor significa que a despesa média por família, passou de 1054 euros em 2000, para 1527 euros em 2007, valor que, de acordo com a variação do índice de preços ao consumidor atingirá em 2010 qualquer coisa como 1 600 euros (dois salários médios líquidos).
Ainda ontem se anunciava uma nova descomparticipação nos medicamentos que atingem os idosos mais pobres e particularmente os que têm doenças crónicas.
Afinal, como denunciámos na altura, a inscrição no texto constitucional da expressão tendencialmente gratuito apenas serviria para abrir espaço a uma maior desresponsabilização do estado e a um aumento dos custos para as famílias. A vida confirmou que tínhamos razão.
O PSD que sempre quis ir mais longe aí está com um projecto de revisão constitucional que no essencial, no que à saúde diz respeito, aponta para um conjunto de ideias velhas que visam retirar ao Estado importantes responsabilidades na garantia de acesso dos cidadãos aos cuidados de saúde, deixando-lhe a responsabilidade de promover a saúde e financiar o acesso dos cidadãos às unidades privadas, ao mesmo tempo que transfere para os grupos privados a prestação de cuidados.
Um golpe que a ser concretizado acabaria com o SNS tal como o conhecemos. A luta pela defesa do SNS tornou-se assim um imperativo nacional.
Não estamos apenas perante um modelo diferente de organizar o sistema de saúde em Portugal. Retirar o tendencialmente gratuito da Constituição, dar liberdade de escolha aos cidadãos e encontrar novas formas de co-financiamento das despesas com a saúde, aplicando aos cidadãos o critério da situação fiscal, significa repetir a injustiça já existente no pagamento de impostos e penalizar duplamente quem trabalha. Por outro lado atribuir aos utentes um maior pagamento directo das despesas com a saúde, prejudicando mais os que têm maiores dificuldades, é especialmente grave se tivermos em conta que em Portugal os cidadãos contribuem já directamente do seu bolso, com mais de 40% dos gastos com a saúde.
Para os arautos do primado do privado a questão central é o acesso dos grupos privados ao chamado mercado da saúde que hoje já representa mais de 9% do PIB, qualquer coisa como 15 mil milhões de euros.
Privados que hoje já têm nas mãos cerca de 50% das unidades de saúde com actividade em Portugal, número que tem tendência para crescer, caso não seja travado o processo de privatização em curso e não sejam contidos os licenciamentos para novas unidades, nomeadamente grandes hospitais. Privatização que tem levado ao aumento desmesurado de custos.
O que hoje acontece com a hemodiálise, concentrada num reduzido número de prestadores que impõem os preços porque o Estado não tem capacidade de resposta, é um bom exemplo do resultado das privatizações.
O negocio da ADSE com os Hospitais da Luz e dos Lusíadas, imposto pelo Ministério das Finanças, é também um bom exemplo da promiscuidade entre o público e o privado que gera fortes constrangimentos e prejuízos ao SNS.
Camaradas e amigos
Destruir o Serviço Nacional de Saúde será um retrocesso civilizacional de dezenas de anos que terá consequências desastrosas na qualidade de vida dos portugueses, mas também no desenvolvimento económico do país.
O que o PSD quer obter com a revisão constitucional e o PS vai concretizando no governo, é uma política de saúde a duas velocidades: uma para os detentores de altos rendimentos e outra caritativa, assistencial, de baixo perfil para os pobrezinhos. Lutaremos com todas as nossas forças contra a divisão de papéis que PS e PSD querem levar à prática que se traduz numa ideia muito clara: financiamento para o Orçamento de Estado e os lucros para os grandes grupos económicos.
A luta em defesa do Serviço Nacional de Saúde exige não apenas a mobilização dos profissionais de saúde, mas os portugueses de uma forma geral.
São bem vindas todas as iniciativas que tenham por objectivo defender a garantia do acesso aos cuidados de saúde a todos os portugueses.
Mas não basta dizer-se que se está com o SNS, contra a revisão da Lei fundamental proposta pelo PSD. É preciso ter coerência entre o que se afirma e o que se faz, sermos determinados no objectivo de defender o SNS e não ter uma prática de compromissos com aqueles que querem servir-se dele ou mesmo destruí-lo. É bom que se diga que o perigo maior neste processo não vêm de quem faz a proposta, porque sozinhos não a podem concretizar, mas daqueles que como o PS tem um passado de cedências à direita, nesta e noutras matérias.
