Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral

Audição Pública sobre o Hospital do Seixal

Áudio

Esta audição sobre o Hospital Público do Seixal  encerra dois aspectos que importa relevar neste momento: por um lado, a extraordinária luta desenvolvida pelas populações dos concelhos do Seixal, de Almada e de Sesimbra, ao longo dos últimos 3 anos, em torno da exigência da construção do Hospital Público do Seixal e, por outro, a contribuição que esta luta tem dado para a luta mais geral em defesa do direito à saúde e contra a privatização dos serviços públicos de saúde.

Uma luta que não se desliga de uma tese fundamental que perfilhamos, de que não há projecto credível de desenvolvimento para o futuro do país que não integre um serviço público de saúde, geral, universal e gratuito, com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) reforçado e melhorado, com o Estado a assumir todas as suas responsabilidades em matéria de saúde.

Apesar de todas as dificuldades que resultaram do facto de, desde sempre, o SNS ter contra si os interesses instalados na saúde, nomeadamente os grupos privados dominantes na produção e distribuição de produtos farmacêuticos e equipamentos e os grupos financeiros privados com as respectivas seguradoras, os resultados obtidos são muito significativos como alguns dos principais indicadores e os níveis de produção obtidos no ano de 2007 (os últimos conhecidos) confirmam.

Mas muito mais podia ter sido realizado não fosse a insistência em opções neoliberais, cujo objectivo é debilitar o SNS para depois o privatizar, mais não fez do que aprofundar a promiscuidade entre o público e o privado, transferir milhares de milhões de euros do OE para o sector privado e dificultar o acesso de milhões de portugueses, nomeadamente os mais carenciados, aos cuidados de saúde.

Alguém disse que a ”medicina é uma arte e a saúde um negócio”. Não foi nenhum dos primeiros-ministros que têm governado o país, nem nenhum dos ministros ou ministras da Saúde dos sucessivos governos, mas bem podiam ter sido, tal tem sido a prática de mercantilização da saúde em Portugal.

O SNS tem de facto uma matriz. O SNS é o resultado da iniciativa revolucionária do povo e de muitos profissionais de saúde no contexto da Revolução de Abril, tendo sido consagrado na Constituição da República Portuguesa que o designou como Serviço Nacional de Saúde, instrumento da concretização da responsabilidade prioritária do Estado em garantir o direito à saúde. Ou seja, o Estado ficou obrigado a criar condições necessárias  para garantir o acesso aos cuidados de saúde em condições de equidade, a todos os cidadãos, independentemente das suas condições económicas e sociais.
Ainda hoje, apesar de todas as revisões porque passou, a Constituição da República consagra o direito à protecção da saúde através de um Serviço Nacional de Saúde universal, geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito. Sempre com o objectivo de privatizar, a política de direita tem assumido várias encenações de acordo com a época e as forças em presença.

Começando por não por em causa o direito à saúde dos cidadãos e acenando com o direito à livre escolha, a direita foi defendendo a necessidade de ampliar a intervenção privada na prestação de cuidados de saúde, mas sempre financiada pelo Estado.

Nesta ofensiva privatizadora, o PS teve um papel fundamental de apoio à direita ao aprovar na Assembleia da República a alteração ao princípio constitucional da gratuitidade para o princípio tendencialmente gratuito, suporte das taxas moderadoras que ainda hoje se mantêm.

O PSD de Cavaco Silva deu um passo fundamental na privatização entregando a gestão do novo hospital Amadora-Sintra ao grupo Mello, mas propagandeando que aquele hospital, relativamente aos cidadãos, se apresentava como qualquer hospital público.

O PS, que na oposição se opôs aquela privatização, quando governo dá-lhe todo o apoio. E na sequência de um discurso de esquerda inconsequente, de novas e melhores formas de gestão, lançou a modalidade das parcerias público-privado e público-público, que o governo seguinte do PSD se apressou a transformar apenas em parcerias público-privado. Esta opção aparece camuflada com a crise e com a incapacidade financeira do Estado para construir novos hospitais. E para os existentes aplica a receita das sociedades anónimas como primeiro passo para a sua privatização.

É o PS de Correia da Campos que tudo faz para concretizar as parcerias privadas e, sem vergonha, anuncia e põe em prática o aumento de encargos dos cidadãos com a saúde, visando a criação de um mercado no qual só compra quem pode pagar, assumindo a liberalização da saúde e a desresponsabilização do Estado, anunciando o aumento brutal dos custos dos cuidados de saúde.

É neste contexto que se desenvolvem as parcerias público-privadas, que juntam o negócio da construção chave na mão e da gestão privada, com algumas condições agravantes do interesse público que é posto em causa, porque:
- O valor da qualidade do investimento é impossível de controlar e os interesses económicos em jogo levarão a que sejam sobreavaliados para efeitos de remuneração, e subexecutados para obtenção de maiores margens de lucro;
- A subjectividade das propostas torna-as incompatíveis, podendo uma proposta com custos inferiores para o Estado ser afinal mais gravosa que outra com custos superiores;
- A avaliação dos serviços prestados na saúde é tão complexa, quer do ponto de vista qualitativo como quantitativo, que existem práticas conhecidas para encobrir a sua avaliação;
- Por fim dizer que, nesta matéria, os supostos ganhos em eficiência da gestão privada serão anulados com a perda de sinergias que uma gestão pública global pode gerar e são enormes as perdas em saúde, resultantes da multiplicidade de intervenientes e de interesses adversos à prestação de cuidados de saúde.

