No debate em torno da Reforma do ordenamento do território e titularidade dos recursos hídricos, Miguel Tiago afirmou que a Assembleia deve resolver o problema dos pequenos proprietários que têm pequenas estruturas agrícolas ou mesmo habitacionais, mas não pode com isso, abrir um alçapão para apropriamentos indevidos e ilegítimos de solos classificados como domínio público.
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Sr. Presidente,
Sr. Secretário de Estado,
Em primeiro lugar, registamos a presença do Governo neste debate, que é um debate importante, mas não mais importante, certamente, do que outros debates que aqui sucederam. Recordo apenas o debate, realizado há bem poucos dias, sobre a renegociação da dívida, proposto pelo Partido Comunista Português, no qual o Governo se negou a participar.
Esta é uma das diferenças entre um Governo da República e um Governo do PSD e do CDS-PP.
Sr. Secretário de Estado, o tema do debate é sobre a reforma do ordenamento do território, titularidade dos recursos hídricos, apesar de até agora ter sido muito residual a parcela que os recursos hídricos têm merecido nas intervenções dos Srs. Deputados e reparo que também na intervenção do Sr. Secretário de Estado.
Quanto ao ordenamento do território, muito sinceramente, o PCP não consegue compreender porque se regozija o Governo, o PSD e o CDS, dado que desarticularam a lei dos solos, esvaziaram a capacidade dos instrumentos de ordenamento do território, desarticularam os planos e converteram-nos em programas. O Estado continua ausente do território, incapaz de fiscalizar, deixando ao mercado a sua autorregulação no que toca, inclusivamente, a aspetos tão sensíveis quanto os solos e os usos dos solos. Para nós, é muito complicado compreendermos com o que se regozijam.
Além das palavras de circunstância com que os Srs. Deputados do PSD, do CDS e o Sr. Secretário de Estado aqui nos brindaram, proferiram discursos muito redondos em torno da importância do ordenamento do território, enquanto, na prática, tudo fazem para que o ordenamento do território fique nas mãos daqueles que «predam» os recursos naturais e que destroem, precisamente, um bom ordenamento do território, porque especulam com os solos e porque usam a terra e os recursos naturais apenas como uma mercadoria capaz de gerar os lucros nos quais estão interessados, subvertendo o seu papel social e os seus usos sociais.
Sr. Secretário de Estado, sobre o projeto de lei que o PSD e o CDS apresentaram, sobre a titularidade dos recursos híbridos, gostaríamos de perguntar se o Governo acha legítimo isentar o Estado de qualquer responsabilidade na definição de limitação, gestão e titularidade dos recursos hídricos.
O PCP apresentará propostas no processo de especialidade e apresentará também uma iniciativa, esperando que possa baixar igualmente à especialidade. Estamos disponíveis para procurar essa forma, no sentido de responsabilizar o Estado por um relatório que caracterize, precisamente, as utilizações, os usos, as propriedades e as parcelas que estão no domínio público hídrico.
Esta Assembleia deve resolver o problema que nos é trazido, nomeadamente quanto aos pequenos proprietários, que têm infraestruturas agrícolas ou mesmo habitacionais no domínio público, mas não pode, com isso, abrir um alçapão a toda a ilegitimidade e a toda a apropriação ilegítima do domínio público hídrico, como nos parece que este projeto de lei acaba por fazer.
(…)
Sr. Presidente,
Sr. Secretário de Estado,
Antes de mais, gostaria de deixar algumas breves notas sobre algumas das considerações que fez.
O Governo delega, encomenda a uma comissão técnica que produza projetos de lei; a comissão técnica, ou, pelo menos, alguns dos seus elementos, no processo de especialidade, diz que o Governo deturpou todo o seu contributo; e o Governo vem agora dizer que aqueles que criticam o produto final estão a criticar a comissão técnica. Enfim, é uma forma de o Governo responsabilizar os outros pelas asneiras que faz sobre o trabalho dos outros!… É curioso…
Sr. Secretário de Estado, gostava de lhe deixar algumas perguntas sobre o projeto de lei que o PSD e do CDS trazem hoje a debate.