Hoje simultaneamente com esta evocação está a realizar-se no Porto um Forum promovido por um conjunto de pessoas ligadas ao PS que tiveram e têm importantes responsabilidades políticas no sector da saúde, algumas das quais, como é o caso do ex-ministro da Saúde Correia de Campos com as mais elevadas responsabilidades no processo de fragmentação e fragilização do SNS.
Subscrevem um manifesto a desancar no projecto de revisão constitucional do PSD em defesa do SNS. Bem-vindos! Mas se qualquer alteração, boa ou má, exije uma maioria qualificada de dois terços, seria determinada pelo PS qual é a angústia e indignação do PS?
O problema é o de saber se, como está demonstrado em todas as revisões constitucionais anteriores, o PS não retoma a tese de São Tomás, e querem que os portugueses olhem para o que diz e não para aquilo que faz!
Os subscritores do manifesto criticam e bem o alargamento do conceito de liberdade de escolha proposto pelo PSD. Mas a Entidade Reguladora da Saúde com quem se identificam vai proclamando que em relação aos Cuidados de Saúde Primários essa liberdade está afectada. Falando claro: como está à vista a contensão das despesas do Estado com a saúde, logo dever-se-ia aumentar a capacidade de oferta no privado também nos Cuidados Primários!
Ao longo dos anos e apesar dos ganhos em saúde alcançados em Portugal, após a Revolução de Abril, estarem estritamente associados ao desenvolvimento da rede de CSP, estes tiveram em muitos momentos o seu desenvolvimento contrariado pela oposição dos defensores da prestação privada de cuidados de saúde, que influenciaram decisivamente as políticas de saúde do PS, PSD e CDS.
Não é por acaso que a Organização Mundial de Saúde considera que os CSP são parte integrante do desenvolvimento socioeconómico da comunidade e do sistema nacional de saúde, de que constituem função central e são o principal núcleo. Os CSP são o primeiro elemento de um processo permanente de assistência sanitária que ao aproximar os cuidados de saúde do lugar onde as pessoas vivem e trabalham são o primeiro nível do seu contacto com o sistema nacional de saúde.
Não tem sido este o entendimento dos sucessivos governos do PSD e do PS. Hoje mais de 700 mil portugueses continuam sem médico de família, continuam a encerrar serviços de proximidade e a reforma assente nas Unidades de Saúde familiar (USF) e nos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACS) continua sem resolver os constrangimentos no acesso ao médico de família.
As políticas que têm sido seguidas, só não têm tido consequências mais negativas, dado o apego dos profissionais de saúde à causa do serviço público.
Há muito que o PCP chamou a atenção para o facto de que a designada reforma dos Cuidados de Saúde Primários, esboçada pelo Governo do PSD-CDS de Barroso/Santana Lopes e desenvolvida pelo Governo PS/Sócrates desde o início de 2006, é parte integrante de processos de privatização da prestação de cuidados de saúde.
Uma verdadeira rede de Cuidados de Saúde Primários necessitam de um significativo e planeado investimento público que os dote com os recursos indispensáveis à sua missão, em particular ao nível dos recursos humanos, mas também de instalações, equipamentos e competências técnicas essenciais.
O risco iminente de desagregação da rede de CSP impõe a adopção imediata de um Plano de Emergência que previna situações de ruptura na disponibilidade de profissionais para aprestação de serviço na rede de CSP e que assegure as condições de reabertura dos serviços entretanto encerrados sem alternativa eficaz, designadamente Serviços de Atendimento Permanente ou similares.
Camaradas e amigos
Nas últimas semanas voltá-mos a ouvir um coro de vozes bem afinadas, muito preocupadas com o aumento da despesa e das dívidas nos hospitais públicos.
O aumento da despesa na saúde, particularmente nos hospitais públicos, tem sido uma das mais fortes linhas de ataque ao SNS.
Numa operação de demagogia eleitoral o PS prometeu que os Hospitais Sociedades Anónimas passariam a ser Entidades Públicas Empresariais. Esta mudança de Estatuto jurídico, para além de facilitar a sua privatização no futuro, não foi acompanhada de quaisquer medidas de financiamento incentivadoras do aumento de eficiência e de qualidade. A desarticulação entre os cuidados hospitalares e os cuidados primários acentuar-se-á com a crescente desintegração da gestão entre eles, já que a empresa hospital se preocupa com os seus resultados e os centros de saúde, cuja privatização se antevê, têm a mesma preocupação. Assim as ineficiências manter-se-ão, tal como os custos de funcionamento.
Aumento da despesa que tem particularmente nos custos com os medicamentos e na aquisição de serviços externos, a sua principal causa, áreas onde os compromissos com os grupos privados prestadores de cuidados de saúde, com a produção, distribuição e venda de medicamentos são muito significativos.
