Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do PCP, Sessão Pública sobre "Nacionalizações e democracia económica"

"O país precisa é de um Sector Empresarial do Estado forte e dinâmico, ao serviço da democracia e do desenvolvimento"

Áudio

As severas medidas de austeridade que acabam de ser anunciadas a pretexto da crise e do défice das contas públicas e no seguimento das que foram avançadas há dois meses pelo governo no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC), não revelam apenas o carácter de classe de uma política anti-social e anti-popular e de abdicação nacional, são igualmente a expressão concreta da política de direita e de recuperação capitalista que tem conduzido e continua a conduzir o país para o desastre económico e social.

O momento que vivemos e os problemas que o país enfrenta – desemprego, desigualdades, dívidas, défices e agravadas dependências – não podem ser desligados da concretização de uma política que tem como uma das suas orientações nucleares a privatização de todos os domínios da nossa vida colectiva, visando a reconstituição, criação e reforço de grandes grupos monopolistas e a promoção da centralização e concentração da riqueza do país nas suas mãos.

De facto, o agravamento da situação económica geral do país se é o resultado das políticas económicas e sociais de sucessivos governos dos últimos anos e das opções de integração comunitária, é, particularmente, consequência das políticas de destruição do sector empresarial do Estado, da alienação da sua capacidade e dos seus instrumentos de intervenção e de destruição dos sectores produtivos que conduziram à financeirização crescente da economia nacional e à captura de sectores estratégicos pelos grandes grupos económicos e o capital multinacional.

Por muito que os grandes interesses o neguem e se adense o rol de mistificações acerca do papel da propriedade social e do Estado na economia e na promoção do desenvolvimento, são as privatizações que estão no centro do declínio e estrangulamento da economia portuguesa, dos principais défices estruturais e desequilíbrios produtivos, da perda de recursos públicos e de soberania em sectores e serviços estratégicos.

Aqui no distrito de Setúbal residem alguns dos mais gritantes exemplos de uma política de declínio nacional e de abandono dos interesses do país, desta região e dos seus trabalhadores, designadamente com a liquidação da indústria naval, da indústria química e siderúrgica.

O debate que agora se abre certamente não deixará de colocar em evidência todo o trajecto e consequências trágicas dessa política que sustentou a ofensiva de recuperação do capital monopolista que atravessou as duas últimas décadas e que tem no PEC 2010/2013 um novo e criminoso surto, tal como a necessidade objectiva das nacionalizações há trinta cinco anos atrás. Mas também a importância e actualidade da existência de sector público, nos sectores estratégicos, como condição chave para a manutenção em mãos nacionais de alavancas económicas decisivas ao desenvolvimento do país e para assegurar um Portugal de progresso e de justiça social.
O processo de nacionalizações de 1975, cujo aniversário comemoramos, constituiu uma inapagável realização de Abril, da classe operária, dos trabalhadores e do povo português que resultou não de um qualquer acto voluntarista, mas de uma necessidade objectiva de defesa da democracia nascente, de resposta à sabotagem económica da contra-revolução e à indispensabilidade de dotar o país de um instrumento capaz de promover o seu desenvolvimento com justiça na distribuição da riqueza nacional.

As nacionalizações que no final do primeiro semestre de 1976 abrangiam quase de duas centenas e meia de empresas, com particular destaque para os sectores da banca e seguros, energia, transportes, metalurgia e metalomecânica pesada, químico, celulose, entre outros, permitiram não apenas liquidar os monopólios – que com os latifúndios constituíam a base de sustentação do fascismo – mas também criar uma sólida alavanca para acelerar o progresso económico do país.

Uma realidade e um património que representavam uma transformação profunda nas estruturas económicas e sociais em Portugal e que abria uma perspectiva completamente nova à evolução da nossa economia e da nossa sociedade.

Perspectiva que se experimentou com sucesso, mas posta em causa desde muito cedo pela acção da contra-revolução e pela política de recuperação capitalista e restauração monopolista, promovida pelo PS, PSD e CDS-PP em permanente articulação, promiscuidade e cumplicidade entre si e o poder económico monopolista em reconstrução.

Uma política sustentada por uma intensa e mistificadora campanha ideológica que passou a denegrir e a utilizar de forma sistemática a mentira contra tudo o que é público e serve o interesse de todos.

Desde logo a mentira dos prejuízos do Sector Público, peremptoriamente desmentida pelo Livro Branco das nacionalizações no qual se demonstrou que elas foram financeiramente vantajosas para o Estado português.

Uma campanha que escondeu deliberadamente o facto das nacionalizações terem atingido empresas, em grande parte, descapitalizadas, endividadas e sem viabilidade económica e que acabariam por ser posteriormente cedidas, já consolidadas financeiramente e com boas condições de rendibilidade, por via da privatização a baixo preço.

Foram várias as justificações que, em momentos diferentes, alimentaram o processo privatizador. Disseram, como dizem novamente hoje, que era para combater o défice e abater a dívida pública.