Primeira: está ou não o Governo disponível para, em paralelo com uma solução que venha a encontrar-se — e friso que o PCP não está de acordo com a totalidade das soluções que o PSD aqui nos traz, aliás, tem sobre elas sérias dúvidas, e já lá iremos… —, produzir um relatório sobre os usos que são realizados no domínio público hídrico ou em parcelas que deveriam integrar o domínio público hídrico, cuja titularidade seja hoje alvo de dúvida, para que a Assembleia possa legislar destrinçando, distinguido, usos legítimos ou até mesmo legais, com titularidade previamente constituída, de outros usos que possam ter sido abusivos de ocupação do domínio público hídrico?
Por exemplo, não podemos legislar concebendo da mesma forma um pequeno agricultor que tem um moinho de água e um grande empreendimento turístico que se apropria de uma grande parcela do domínio público hídrico, veda o acesso ao mesmo e, inclusivamente, leva a cabo um negócio utilizando um recurso que deveria ser de todos.
A Assembleia da República, seja qual for a solução que venha a encontrar, tem de ter em conta esta disparidade e estas diferenças. Tal como não podemos, a pretexto de legalizar situações que devem ser legalizadas ou de facilitar o que deve ser facilitado, facilitar qualquer apropriação do domínio público.
Sr. Secretário de Estado, de acordo com a legislação hoje em debate, e depois de ter ouvido a intervenção do PSD, que parecia estar a falar de outra coisa qualquer, pergunto-lhe se, por exemplo, o artigo 5.º, n.º 1, alínea b)¸ abre ou não a porta para que qualquer pessoa instale uma mini-hídrica ou qualquer infraestrutura numa área que seja não tutelada pela autoridade marítima e fique isenta de provar a propriedade.
É o que aqui diz!
Ao mesmo tempo, Sr. Secretário de Estado, apesar de não ser claro na legislação anterior, esta proposta deixa claro um aspeto: o que é que acontece, por exemplo, às parcelas das margens do Alqueva ou de qualquer outra albufeira, que passam a ser passíveis de apropriação, porque a lei clarifica apenas como podendo ser particulares, ainda que sujeitas a servidões administrativas?
Portanto, para resolver um pequeno problema, não podemos incluir um conjunto tão vasto de matérias. A própria associação que o Governo faz ao regime jurídico do património imobiliário do Estado, Decreto-Lei n.º 280/2007, levanta muitas dúvidas, porque, Sr. Secretário de Estado, não podemos tratar o domínio público hídrico como domínio privado do Estado, são coisas diferentes. O domínio público hídrico está à guarda do Estado, mas não é do Governo, não é para o Governo vender.
(…)
Sr. Presidente,
É apenas para também dar nota, da parte do Grupo Parlamentar do PCP, de que o interesse que temos em participar na criação de uma solução para este problema vai traduzir-se na apresentação de propostas concretas, que esperemos tenham a possibilidade de integrar a solução que venha a ser aprovada. Mas isto não implica — gostaríamos de deixá-lo bem claro — qualquer espécie de compromisso do PCP com esta que agora está em cima da mesa.
Relembro os Srs. Secretários de Estado e os Srs. Deputados do PSD e do CDS que, apesar de a Lei de Bases do Ambiente e a lei dos solos não partirem de uma iniciativa legislativa cidadã, como a Sr.ª Deputada Heloísa Apolónia, ainda há pouco, em tom irónico, apontou, há, de facto, iniciativas legislativas de cidadãos, na Assembleia da República, sobre a matéria da água, que devem ser tidas em conta quando discutimos a titularidade dos recursos hídricos. E uma delas, aliás, a única que deu entrada, uma iniciativa legislativa com milhares de assinaturas de cidadãos portugueses é aquela que proíbe a desafetação do domínio público hídrico, estabelecendo que os recursos hídricos devem ser sempre do domínio público e não devem ser privatizados.
Partimos desses princípios para o debate que aí vem, sem prejuízo de, para aqueles casos em que há uma ocupação específica do domínio público hídrico e há uma titularidade pré-constituída, podermos criar uma solução, sem abrir portas a qualquer outro tipo de ocupação ilegítima do domínio público hídrico.