Intervenção de João Amaral na Assembleia de República

NATO, sua evolução e alargamento

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhores Membros do Governo,

Para o PCP, e ao contrário do que outros pensam e praticam, este debate envolve opções de um tal alcance para a Europa, para Portugal e para o Mundo que deveria ter sido preparado com um altíssimo nível de profundidade, para permitir à Assembleia no seu conjunto, aos jornalistas que acompanham o nosso trabalho, e ao país que aqui representamos, terem a exacta dimensão do que está em aprovação.

Não se quis assim. Em Itália, este debate ia fazendo cair o Governo. Em França, as Comissões da Assembleia Nacional ouviram especialistas, receberam circunstanciada informação sobre todas as questões envolvidas, fizeram debates que conduziram a um relatório de dezenas e dezenas de páginas. Na Hungria foi feito um referendo, aliás com um resultado que dá um baixíssimo apoio à opção de integração na NATO. A própria NATO elaborou centenas de páginas de relatórios, decisões e estudos, para justificar as opções feitas. Em Portugal, acontece como se está a ver: juntamo-nos aqui, "que maçada!", lá vai discurso, já foi. Uma discussão à Speedy Gonzalez!

Mas o que está em discussão é nem mais nem menos do que o modelo de arquitectura de segurança europeia, o papel dos Estados Unidos nesse modelo, e o papel das diferentes estruturas, incluindo o papel da OSCE, da EU e da UEO. Do que aqui tratamos é de saber se se está a caminhar para um modelo que construa uma paz duradoura na região e dê uma contribuição positiva para a paz no Mundo, ou se, pelo contrário, se estão a lançar achas para uma fogueira que algum dia queimará as hipóteses de estabilidade, segurança e cooperação. Do que tratamos é de discutir se a construção da paz não tem de ser por definição um processo assente no respeito mútuo, na criação da confiança, na irradicação das hegemonias e das relações de domínio e subordinação. Não houve nenhum império que, assente na força, não acabasse por ruir pela força dos inimigos que criou. A chamada "paz imperial" pode suspender a guerra, não cria paz, nem estabilidade, nem segurança.

Dirão, Senhor Presidente, que as decisões quanto à NATO, sua evolução e alargamento, já estão tomadas. Foram apuradas pelos chefes de Estado e de Governo em sucessivas cimeiras. Foram trabalhadas pelos Ministérios, pelos funcionários, pelos estados-maiores. Foram aprovados em Washington, Londres e Bona, foram engolidas em Paris, foram chanceladas por todos os peões, logo a Assembleia da República podia dar utilidade ao seu tempo discutindo outras matérias, já que quanto a esta não risca nada. O PCP não aceita essa maneira de fazer política. Era aqui que estas questões deviam ter sido discutidas antes das posições que o Governo assumiu exteriormente. E que nunca devia ter assumido à revelia de um debate aberto com os portugueses , que são a razão de aqui estarmos.

O alargamento que agora é proposto e o quadro em que se concretiza aprofundam quatro direcções que marcaram a evolução da arquitectura de segurança na Europa nesta década de 90: primeira, prossegue o processo de reforço da NATO, e de profunda alteração da sua natureza e âmbito, no sentido da sua "globalização"; segunda, reforça a posição hegemónica dos Estados Unidos na estratégia da NATO; terceira, acentua o fracasso da identidade de segurança e defesa europeia como componente autónoma; quarta, prossegue o processo de secundarização da Organização de Segurança e Cooperação Europeia, circunscrevendo cada vez mais o seu campo de intervenção.

Embora as direcções referidas sejam quatro, a posição de hegemonia dos Estados Unidos tem relevância em todas elas. Para os europeístas convictos, para os que conspiram nas assembleias da União Europeia e da União da Europa Ocidental falando na construção de uma Europa forte com um forte e autónomo braço armado, este alargamento e o processo em que se insere tem o sabor de uma derrota de estrondo. Quem prossegue para Leste, antes da União Europeia, é a NATO. Como quem dirige a força de intervenção na Bósnia são os Estados Unidos. Como quem diz o que há-de a NATO fazer ou não fazer no Kosovo são os Estados Unidos. Defesa europeia? UEO? É de gargalhada!

É óbvio que este processo só foi possível porque as potências europeias o quiseram e aceitaram. Depois da liquidação do Pacto de Varsóvia e do fim da União Soviética, a NATO deixou pura e simplesmente de ter razão de ser. O equilíbrio Leste-Oeste que resultava designadamente da Acta de Helsínquia, dos Tratados de não proliferação nuclear e do Tratado START, e ainda do Tratado CFE (sobre forças convencionais na Europa), tinha sido rompido de vez. A ameaça global que serviu à NATO de auto-justificação desapareceu (como reconhece explicitamente hoje qualquer documento estratégico da NATO).

