Áudio
Estamos aqui, hoje, a assinalar o 35º aniversário do início da Reforma Agrária, momento marcante da História do nosso País, em que os assalariados agrícolas do Alentejo e Ribatejo - levando por diante as conclusões da I Conferência dos Trabalhadores Agrícolas do Sul, realizada pelo PCP, em Évora, em 9 de Fevereiro de 1975 - avançaram audaciosamente no caminho da construção concreta da Reforma Agrária e substituíram o desemprego e a miséria pela produção, o trabalho e o pão.
Como incisivamente afirmou, na altura, o camarada Álvaro Cunhal, «vivemos um momento histórico nos campos do Sul. Pelas mãos dos trabalhadores, a Reforma Agrária deu os primeiros passos. Do Alentejo das terras incultas, das charnecas, dos pousios, do gado raro e miserável, dos baixos rendimento das culturas; do Alentejo do desemprego, da fome a da miséria, os trabalhadores, com o apoio do Estado democrático, farão um Alentejo com uma agricultura que dará em abundância os produtos de que os trabalhadores e o País necessitam». E assim foi.
Tratou-se de um acontecimento que tinha, a montante, décadas de luta desenvolvida pelo proletariado agrícola contra o latifúndio opressor e explorador e sustentáculo assumido do regime fascista – luta que, por isso mesmo, tinha na consigna «a terra a quem a trabalha» uma referência fundamental. Décadas de uma luta que nunca deixaremos de valorizar devidamente, pelo que ela significou no combate ao fascismo e na construção do 25 de Abril libertador e pelo papel que nela desempenhou o nosso Partido, seu grande organizador e dirigente.
Na nossa memória colectiva, perdurará para sempre o exemplo de coragem e de heroísmo demonstrados por milhares e milhares de proletários agrícolas, as perseguições, as prisões, os espancamentos, as torturas a que foram submetidos pela brutal repressão fascista. E jamais esqueceremos os camaradas que deram as suas vidas nessa luta e que tombaram, vítimas dos assassinos a mando do regime fascista: Alfredo Lima, em Alpiarça, em 1950; Catarina Eufémia, em Baleizão, em 1954; José Adelino dos Santos, aqui, em Montemor-o-Novo, em 1958. Deles diremos, como diz a Heróica de Lopes-Graça: «os mortos não os deixamos/para trás/abandonados/ fazemos deles bandeiras/guias e mestres soldados/dos combates que travamos».
A Reforma Agrária foi, desde o início, alvo de ataques os mais diversos e de uma desenvergonhada campanha de mentiras e calúnias, deformando e caricaturando os seus verdadeiros significado, objectivo e resultados alcançados – uma campanha que ao longo dos tempos foi assimilada pelos re-escrevedores oficiais da história ainda hoje activos.
Nos meses que se seguiram ao 25 de Abril, os assalariados agrícolas, organizados nos seus sindicatos recém-criados, foram confrontados com uma situação particularmente difícil que os obrigou a desenvolver importantes lutas contra os grandes agrários, que recusavam dar-lhes trabalho e procediam a uma generalizada acção de sabotagem económica que viria a assumir as mais graves expressões: os gados eram abandonados ou eram levadas clandestinamente para Espanha; a azeitona não era apanhada e olivais eram incendiados; as culturas eram abandonadas; as máquinas eram retiradas das explorações; hortas e outras culturas eram destruídas – ao mesmo tempo, muitos desses agrários pediam dinheiro aos bancos para trabalhos agrícolas e gastavam-no em proveito próprio.
Com tudo isto, o desemprego aumentava e, tal como no passado fascista, a fome e a miséria instalavam-se nas casas dos trabalhadores. Assim, «a Reforma Agrária surge natural como a própria vida, aparece como necessidade objectiva de resolver o problema do desemprego e da produção, como solução indispensável e única».
E nasceu no dia em que os trabalhadores, pela primeira vez na História do nosso País, tomaram a decisão histórica de ocupar as terras do latifúndio (de início apenas terras incultas e abandonadas) e de imediato as começaram a cultivar, num processo em que milhares de homens e mulheres, tomando nas próprias mãos os seus destinos, passaram a trabalhar mais de um milhão de hectares de terra, concretizando um inovador programa de transformação económica e de justiça social que iria resolver os problemas da produção e do emprego nos campos do Sul e incorporando na sua actividade uma perspectiva de desenvolvimento – enfim, organizando e dirigindo a produção agrícola; transformando radicalmente as estruturas agrárias; diversificando o processo de produção e, com isso tudo, pondo fim ao desemprego e conquistando melhorias radicais nas condições de trabalho e de vida dos trabalhadores e das populações da região.