O dogma utilizado pelos defensores da privatização de que a gestão privada é mais eficiente que a pública é claramente desmentido, quando observamos a gestão de certas unidades privadas que se dedicam à prestação de cuidados de saúde que o Estado sobrefinancia e de cuja prestação é deficitário, como por exemplo a hemodiálise.
Um outro bom exemplo é a desastrosa gestão privada para o Estado do Amadora-Sintra, cujos inquéritos da Inspecção de Finanças concluíram terem sido gastos em excesso 75,6 milhões de euros. A situação tornou-se tão grave que no dia 1 de Janeiro de 2009 a sua gestão voltou ao sector público: Entretanto passaram 13 anos de delapidação dos dinheiros públicos. Hoje, apesar de todos os maus exemplos que a gestão privada na saúde tem dado, o OE para 2010 consagra para as Parcerias Público Privadas 144,5 milhões de euros, quatro vezes mais do que as verbas para o investimento público, que terão uma quebra de 13,9%.

É neste contexto que a luta das populações dos concelhos do Seixal, Almada e Sesimbra assumem particular importância já que colocaram sempre nas suas reivindicações a exigência de que o novo hospital do Seixal seja um Hospital Público.

Os esforços dos grandes grupos financeiros para se apoderarem do negócio da saúde têm provocado alterações profundas nas relações entre o SNS e os prestadores privados: a complementaridade cede lugar à concorrência; os grandes prestadores absorvem os pequenos; os grandes contratos de prestação de serviços tomam o lugar dos consultórios individuais; a pequena promiscuidade dá lugar aos grandes negócios. E, por essa razão, também as relações entre o SNS e os seus profissionais de saúde se têm degradado.

No caso concreto dos médicos, os esforços para a redução do custo da força de trabalho e pelo controlo da prescrição traduzem-se, designadamente, na precariedade das relações laborais. Precariedade que também se faz sentir nos enfermeiros, numa situação em que mais de três mil estão inscritos nos centros de emprego, enquanto nos serviços, nomeadamente nos cuidados primários, faltam milhares de enfermeiros de família.

É pela garantia ao emprego, pela valorização da função social e profissional do enfermeiro, pela melhoria das condições de trabalho e pela equiparação do enfermeiro licenciado aos outros licenciados de outras carreiras da Administração Pública, que os enfermeiros portugueses realizaram aquela que foi a sua maior manifestação nacional, que culminou uma jornada de luta de três dias de greve com uma adesão superior a 90%.

Na Assembleia da República, o Primeiro-Ministro, com a tradicional arrogância e prepotência que o caracterizam, interpelado por nós sobre as reivindicações dos enfermeiros, classificou esta luta de corporativista. Não só não é corporativista, como se insere numa luta mais geral pela defesa do SNS e do direito em qualidade aos cuidados de saúde, razão pela qual não só estamos solidários, como apoiamos as justas reivindicações dos enfermeiros.

Muito se tem escrito e falado sobre a reforma dos Cuidados de Saúde Primários. Estes são o alicerce de qualquer sistema de saúde moderno.

A reforma conduzida pelo anterior e actual Governo do PS tem-se deparado com uma realidade há muito conhecida e denunciada pelo PCP, a falta de centenas de médicos nos Cuidados Primários. Para que o projecto de reforma fosse viável era necessário que os médicos que o abraçassem dispusessem de disponibilidade e mobilidade, para voluntariamente se organizarem e fossem, pelo menos, em número semelhante ao total dos que prestam serviço nos Cuidados de Saúde Primários. Com a falta de médicos existentes compreende-se que reduzir a reforma a tal modelo era, desde logo, condená-la ao fracasso.

Em fuga para a frente, iniciou-se o processo de encerramento de serviços de proximidade e a contratação de empresas de prestação de serviços médicos. Esta reforma no modelo Unidades de Saúde Familiar (USF) revelou-se um processo gerador de desigualdades.

O Governo fala muito na melhoria do atendimento prestado a 2,5 milhões de portugueses nas cerca de 200 USF entretanto criadas, mas não diz uma única palavra sobre o acompanhamento que é prestado aos outros cerca de 5 milhões que ficaram no que resta dos Centros de Saúde, onde a situação se degradou muito e os mais de 750 mil que não têm sequer acesso ao médico de família.

Reforma que, para além de gerar desigualdades, é de improvável aplicação geral e de baixa sustentabilidade, deixou em aberto a possibilidade da privatização da prestação nos Cuidados de Saúde Primários, na forma das USF (modelo C), que a constituição dos Agrupamentos de Centros de Saúde não contraria.

Para o PCP defender e reforçar o SNS geral, universal e gratuito é hoje um imperativo nacional. É um direito natural de um povo, direito que não se pode alienar, ter acesso a um Serviço Nacional de Saúde moderno, eficaz e eficiente, que promova a melhoria dos seus indicadores de saúde, nomeadamente o aumento da esperança de vida e promova o bem-estar e a qualidade de vida.

A Constituição da República consagra esse direito à protecção. É assim que a luta das populações pelo acesso a serviços de saúde de qualidade é não só necessária como legítima. As populações, principais prejudicadas pela política de direita na Saúde, têm de ser as primeiras interessadas e interventoras na defesa do SNS. Disso é expressão o crescente número de comissões de utentes dos diversos serviços de Saúde viradas para a resolução de diversos de saúde no plano local e ou regional. No entanto, dado o agravar da crise no SNS são claramente insuficientes para que as soluções a encontrar beneficiem o povo português e, por isso, é fundamental alargar este movimento.

Pelo movimento de protesto, de opinião, reivindicativo e de luta que lhe dão forma, de que os movimentos de utentes destes três concelhos são um exemplo significativo, pela possibilidade que têm, por serem informais e poderem envolver amplas massas, as Comissões de Utentes são, no momento presente, o mais seguro instrumento da luta popular em defesa do SNS de qualidade.