Com os inimigos desarticulados, mudados de campo e sem ameaça global, a NATO devia ter desaparecido, para dar lugar a um novo impulso e um novo papel à Conferência de Segurança e Cooperação Europeia (hoje OSCE).

É preciso aqui recordar que a NATO é uma aliança político-militar, que reúne Estados e as suas forças armadas para se organizarem para o combate de inimigos. Ao contrário, a um sistema de segurança e cooperação, é alheia a noção de inimigo e de organização para o combate. A filosofia é a junção no mesmo espaço de todos os que estão na região, mesmo com interesses contraditórios, para estabelecer regras de cooperação, medidas de confiança, troca de informação estratégica, acordos de equilíbrio militar, e tudo o que possa contribuir para prevenir e impedir o conflito. Não se exclui que um sistema de segurança e cooperação possa reunir forças militares para missões determinadas, mas esse não é objectivo principal da sua actividade, nem essas forças definem inimigos. São forças para a prevenção e para a manutenção da paz.

A opção consubstanciada em Novembro de 1991, no Conselho do Atlântico Norte de Roma, que aprovou a Declaração de Roma sobre Paz e Cooperação e o conceito estratégico da Aliança foi não só a de manter a NATO como a de lhe dar um impulso em novas direcções, atribuindo novas missões, nova estrutura, e novo modelo de forças, e mantendo a opção nuclear.

Corresponde este conjunto de opções às expectativas de paz e cooperação, de segurança e amizade que a nova situação europeia permitia? Que impedia que se passasse para o terreno da C.S.C.E. (hoje O.S.C.E.), e se estabelece um novo quadro de segurança, sem a criação de uma nova dinâmica militar, sem a preparação de novos sistemas de guerra, sem a humilhação de vencidos e dos fracos e fragilizados? Nada impedia esse caminho, tudo o aconselhava, o que teria permitido a criação do clima de confiança a desmilitarização, o equilíbrio de forças e a estabilidade, que são a base segura e duradoura da segurança, para todos os países, desde Portugal, até qualquer outro país da parte ocidental, como a qualquer país da parte Leste.

Só que este caminho pressuponha forçosamente o abandono do papel liderante dos Estados Unidos, é a sua consideração como um igual entre partes iguais.

Para os países europeus é mais fácil submeterem-se aos Estados Unidos do que assumir as suas próprias responsabilidades. Submetem-se aos Estados Unidos mesmo no estado em que está a presidência dos Estados Unidos, com um Clinton que, quando tem a mão livre, (o que nem sempre sucede ...) é para carregar no botão e mandar uns mísseis pelo Mundo fora, como contra o Sudão, onde cada vez mais está provado que se fabricavam medicamentos e nada mais. O Governo Português, mesmo sem saber de nada, mesmo sem ter sido tido ou achado, numa atitude de vergonhosa submissão à potência imperial e a todos os seus tiques apoiou logo. Mas, na Europa é assim, mesmo um Clinton no estado em que está é quem mais ordena, e todos dobraram a espinha.

Toda a evolução desde a Cimeira de Roma de 91, tem visado objectivos claros. Desde logo, e como primeiro objectivo está o controlo da própria União Europeia a quem a NATO, isto é os Estados Unidos, concederam a benesse de construir uma Identidade de Segurança e Defesa Europeia mas reservando para si, a organização das forças militares, o sistema de comando e o direito de veto sobre o seu emprego com forças europeias, da UEO. Depois, como segundo objectivo, está o controlo de todo o Leste, através das sucessivas estruturas e acordos, desde o Conselho de Cooperação do Atlântico Norte, passando pelas Parcerias para a Paz (uma espécie de dependência à la carte), finalizando com a criação do Conselho de Parceria Euro-Atlântico, criado em Sintra o ano passado. Esta estrutura engloba 44 países dos 54 que vão de Vancouver a Vladivostok. Dos dez que fazem a diferença, um, a Jugoslávia, foi posta fora de tudo, incluindo da OSCE, e dos outros nove, a maioria são mini-países, tipo Santa-Sé, só estando fora, com relevância a Irlanda (que não pertence à NATO) a Bósnia e a Croácia! É ou não o decalque do território da OSCE, não para a cooperação mas sim para o controlo e domínio do Leste Europeu?

O terceiro objectivo é o mais grave, e refere-se à reformulação estratégica da Aliança. Essa reformulação começa em 1991, mas não terminou, estando previsto a aprovação para o ano, na Cimeira de Washington, em 4 de Abril, no 50º Aniversário, de um novo conceito estratégico. Mas, são mais que conhecidas as orientações-chave. Desde logo, a assumpção pela NATO de missões "fora da área", ou "não artigo 5º", que transforma a natureza do Tratado do NATO, de defensivo em ofensivo, da aliança circunscrita territorialmente a aliança de projecção global. É a esta filosofia que obedece a estrutura militar, hoje assente nas CCJF, isto é, em Forças Operacionais, Multinacionais e Combinadas, dotadas de grande flexibilidade e mobilidade, vocacionadas para a intervenção externa, processada no quadro de que eufemisticamente é chamada a reacção rápida. Mas, para além desta componente de missão, há na reformulação estratégica um aspecto, não consumado ainda, mas que está já escrito em várias reflexões e documentos, e que é a possibilidade de a NATO actuar sem mandato da ONU ou da OSCE. Concretizar essa opção seria subverter a ordem jurídica internacional, mas não só, seria uma machadada gravíssima na ONU e fazer o enterro à OSCE.