Tratou-se de um processo original, conduzido no fundamental pelo proletariado agrícola alentejano e ribatejano, e que, ao contrário do que propalavam os propagandistas da reacção, não foi importado de lado nenhum, antes nasceu do esforço e da imaginação criadora dos trabalhadores organizados nas suas mais de 500 UCP’s/Cooperativas – elas próprias, enquanto estruturas produtivas de novo tipo, nascidas dessa mesma criatividade.
Tratou-se de um processo suportado num igualmente inovador e criativo conceito de propriedade e uso da terra, que rejeitava a sua posse individual e a reclamava para a trabalhar, aumentar a produção agrícola, desenvolver o País. Vale a pena relembrar as declarações de um trabalhador agrícola aqui de Montemor-o-Novo, que, na sua simplicidade, explicava assim a questão: «os trabalhadores alentejanos e ribatejanos nunca pensaram na terra para si, nunca foram gananciosos por ter um bocadinho de terra (…) a terra é do nosso País».
Tratou-se, ainda, de uma acção que - num tempo em que a reacção tudo fazia para o regresso ao passado fascista – deu um contributo determinante para a defesa e consolidação da democracia conquistada em Abril.
O êxito da Reforma Agrária manifestou-se, essencialmente, no aumento da área cultivada, no aumento da produção e na realização de trabalhos numa perspectiva de desenvolvimento. As UCP’s/Cooperativas tomaram medidas que conduziram a uma notável melhoria das condições de vida dos trabalhadores; estabeleceram salários fixos, diminuíram a diferença entre os salários dos homens e das mulheres, criaram creches, jardins de infância, centros de dia, postos médicos. E tudo isso foi possível porque nas unidades agrícolas da zona da Reforma Agrária, deixou de haver exploradores e explorados.
Sempre atacados violentamente pelas forças reaccionárias, incluindo as que se encontravam no próprio aparelho estatal, que agiam no desprezo e na infracção da legislação que entretanto fora promulgada, os trabalhadores da Reforma Agrária deram provas de uma capacidade de luta e de uma criatividade singulares. Por outro lado, contaram sempre com uma imensa vaga de solidariedade nacional – por parte de operários industriais, jovens trabalhadores e estudantes, mulheres, intelectuais – e internacional, em particular dos países socialistas. Este foi um dos raros períodos da história do último meio século no Alentejo em que a região não conheceu o flagelo do desemprego, não perdeu população e viu muitos dos seus filhos regressar à terra.
Assinalando os 35 anos do início da Reforma Agrária - do seu êxito, das profundas e revolucionárias transformações que operou nos campos do Sul, do contributo que foi para o enriquecimento do conteúdo democrático do regime saído da Revolução de Abril – é necessário assinalar, também, a ofensiva criminosa que levou à sua liquidação.
Iniciada em 1976, pelo Governo do PS/Mário Soares, essa ofensiva foi prosseguida por todos os governos que se seguiram: PS/CDS; PPD/CDS; PS/PPD e PPD sozinho e insere-se no processo contra-revolucionário que teve na operação de adesão de Portugal à CEE/UE um instrumento fundamental para a destruição das conquistas de Abril e para a restauração do capitalismo monopolista. E nunca é demais recordar e repetir que a ofensiva destruidora se desenvolveu contra uma realidade traduzida na existência de 550 UCP’s/Cooperativas, ocupando 1 130 000 hectares de terra, assegurando 71 900 postos de trabalho, e tendo realizado, em pouco mais de um ano, uma obra notável de desenvolvimento agrícola e de natureza social – uma realidade consagrada na Constituição da República Portuguesa, aprovada em 2 de Abril de 1976.
A ofensiva foi suportada por uma prática de violação da legalidade. Mais e pior do que isso: a ilegalidade foi ostensivamente assumida como instrumento de acção. Os mandantes e os executantes da ofensiva criminosa contra a Reforma Agrária sabiam que estavam a agir fora da Lei Fundamental do País. Eles eram também, na sua maior parte inimigos de Abril: os latifundiários que haviam sido sustentáculo do fascismo, eram, agora, sustentáculo da contra-revolução.
A famigerada «Lei Barreto», como ficou conhecida a Lei 77/77 – ponto de partida da ofensiva no plano legislativo, era uma lei claramente inconstitucional. Há dias, António Barreto, entrevistado pelo Jornal de Negócios, confessou que essa lei é o gesto político de que mais se orgulha – confissão que é bem elucidativa sobre a dimensão política, humana e cidadã do confessado...