Mas a verdade é que quem olha para a dívida pública portuguesa e compara a sua evolução desde o inicio das privatizações no final dos anos oitenta, verifica que depois do Estado ter alienado uma centena das principais empresas públicas, a dívida pública não só não melhorou, como se agravou.

No início dos anos noventa, a dívida pública representava 57,8 por cento do PIB. Dezoito anos e após o Estado ter encaixado mais de 27 mil milhões de euros, a dívida pública atinge os 77,2 por cento do PIB. Isto é, foram-se as empresas e aumentou a dívida.

Entretanto, os lucros acumulados no período que quase coincide com o início do actual governo pelos grupos económicos e financeiros criados a partir de empresas que foram privatizadas, e considerando apenas as ligadas à banca, à energia, às comunicações, cimentos e transportes, envolvendo 12 grandes grupos, somaram o valor que essas empresas renderam ao Estado quando foram vendidas.

Quem não se lembra da muita propaganda e das enganadoras justificações que anunciavam a necessidade de privatizar importantes empresas na base da ideia das inquestionáveis vantagens para os consumidores, com a baixa dos preços e a elevação da qualidade do serviço e dos produtos que o fim dos monopólios e mais concorrência iriam garantir?

Hoje, bastaria ver o que se passa nos diversos sectores, mas com evidente clareza no sector dos combustíveis e da energia eléctrica para constatar a falácia de tal tese e das desvantagem quer para os trabalhadores, quer para os consumidores com a privatização das principais empresas de tais sectores.

Com as privatizações liquidaram-se directamente mais de 100.000 postos de trabalho, agravou-se a distribuição da riqueza, atacaram-se direitos dos trabalhadores, generalizou-se a precariedade e a subcontratação e os consumidores passaram a ter preços superiores aos que são praticados na Europa, onde os salários são o dobro ou triplo dos salários dos portugueses.

Nem acabaram os monopólios, nem o serviço melhorou, nem tão pouco a prometida baixa de preços se confirmou. O que se confirmou foram os milhões de euros de lucro, sempre em crescendo à custa também da própria competitividade do conjunto da economia portuguesa.
Na verdade com as privatizações, comprometeu-se o papel de empresas que sob o controlo do Estado constituíam alavancas estratégicas essenciais para a aplicação de uma política de desenvolvimento nacional e que, assim, ficaram subordinadas aos interesses privados e à lógica de maximização do lucro.

Com as privatizações, reduziu-se a receita do Estado e limitou-se a sua capacidade na resolução dos problemas do país.

Uma das principais causas do défice das contas públicas de hoje que o Governo afirma querer combater, está no desvio de muitos milhares de milhões de euros de lucros e de impostos, de empresas altamente rentáveis que entretanto foram privatizadas.

Com as privatizações aumentou igualmente o domínio do Capital estrangeiro na vida nacional, agravou-se a balança de pagamentos, perderam-se importantes elementos da soberania nacional, milhares de milhões de euros de riqueza produzida, foram e são, transferidos diariamente para os bolsos do capital estrangeiro com o acontece com os lucros da GALP, da CIMPOR, ou do Banco Totta.

Justificaram em dado momento as privatizações, como o fez António Guterres, com o argumento de que os novos grupos privados eram os elementos racionalizadores das transformações económicas e da modernização do país.

Também nesta matéria bastaria olhar para a evolução da primeira década deste nosso século XXI para contactar as cada vez mais patentes debilidades estruturais do país e de uma economia subcontratada, fragilizada, dependente e assente num modelo de mão-de-obra barata e precária para se ver o efeito racionalizador e modernizador da acção dominante dos grandes grupos económicos na sociedade portuguesa.

Concentrados predominantemente na produção de bens não transaccionáveis e alargando de forma crescente o seu domínio em áreas como as da saúde e educação, estes grupos passaram a assumir, de facto, em muitos sectores de actividade um carácter monopolista reforçado pela destruição e absorção de concorrentes nacionais, por associações de participações cruzadas e de concertação de preços e pela aliança com poderosas transnacionais, constituindo um factor não de modernização, mas de estrangulamento económico, de agravamento das desigualdades, de intensificação da exploração dos trabalhadores e de ruína das pequenas empresas.
O estrangulamento e a ruína de milhares de pequenas empresas ao longo destes anos, explica-se em grande medida pelo sistemático agravamento dos custos da energia, das taxas de juro, dos seguros, das telecomunicações, das portagens, etc. que passaram a engordar o grande capital monopolista.

Trinta e seis anos depois da Revolução de Abril, os grandes grupos económicos acabaram por reassumir um papel dominante e determinante na economia portuguesa e constituir-se como uma poderosa oligarquia, tecendo entre si e com o capital estrangeiro e outros sectores da grande burguesia nacional uma densa rede de ligações económicas, financeiras, sociais e políticas que passaram a decidir o conjunto das opções de política económica e social e o próprio rumo do país. Alguém lhes fez o serviço!