O que é espantoso é que a OSCE tem neste momento na agenda, a aprovação de uma Carta de Segurança Europeia, no quadro de um conjunto de intenções tomadas na Cimeira da OSCE realizada em Lisboa. Intenções que claramente se vão comprometendo com a política de factos consumados pela NATO, como é exemplo claro este alargamento.

Os que dizem que não vale a pena discutir o alargamento, o que pretendem é convencer de que não há alternativa a esta via. São adeptos da via única, com a supremacia estado-uniense na Europa, e tudo o que lhe está associado. Mas há outro caminho, o que falta é vontade política para o seguir.

Os que dizem que não vale a pena discutir o alargamento querem calar os que, de muitos sectores, sentem que este não é o caminho seguro para a paz, e sentem que a arrogância dos Estados-Unidos é inaceitável, sentem que nestas matérias as opções não são boas. Mas ninguém consegue calar a incomodidade e desagrado que esta evolução da NATO provoca, e há vozes que hoje o dizem alto e bom som.

Da nossa parte, PCP, discordamos destas opções, de reforço e alargamento da NATO. Por isso, votaremos contra as propostas de resolução em análise, mas ao mesmo tempo apelamos a uma profunda reorientação da política de segurança e defesa na Europa. Uma reorientação que valorize a cooperação, a igualdade de partes, o estabelecimento da confiança mútua. E que abandone a via da imposição militar e o espírito de segregação entre bons e maus, entre os de cá e os outros.

Nesta discussão, dirigimo-nos aos povos, às autoridades, às forças progressistas, dos três países que aderem à NATO, naturalmente para os saudar, mas também para dizer que a nossa oposição a este caminho que está a ser seguido na arquitectura militar da Europa resulta da nossa convicção de que é um caminho errado e perigoso, para todos, incluindo para os três novos membros. Não podíamos votar de outra forma, seguindo esta nossa profunda convicção!

Cabe ainda dizer algumas notas sobre o conteúdo técnico-militar e as implicações financeiras da adesão. Esta adesão obrigou os Estados Unidos (através da NATO) e a Federação Russa a estabelecerem acordos para algumas questões que foram por esta consideradas essenciais. Nos termos do Acto Fundador, a NATO manifestou que não tencionava instalar o vector nuclear nos territórios destes três Estados, não pretendia o estacionamento permanente aí de Forças significativas, e aceitava uma recomposição dos limites de forças convencionais fixados no Tratado CFE. Estas intenções (que alguns sublinham não terem valor jurídico, alegando que o Acto Fundador não é um Tratado ratificado pelos Estados), mostram a delicadeza deste processo e das suas incidências. Mais segurança na zona? Não, mais instabilidade e menos confiança, por isso mais insegurança.

As próprias opões tomadas quanto ao reequipamento não apontam para mais segurança. O reequipamento vai ser feito fundamentalmente na Força Aérea (adivinham-se bons negócios para a indústria aeronáutica dos Estados Unidos), nas infraestruturas portuárias e aeroportuárias (dando uma maior credibilidade e velocidade de resposta às Forças da NATO), nas comunicações e no treino tendo em vista a interoperacionalidade. O alargamento não é só uma opção política, é um caminho de reforço militar que não é pequeno. Só a Polónia tem mais de 200 mil homens nas Forças Armadas.

Os custos financeiros vão ser pesados. Desde logo, para os três países, que assumem o compromisso de elevarem a percentagem do PIB em gastos com a defesa.

Os cálculos globais do Congresso americano feitos em Março de 1996 apontavam para 20 mil milhões de contos em 10 anos. Em Fevereiro de 1997, o Pentágono apontava gastos entre 6,3 e 4,8 mil milhões de contos nos mesmos 10 anos.

O valor que agora a NATO estima é ridiculamente baixo, face a essas previsões. É de 270 milhões para 10 anos, o que obviamente tranquiliza os contribuintes mas deixa muito a desejar quanto a fiabilidade.

Alguns dos Senhores Deputados acharão certamente que este debate é uma maçada, uma perda de tempo. Outros que eu sei que se preocupam, talvez achem que vale a pena estar alerta. E que é tempo de fazer uma reflexão profunda e arrepiar caminho, na direcção da paz, da segurança, da cooperação, nesta Europa de europeus, de Nações que devem assumir o seu futuro e a segurança.

Disse.

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