A tese defendida pelos defensores do primado do privado na saúde, é de que o Estado não tem os recursos necessários para manter, por si só, o financiamento do SNS.
Gastamos mais do que podemos, dizem.
Como é sabido os custos da saúde não são apenas resultantes de problemas de ordem biológica. Mas sobre isto os teóricos do neoliberalismo nada dizem. A pobreza e os baixos rendimentos das famílias, as más condições de trabalho, o desamparo social, as desigualdades socais, estão identificados como os mais poderosos indutores de estilos de vida insalubres e de doença.
Ao contrário das opções que têm sido tomadas, uma política orientada para a eliminação de injustiças e desigualdades socais é um componente indispensável da prevenção da doença e da promoção da saúde, condição necessária da sustentabilidade do SNS.
O seu adequado financiamento e reforço como serviço público de carácter universal, geral e gratuito, são condições essenciais para o desenvolvimento económico e o progresso social.
Camaradas e amigos
A falta de motivação dos profissionais, uma política de recursos humanos que não garante uma carreira pública e nem a valorização profissional e salarial dos profissionais de saúde, são as causas principais da fuga de muitos mais profissionais para o sector privado, mesmo sabendo que não é aí que vão encontrar as condições laborais que respondam ao seus anseios, e para o estrangeiro, gorando as expectativas de muitos jovens trabalhadores e desperdiçando mão-de-obra altamente qualificada em que o Estado também investe na sua formação.
Com o apoio parlamentar do PS, o anterior Governo desenvolveu um pacote legislativo que assenta em quatro vectores fundamentais: facilitar o despedimento, reduzir e eliminar direitos, agravar as condições de trabalho, atacar e desacreditar os sindicatos.
O actual governo não só mantém todas as alterações introduzidas pelo anterior, como avançou com um conjunto de medidas, nomeadamente a regra de entrada de 1 trabalhador por cada 3 que saiam, que está a funcionar como um garrote que vai asfixiando os serviços até estes paralisarem, bem como a penalização de 6% nas reformas por cada ano a menos de trabalho, que tem levado à saída de centenas de médico por reforma.
Incrédulos quanto às reais possibilidades de alterações da situação, expectantes em relação às iniciativas do poder central e divididos pelos interesses e vícios instalados no sistema, muitos profissionais de saúde têm tido dificuldades em associar-se ao esforço necessário para definir propostas de defesa do SNS e à luta consequente por elas. No entanto cabe-lhes um papel chave na luta pela defesa e desenvolvimento do SNS.
O descontentamento acumulado na sociedade em relação à qualidade dos cuidado de saúde, pelo encerramento de muitos serviços locais sem criação de alternativa, têm tido expressões diferenciadas quanto à necessidade e possibilidade de êxito da luta em defesa do SNS público.
Em confluência com o esforço daqueles que sendo profissionais de saúde, organizações associativas, eleitos do Poder Local ou em outras instituições, tudo farão para dinamização da luta das populações e profissionais, na defesa e desenvolvimento do SNS e a garantia do direito à saúde de todo os portugueses que passa por:
-Promover a sustentabilidade e financiamento adequado do SNS, desenvolvendo plenamente as suas potencialidades, através do total aproveitamento da capacidade instalada e do reforço dos recursos humanos;
-Terminar com o actual modelo de empreserialização dos serviços de saúde públicos, reintegrando os Hospitais EPE no sector Público Administrativo, acompanhado de medidas que tornem eficiente a sua gestão;
-Acabar com o absurdo e injusto pagamento das taxas moderadoras;
-Avançar com uma verdadeira reforma dos Cuidados de Saúde Primários com um significativo investimento em meios humanos e técnicos, garantindo a todos o seu médico e enfermeiro de família;
-Melhorar as condições de trabalho, repor direitos e dignificar todas as carreiras de trabalhadores;
-Elaborar imediatamente um programa para a formação de profissionais de saúde, principalmente de médicos;
-Criar o Laboratório Nacional do Medicamento e incrementar a produção nacional;
-Avançar com legislação que defina com rigor a intervenção de cada uma das componentes do sector do medicamento, desde a produção até à venda a retalho, impedindo em qualquer momento alguma das partes possa ter uma intervenção do tipo cartel.
Eis um conjunto de propostas do PCP que são politicamente necessárias, socialmente justas e técnica e financeiramente exequíveis. Propostas indíssociáveis da luta pela ruptura e a mudança na política nacional.
Que viva o SNS!