Num processo que contou ao longo dos anos com a nomeação de conselhos de administração que se constituíram como comissões liquidatárias de algumas dessas empresas, que promoveu o estrangulamento financeiro de empresas e o desvio de verbas para financiar o Orçamento de Estado, que transformou empresas públicas em sociedades anónimas, que promoveu a especulação bolsista e a promiscuidade entre membros de governos e administrações dos grupos económicos das empresas privatizadas.

O poder ostentado e exercido pelos grandes grupos económicos assume uma ilegítima dimensão política e económica, que subverte totalmente o princípio constitucional da subordinação do poder económico ao poder político e põe em causa a Constituição da Republica e o próprio regime democrático.

As privatizações anunciadas no PEC, envolvendo 17 empresas do sector empresarial do Estado vão agravar todos os problemas decorrentes das anteriores privatizações. Empresas onde se onde se incluem os CTT, a TAP, a ANA, aquilo que resta da presença do Estado na REN, na GALP, na EDP, os Estaleiros Navais de Viana do Castelo, a CP Carga, a EMEF, parte da Caixa Geral de Depósitos (designadamente a sua componente de seguros), entre outras empresas, isto para além da concessão a privados da exploração das ligações ferroviárias mais lucrativas, ficando a parte que dá prejuízo nas mãos do Estado.

Trata-se na realidade de um novo atentado aos interesses nacionais e uma nova fonte de negócio e domínio para os grandes grupos económicos e financeiros.

Um novo atentado que é acompanhado por um violento roubo nos salários, o aumento do IVA, o corte no subsídio de desemprego, o abandono do investimento público, incluindo de projectos de interesse nacional, mas importantes para o desenvolvimento deste distrito de Setúbal, o corte no apoio às empresas públicas e da redução das verbas destinadas às autarquias locais, num momento em que se impunha apoiar e dinamizar também os pequenos investimentos para criar emprego e combater a crise económica.

Uma séria e grave ofensiva só pode ter como resposta a mais veemente condenação do nosso Partido e que se traduzirá, por decisão ontem do nosso Comité Central, na apresentação de uma moção de censura ao governo, dando resposta e sequência ao protesto de largas camadas do nosso povo, mas também à luta que tem na acção nacional da CGTP do próximo dia 29, um momento alto do combate que é necessário travar contra esta medidas.

A luta do dia 29 de Maio é a maior e mais eficaz censura às medidas violentas que resultam da associação PS/PSD. Dirigimos por isso um forte apelo aos trabalhadores e à população do distrito para participarem em massa na manifestação, recusando a resignação, censurando e combatendo esta caminhada para o desastre social e nacional!

Uma censura à política de mentira de PS e PSD que estão a fazer o contrário do que prometeram ao povo.

Uma censura que é expressão clara de rejeição de um caminho de estagnação e retrocesso que PS e PSD estão dispostos, a não serem impedidos, a manter e a agravar.

A dimensão e profundidade dos problemas nacionais reclamam, não a persistência na mesma política errada e injusta como a que é proposta no PEC, mas uma ruptura com a política de direita e a concretização de uma política patriótica e de esquerda.

Uma ruptura e uma mudança que passam pela decidida afirmação da propriedade social do Estado em sectores básicos e estratégicos com a reversão ao sector público, por nacionalização e/ou negociação adequada, de empresas e de sectores que foram privatizados.

O PCP considera que aquilo que o país precisa é de um Sector Empresarial do Estado forte e dinâmico, ao serviço da democracia e do desenvolvimento que constitua um instrumento para responder aos problemas do país, para manter em mãos nacionais alavancas económicas para promover uma política de emprego e a elevação das condições de vida.

Um Sector Público, num quadro de uma economia mista, com uma dimensão e peso determinantes nos sectores básicos da economia nacional, desde logo na banca e seguros; na energia, comunicações e telecomunicações; água, saneamento e resíduos; transportes e vias de comunicação; indústria e outros sectores estratégicos, designadamente nas áreas da comunicação, da investigação e desenvolvimento tecnológicos.

Se algumas das privatizações previstas no PEC se concretizassem elas significariam pura e simplesmente o desaparecimento de algumas dessas empresas, o despedimento mais que certo de milhares de trabalhadores, a tomada pelo capital estrangeiro de novos sectores estratégicos, o aumento dos custos dos bens e serviços prestados às populações, o agravamento das assimetrias regionais e injustiças sociais que existem no país.

Mas ao contrário do que aquilo que PS, PSD e o grande capital pretendem fazer crer, o PEC não é lei.

Todas e cada uma das medidas aí previstas podem e devem ser derrotadas. As privatizações podem e devem ser derrotadas, assim se mobilizem em primeiro lugar os trabalhadores e as suas estruturas representativas. As privatizações podem e devem ser derrotadas assim se empenhem as populações na luta em defesa dos serviços públicos.

As privatizações podem e devem ser derrotadas assim se manifestem todos os patriotas e democratas que aspiram a um país de progresso, de justiça social, a uma pátria soberana, livre e democrática.

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