Como o são as restantes declarações por ele proferidas na referida entrevista, toda ela um mar de falsidades e de calúnias – parte delas repescadas da campanha na altura desenvolvida pela reacção, aí incluídos os chefes das redes bombistas.
35 anos passados, o «orgulhoso» Barreto volta a decretar a «ilegalidade» da Reforma Agrária, feita segundo ele, «à margem da lei ou mesmo contra a lei» - e certamente pensando na lei que tem o seu nome, e que ele fez aprovar em frontal desrespeito pela Lei fundamental do País; certamente pensando nos mais de 500 acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, favoráveis às UCP´s, e que não foram cumpridos pelos vários governos. Diz ele, também – à cautela e sacudindo a água do capote que, para liquidar a Reforma Agrária, «foi preciso usar alguma violência», mas que se tratou de uma violência controlada», já que, diz ele, «era indispensável não causar feridos e mortos».
Estava certamente a pensar na vaga de violência que pôs o Alentejo a ferro e fogo, num cenário repetido do tempo do fascismo; com helicópteros, aviões, jipes, cavalos, cães, auto-metralhadoras; com milhares de GNR’s e elementos da Polícia de Choque, invadindo e ocupando dezenas e dezenas de povoações, perseguindo, prendendo, procedendo a interrogatórios pidescos e a julgamentos sumários, espalhando o terror, espancando brutalmente mais de doze mil trabalhadores; abrindo fogo, ferindo, matando – assassinando a tiro aqui, em Montemor-o-Novo, os camaradas José Geraldo (Caravela) e António Maria Casquinha, da UCP «Bento Gonçalves», naquele que foi, porventura, o dia mais negro do Portugal pós 25 de Abril.
Foram 14 anos de ofensiva criminosa e destruidora comandada pela contra-revolução – tantos quantos os da resistência heróica dos trabalhadores, que escreveram uma das páginas mais relevantes da história da luta pela democracia, pela liberdade, pela justiça social.
A Reforma Agrária acabou por ser destruída e o latifúndio restaurado, trazendo novamente ao Alentejo as terras abandonadas, a desertificação, o desemprego, a miséria e a fome. Hoje, graças à PAC e às imposições da UE, umas poucas centenas de grandes agrários recebem milhões de euros sem que lhes seja exigida a produção de um grama sequer de alimentos, enquanto milhares e milhares de hectares de terra estão a monte, ou mal aproveitados, ou servem apenas como reservas de caça.
Assinalamos aqui, hoje, os 35 anos do início da Reforma Agrária. E fazemo-lo afirmando inequivocamente a sua importância histórica e sublinhando a necessidade e a actualidade de, nas circunstâncias actuais, se concretizar uma Reforma Agrária que liquide a propriedade latifundiária e garanta o uso e a posse da terra a quem a trabalhe. Assinalando o acto e o processo de avançar com a Reforma Agrária não estamos a olhar para trás.
Um país como o nosso, com défices estruturais incomportáveis precisa de uma nova Reforma Agrária como parte integrante do desenvolvimento rural.
A Constituição da República, mesmo alterada e golpeada, inscreve como objectivo promover a melhoria da situação económica, social e cultural dos trabalhadores rurais e dos agricultores, a racionalização das estruturas fundiárias, a modernização do tecido empresarial e o acesso à propriedade ou à posse da terra e demais meios de produção directamente utilizados na sua exploração por parte daqueles que a trabalham. Constituição que refere ainda a possibilidade de expropriação de terras e a sua entrega a título de propriedade ou de posse a pequenos agricultores, de preferência integrados em unidades de exploração familiar, a cooperativas de trabalhadores rurais. E relembramos a Reforma Agrária como relevante conquista da Revolução de Abril e como componente indispensável da democracia e do desenvolvimento do nosso País, sublinhado a sua indispensabilidade no futuro democrático de Portugal.
Daqui saudamos, fraternalmente, os milhares e milhares de trabalhadores alentejanos e ribatejanos (incluindo aqui os técnicos das várias áreas que lhe deram suporte) protagonistas daquele acontecimento maior da Revolução de Abril que foi a Reforma Agrária - «a mais bela conquista da Revolução», como muito apropriadamente lhe chamou o camarada Álvaro Cunhal. Teremos porventura o sonho mais avançado que a realidade e a actual relação de forças no país. Mas a necessidade objectiva da Reforma Agrária há-de impôr-se de novo como condição de um país de progresso e desenvolvimento, de mais emprego, mais justiça social e democracia avançada.